Nas últimas semanas, em algumas oportunidades, sugeri para algumas colegas que refletíssemos sobre a questão da proibição do dendê na Bahia. Um assunto até que já vem rendendo um caldo pelo mundo, o que acabei descobrindo nesta ocasião. A indústria de óleo de palma, um produto extraído do dendezeiro, passou a sofrer pressão na Europa depois que autoridades afirmaram que o produto aumentaria o risco de câncer. Na indústria do biocombustível, interesses econômicos se confrontam sobre a utilização do dendê versus outras matrizes energéticas. (ver também).
Mas o meu convite se referia a uma comparação mais profunda, sobre a proibição da maconha do Brasil, essa sim em vigor a várias décadas, e a possibilidade da restrição do uso, comércio e produção do dendê. Todas as possibilidades estão abertas na Era dos Absurdos. Pena Hobbsbawn não ter sobrevivido…
O café por exemplo, já foi uma bebida perseguida em diversos lugares do mundo. [O professor Henrique Carneiro nos narra muito bem a relação entre alimentos, drogas e proibição na história da humanidade].
Na data de 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro penalizava o pito de pango, “fumar maconha”, na postura que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários. Ficaria proibida assim, a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: “o vendedor [multado] em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dêle usarem, em 3 dias de cadeia”. Ao escravo, seria destinada a prisão, portanto.
As pessoas escravizadas, para as quais não eram reservados direitos e portanto, excluídas dos demais códigos jurídicos, não deixava de aparecer no entanto nas posturas criminais. Nesse caso, se destacaria inclusive entre as demais pessoas que usassem. Só poderiam ser consideradas cidadãs, pessoas portanto, para serem criminalizadas.
A criminalização da população negra tinha relação com o controle da raça negra para que não boicotassem o projeto civilizatório das elites políticas brancas, que ao final do século XIX, às vésperas do fim da escravidão formal, se perguntavam: “O que fazer com o negro?”. [Questionamento que a professora Celia Maria Marinho Azevedo tentou observar].
Antes mesmo da primeira constituição republicana, já se deixava bem claro com quem se esperava compor a população do Brasil a partir dali: É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos a ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo com as condições estipuladas. Somente mediante a autorização do Congresso Nacional, importante frisar. [Quem muito bem escreve sobre os enlaces e entraves dessa dissimulação brasileira, é a autora Wlamyra Albuquerque, querida professora].
O código penal de 1890, já continha as cartas que seriam usadas no começo do século seguinte para a repressão ao samba e à capoeiragem (perseguida pela lei desde o código do Império), assim como às pessoas consideradas vadias, através de uma caracterização ampla contida no termo de “desordem”, e outros códigos. Uma portaria no Rio de Janeiro em 1889, determinava que, em caso de conflito, a polícia deveria usar preferencialmente “meios suasórios”, “cacetadas, maus tratos e até tiros, se possível for”. (Ver sobre isso)
Em 1915, o professor da Faculdade de Medicina da Bahia Rodrigues Dória, assume que criminalizar a maconha no Brasil era uma tarefa de controle da população negra egressa da escravidão. Ele afirma que, a raça (negra) outrora cativa, trouxera bem guardado consigo para ulterior vingança, o algoz que deveria mais tarde escravizar a raça opressora. (…) O vício de fumar a erva maravilhoso, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva (sobre o tema). A maconha seria assim uma vingança dos negros contra os brancos por terem nos roubado a liberdade preciosa e sugado a seiva reconstrutiva.
Em 1938, diversas autoridades se reúnem em Salvador para discutir a elaboração de instrumentos para coibir o comércio, o consumo e a produção da planta, no I Convênio Interestadual da Maconha, e assim, pôr em prática a decisão editada na lei de seis anos antes, e uma das orientações retiradas daqueles dois dias, de uma sala quente no centro da cidade da Bahia, foi a obrigatoriedade de inscrição dos terreiros de candomblé em autoridade policial, medida que não é suspensa até 1978.
E a perseguição à planta deveria ser por todo o Brasil: “Uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauí, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo cada vez mais enérgica e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício”, comemoravam os proibicionistas. A polícia sempre como agente de destaque para a manutenção da ordem e dos bons hábitos na cena urbana. Nas zonas rurais, outras milícias menos institucionalizadas, por assim dizer.
A proibição da maconha surge não a partir dos efeitos da planta no organismo, dos seus usos, ou dos seus possíveis agravos, mas sim como uma nova engrenagem do projeto de controle da população negra egressa da escravidão, para manutenção dos mecanismos de hierarquia racial construída naquele período. E aqui eu misturo o dendê e o pinho sol.
