O caráter do voto nordestino

Nordeste garante votação majoritária a Fernando Haddad puxada pelo legado do ex-presidente Lula e pelas boas performances do campo progressista nos estados

Por Murillo Matias*

Se a eleição presidencial dependesse somente do eleitorado nordestino Fernando Haddad (PT) teria sido eleito presidente do Brasil no dia 07 de outubro com 51% dos votos, praticamente o dobro obtido por seu adversário Jair Bolsonaro (PSL), líder no restante do país. A continuação da disputa nacional deve-se em grande parte à movimentação eleitoral ocorrida no Nordeste e às vitórias em primeiro turno de projetos progressistas que colocaram a região na vanguarda da esquerda brasileira a partir da reeleição de governadores e aliados em seis dos oito estados – no Rio Grande do Norte e Sergipe a eleição será definida em 28 de outubro.

No Piauí, onde Fernando Haddad atingiu 63% dos votos, o mais alto percentual entre todos os estados, Wellington Dias e a militância rezaram o pai nosso em comemoração a mais uma reeleição conquistada pelo governador ao obter 55% da preferência local. Os triunfos do petista fazem com que alguns se refiram em tom bem humorado ao político como o presidente do estado, por muitos anos marcado na condição de o mais pobre da federação e atualmente destaque na geração de energias renováveis, expansão do ensino e melhora dos índices de desenvolvimento humano.

A chapa que expressa brasilidade na origem indígena do governador e na figura da vice Regina Sousa, mulher negra, retrata em síntese a onda vermelha que mais uma vez tomou o Nordeste, cujo eleitorado continua, em sua maioria, a colocar suas esperanças em lideranças e projetos apoiados pelo ex-presidente Lula, cuja história se confunde com milhões de conterrâneos no enfrentamento da seca, da fome e na busca por oportunidades em terras distantes nos tempos em que a região se caracterizava por expulsar sua população em virtude da falta de oportunidades e recursos, concentrados no sul, sudeste e centro oeste.

“No Nordeste e nas periferias das cidades estão os eleitores que têm memória crítica. Ao contrário que acham alguns, o nordestino lembra o que era a região antes de Lula, lembra a mudança no padrão de vida. A elite brasileira também lembra e os indicadores estão aí, mas não quer que o pobre melhore, não se importa com o aprofundamento das desigualdades. Os ricos querem o Brasil para eles, nós queremos o Brasil para todos, essa é a grande diferença entre os dois projetos que disputam a eleição. A elite não é contra o PT, é contra os que defendam pobre, preto, índio, LGBT, os direitos humanos”, afirma a senadora e vice-governadora eleita, Regina Sousa (PT).

O exemplo do Piauí chama a atenção adicionalmente pelo componente da disputa do voto dos religiosos, decisivo para o resultado final. Wellington, católico e sua esposa e parlamentar Rejane Dias, evangélica, representam um contraponto importante diante do alinhamento de influentes pastores à extremadireita. “Boa parte dos evangélicos segue a orientação dos seus líderes por medo e desinformação. Eles amedrontam as pessoas como se elas estivessem desobedecendo a Deus. Fui membro da IURD por 15 anos, me afastei por conta do voto do bispo Marcelo Crivella a favor do golpe. A poucos dias fui em reunião em que o pastor usou o altar para pedir votos, entregando um envelope cheio de santinhos. ‘Os cristãos não são 100% Bolsonaro,mas são 100% contra a volta do PT’. Não demorou para isso virar um slogan. Logo depois meu filho recebeu de uma obreira da Universal vídeos sobre o kit gay, falando que Haddad fecharia igrejas. Há obreiros indignados, que não aceitam a decisão da igreja, sabem o que Lula fez pelo povo, há pastores petistas, mas eles não podem se manifestar”, explica Luana Silveira, de Teresina.