O jovem negro Rafael Braga deixou um casarão abandonado no centro do Rio de Janeiro, onde catava algumas quinquilharias, e não tinha ainda se dado conta de que haviam mais de 300 mil pessoas do lado de fora que se manifestavam contra a realização da Copa das Confederações no Brasil, e uma enorme confusão causada pela repressão policial. Em seu percurso para a casa de uma tia que morava próximo, onde pretendia deixar uma garrafa de água sanitária e outra com desinfetante que havia encontrado junto às escadarias do local onde estava, foi abordado por policiais e levado à delegacia.
Dois policiais civis afirmaram que Rafael portava duas garrafas de plástico com um estopim laranja, e que o material parecia com coquetel molotov. O laudo técnico da Polícia Civil atestou que a água sanitária não poderia ser utilizada como material inflamável (para espanto de todos, surpreendendo até a obviedade). O desinfetante, no entanto, do jeito que estava, teria, no máximo, “mínima aptidão para funcionar como ‘coquetel molotov’”. O juiz Guilherme Schilling Polo Duarte, branco, resolveu assim, baseado naquele laudo e na declaração dos policiais, condenar Rafael Braga Vieira a cinco anos de reclusão, que deveriam ser cumpridos inicialmente em regime fechado. Rafael foi ainda condenado pelo diretor da unidade que cumpria pena a dez dias na solitária por ter tirado uma foto em frente a um muro, quando progrediu meses depois para o semiaberto. No muro, a frase: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”. Pena de 2 m², sem acesso à luz e a outras pessoas.
Quando saiu da prisão em 1º de dezembro de 2016, para o regime aberto com tornozeleira eletrônica, Rafael foi abordado de novo por polícias, 40 dias depois. Ao ser parado, Rafael afirma que foi chamado de “bandido” e conduzido até um beco, onde, foi agredido com socos no estômago e o ameaçado. Surgiram então 0,6 gramas de maconha, 9 gramas de cocaína e um rojão nos bolsos de quem havia deixado a casa da sua mãe com três reais para comprar o pão. Rafael foi condenado a 11 anos e nove meses de prisão. O juiz Ricardo Coronha Pinheiro, branco, impediu inclusive a verificação dos dados da tornozeleira que Rafael usava, pois isso colocaria em xeque o depoimento dos policiais que o prenderam.
Jhonata Dalber Matos Alves tinha 16 anos quando foi atingido por polícias da UPP no Morro do Borel no Rio de Janeiro, que “confundiram” o saco de pipoca que ele tinha na mão com drogas*. O menino Joel morreu aos 10 anos dentro de casa no Nordeste de Amaralina, também numa operação policial. Luciana segue presa em Natal. Cláudia Ferreira foi arrastada em rede nacional.
Chegamos então às conclusões que me trouxeram de um simples post para o facebook a uma tarde dedicada a escrever essa breves palavras para vocês.
O que eu trazia para as minhas colegas em Salvador era que a questão da substância em si, maconha, pinho sol, dendê, explosivo, feijão, café ou açúcar, pouco importa para o processo criminalizador. A construção da pessoa criminosa no Brasil se dá antes mesmo da realização do crime. E ela tem raízes profundas no nosso processo de escravização, que é a maior parte da história brasileira. As noções de crime, castigo, punição, pena, em nosso país, são oriundos dos quintais da Casa Grande, e são a base do nosso sistema penal, como nos lembra a professora Ana Flauzina.
A arquitetura punitiva herdada do modelo imperial-escravista, onde as práticas de controle se desenvolveram no terreno das relações entre o senhor e o escravo em séculos e, portanto, dentro do âmbito privado, ao transferir-se para o Estado republicano, gerenciado pelos mesmos senhores, esforçava-se na extensão do discurso da inferioridade negra, desenhando novos manejos que reforçassem a naturalização da subalternidade.
Entre o conjunto de mecanismos que permitiam a gerência real sobre a circulação material do corpo negro na cena urbana, e que alimentava a apreensão racista do fenômeno do crime pelo conjunto responsável por normalizar a acusação social, e reproduzi-la, tornando o criminoso, construído anteriormente ao crime, um corpo real, material, a ser punido, encontraremos a perseguição à vadiagem para o processo almejado de profilaxia social, intimamente ligada ao controle do uso de substâncias psicoativas, sejam legais como o álcool, ou ilegais como a maconha. Mas os corpos foram criminalizados antes de alcançarem essas substâncias e as suas classificações legais. Afinal de contas, vejo jatinhos e helicópteros circulando livremente com insígnias oficias e proteção judicial… mas desde que não carreguem dendê ou pinho sol, tá tudo certo…. pros brancos.
* História lembrada pela querida amiga Luísa Saad, a quem também agradeço aquele “revisãozinha pro broder”.
Uma resposta