Dos cultos da capital piauiense à casa de terreiro de Mãe Vera, em Maceió, a líder montou um pequeno comitê Lula Livre no Bairro Tabuleiro, dos mais pobres de Alagoas, para reforçar a luta pela liberdade do ex-presidente. “Eu tive o prazer de abraçar o Lula, um homem sábio que sabe receber as pessoas humildes, por isso falei para o Haddad que ele precisa ser a continuação de Lula, especialmente em bairros como o meu, aqui a comunidade é muito carente, só temos uma creche. Queremos ver o ex-presidente pelas ruas, no meio do povo que é o lugar dele”, defende.

Nesse sentido, o clamor popular de muitos cidadãos expressa a necessidade do indulto ao ex-presidente, prerrogativa que seria possibilitada com a chegada de Haddad ao executivo nacional, mas negada até o momento pelo candidato. “O indulto é uma necessidade e um direito diante de juízes que agem por perseguição. Os sentimentos de gratidão e justiça se misturam nessa hora quando lembramos de Lula”, comenta Maria Conceição, em Salvador.

A politização sobre o preconceito

Na guinada conservadora do Brasil o temor ao comunismo é um dos conceitos instrumentalizados para favorecer a agenda promovida pela direita. Em mais uma demonstração da politização desenvolvida no Nordeste, a velha tentativa de desqualificar a esquerda pelo viés ideológico viu-se frustrada diante da reeleição em primeiro turno do comunista Flávio Dino (PCdoB), no Maranhão – esta também na região a única capital governada pelo partido, Aracaju, no Sergipe.

Por outro lado, o diálogo com forças de centro e da direita moderada revelam o poder de articulação e diálogo mantidos na região, situação bem diferente da polarização do restante do país, sem espaço para posições divergentes. Nesse contexto inserem-se os casos de Renan Filho (PMDB), reeleito com quase 80% dos votos em Alagoas, Paulo Câmara (PSB), reconduzido ao cargo de governador de Pernambuco e de Belivaldo Chagas (PSD), que junto da vice Eliane Aquino (PT) disputam o segundo turno em Sergipe após 40% de adesão na primeira fase.

Na maioria dos estados são frentes de esquerda que lideram os processos, como na Paraíba do governador Ricardo Coutinho (PSB), cuja aprovação ao redor dos 80% ajudou a eleição do socialista João Azevedo (PSB) para o cargo, superando nomes tradicionais das elites políticas. No Ceará, o índice de 79% obtido pelo governador Camilo Santana (PT) foi puxado pela coligação que tinha como presidenciáveis Haddad e Ciro Gomes (PDT), o mais votado no estado em relação ao cenário nacional e nome fundamental para a coesão dos progressistas na nova etapa de campanha.

Quarto maior colégio eleitoral, a Bahia, além de reeleger Rui Costa com 77% dos sufrágios, depositou 60% da preferência na candidatura petista à presidência – elegendo ainda proporcionalmente a maior bancada de deputados federais do PT e os dois senadores da chapa, o ex-governador Jacques Wagner (PT) e Ângelo Coronel (PSD) . Resultado de avanços sociais cujas marcas mais conhecidas são as cisternas no sertão, as universidades e institutos federais nos espaços urbanos e os programas de transferência de renda aos mais pobres, é entre os baianos que se registra o maior número de beneficiadas pelo Bolsa Família, razão de estigma para os críticos que ignoram as realidades locais.

“Por anos nossa região foi esquecida até a chegada de um presidente que veio do povo e sabe o que se passa em cada estado. Há que se respeitar isso e evitar quaisquer críticas de cunho preconceituoso como as quem vem sendo disseminadas pelas redes sociais.O Brasil não deve encarar estas eleições como uma guerra, em que se deva se dividir o país sob discurso de ódio, rancor”, observa a deputada federal Rejane Dias, a mais votada do Piauí.

Os programas petistas centrados no protagonismo feminino garantiram às mulheres o dinheiro da Bolsa, a chave da casa própria, a concessão de crédito e amenizaram outro tabu, o machismo e patriarcado que sempre dominaram as relações familiares e coletivas. O destaque à eleição de mulheres reflete uma maior inserção do segmento na economia, chegando finalmente à arena política.

Cida Ramos (PSB), deputada estadual mais votada da Paraíba, Luizianne Lins (PT), ex-prefeita de Fortaleza, Natalia Bonavides (PT) no Rio Grande do Norte, Lídice da Mata (PCdoB) e Alice Portugal (PCdoB) na Bahia, Marília Arraes (PT) e o mandato coletivo feminista do Psol em Pernambuco chegarão à Câmara de Deputados respaldadas por expressivas votações. No senado, a potiguar Zenaide Maia (PHS) e Eliziane Gama (PPS) no Maranhão darão corpo a maior participação das mulheres nos espaços de poder. A perspectiva de eleição de Fátima Bezerra (PT) ao executivo do Rio Grande do Norte pode significar um passo a mais na escala da representatividade, caso vença Carlos Eduardo (PDT), em 28 de outubro.

A crise dos nomes tradicionais e o sinal amarelo das capitais

A primeira derrota em quarenta anos de vida pública do senador maranhense Edison Lobão (PMDB) e a retirada da candidatura ao executivo do ex-presidente Fernando Collor (PTC) em Alagoas formam o retrato da perda de capital político de nomes que costumavam valer-se da hegemonia sobre territórios. Entre os derrotados sublinham-se ainda Sarney Filho (PV), Cássio Cunha Lima (PSDB), Garibaldi Alves (PMDB) e Eunício Oliveira (PMDB), preteridos ao senado no Maranhão, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, respectivamente. Mesmo destino experimentou o potiguar Rogério Marinho (PSDB), relator da reforma trabalhista que finalizará seu mandato de deputado federal em 2018.

Apesar da derrocada de símbolos da direita, o avanço de candidatos do PSL e a performance de Bolsonaro em capitais acendeu o sinal de alerta em relação ao trabalho de convencimento a ser enfrentado. O aumento da criminalidade, advindo em parte devido ao desenvolvimento apresentado pela região a partir do progresso econômico despertou também o interesse de facções que passaram a disputar e controlar áreas em diferentes estados. A nova realidade e a insatisfação no campo da segurança ajudam a entender a vitória de Bolsonaro em seis capitais nordestinas, incluindo Natal e João Pessoa, enquanto Haddad saiu-se melhor em Salvador, São Luís e Teresina.

A exploração do que se convencionou chamar de ideologia de gênero aponta como outra razão para a ascensão do conservadorismo ao sugerir que as escolas estariam orientadas a ensinar sexo nas salas de aula, na linguagem cotidiana. “Eu sigo as ordens de meu líder Jair. Acredito na gestão militar na escola, entendo que a ideologia de gênero é uma afronta as nossas famílias”, declarou em seus vídeos na rede social a deputada eleita pelo PSL baiano, Professora Dayane Pimentel, que garante não utilizar as instituições de ensino onde trabalha para promover suas ideias de “ordem social”.

Em contraposição à desinformação e notícias falsas utilizadas por determinadas candidaturas e ao discurso reacionário empregado inclusive nas escolas, os estudantes nordestinos demonstraram sua capacidade de análise e compreensão dos fatos ao levarem para suas terras natais 59 das 75 medalhas na final da Olimpíada de História na Unicamp, em São Paulo.

A consciência de classe e o posicionamento dos povos da Bahia ao Maranhão permitiu aos brasileiros mais tempo para decidir qual caminho escolherão pelos próximos quatro anos. Enquanto isso, o vermelho da terra é também a cor das bandeiras políticas mais levantadas na região, que serve de inspiração aos que vibram em todos os cantos do país pelo caráter do voto nordestino. “Ao invés de me mandarem ir para Cuba, me mandem para o nordeste que eu vou feliz da vida!”, resume do coração do Rio de Janeiro, a trabalhadora Elisa Ottoni.

*Publicado originalmente em: https://www.cartacapital.com.br/revista/1025/o-nordeste-diz-elenao

 

 

 

 

 

 

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