Por Ana Clara Carvalho e Giulia Staar
Estudantes de Comunicação Social PUC MG
A mineira Juliana Paolinelli fez sua primeira cirurgia aos 18 anos e sua segunda aos 25. Ela entrou andando no hospital e saiu dele com CID de paraplegia 82.1, uma anomalia muito grande, que envolve problemas sérios, como compressão na coluna e uma síndrome que causa dores e espasmos. A paciente neurológica crônica, hoje com 37 anos, tentou todo tipo de remédio no Brasil para acabar com sua dor, e não deu certo, até que, experimentou a cannabis medicinal. Tornou-se a primeira brasileira a receber autorização, com uma liminar, para importar um extrato cannábico, fitoterápico, o Sativex,
“Eu cheguei ao máximo que uma pessoa pode chegar para tentar livrar-se da dor, que foi usar bomba de morfina, implantada por quatro anos, ligada direto ao sistema nervoso central,” conta. Depois de lutar contra a síndrome de abstinência, causada pela bomba, ela conseguiu retirá-la. Tinha espasmos, seus joelhos batiam no seu queixo e a machucavam. Na época, precisava ir de ambulância para o hospital e passava por trás para que os outros pacientes não a vissem em crise, pois era uma cena muito forte.
Hoje, Juliana não sente tanta dor, é mãe de duas filhas e vice diretora da AMA+ME, Associação Brasileira de Cannabis Medicinal. Sua qualidade de vida é maior devido ao uso de remédios à base de cannabis: “A maconha dá uma qualidade de vida melhor para gente; a minha dor hoje em dia é suportável”. O medicamento usado por ela, atualmente, é doado: um óleo feito de um extrato rico em Tetraidrocanabinol (THC), princípio ativo da maconha, produzido no sul do Brasil. “Tomo três doses por dia do óleo e fumo nos momentos de socorro, de muita dor, pois a absorção é mais rápida pelo pulmão do que via oral.”
Segundo uma pesquisa realizada pela Hello Research, públicada pela revista “Exame” em 2016, seis em cada dez brasileiros são a favor da legalização da maconha para fins medicinais. Assim como Juliana, todos os dias, outras pessoas precisam recorrer ao uso da cannabis medicinal em seus tratamentos, mas encontram dificuldades por causa do tabu, do preço e da proibição da ‘droga’ no país.
S.L é diabética e ano passado foi diagnosticada com fibromialgia, com fortes dores da neuropatia diabética. Cabeleireira, de 48 anos, recorreu ao tratamento com remédios convencionais, o que não deu certo: ela não conseguia trabalhar, pois nem saía da cama. S.L resolveu procurar outras alternativas e descobriu a cannabis medicinal na forma “in natura”, fumada. “Nas pesquisas achei o Dr. Paulo Fleury que generosamente me atendeu e me explicou sobre o CBD e o THC e o que isso provoca em nosso corpo. Resolvi experimentar e deu certo.”
TRATAMENTO
De acordo com a AMA+ME “o benefício medicinal da cannabis pode ser alcançado através da forma ‘in natura’, fumada ou vaporizada; ingerida ou aplicada na forma de óleos ou extratos; ou beneficiada farmacologicamente para isolamento de canabinoides na forma de comprimidos, cápsulas ou sprays para uso na mucosa oral.”
Eles esclarecem que, apesar de ínfimas possibilidades, pesquisadores e pacientes ainda encontraram muitos empecilhos para utilização da cannabis. “Ainda são poucos estudos clínicos realizados, devido a predominante política proibicionista internacional, além da dificuldade na importação.”
Entre 2015 e 2016, triplicou o número de pessoas que entraram com ações na justiça contra o Ministério da Saúde, solicitando o fornecimento da cannabis para uso medicinal. De 17, no primeiro ano, passou para 46 pessoas, no seguinte. Os números são ainda maiores, já que os dados não incluem pacientes que moveram ações contra as secretarias estaduais de saúde.
Para entrar com o pedido de autorização de importação é necessário que o paciente apresente prescrição médica acompanhada de justificativa minuciosa das razões da necessidade do uso de cannabis e preencher um formulário. Até a liberação, a espera pode ser longa, dependendo do processo. Contudo, o maior empecilho continua sendo o preço. Um paciente comum não gasta menos de 300 dólares por mês, (ou seja R$ 928,50).
Juliana hoje tem três autorizações para remédios com cannabis, mas diz existir muita burocracia na importação. “Além disso, não tenho grana para manter o tratamento com extrato rico em CBD importado (canabidiol, substância química encontrada na cannabis sativa). Já usei a maioria das marcas que estão no Brasil, mas todos por doação.”
O principal componente do uso medicinal da cannabis é um óleo rico em CBD, que é utilizado, especialmente, por crianças epiléticas. No Brasil, há boas evidências da eficacia na área de tratamento, especialmente a epilepsia refrataria, aquela em que não se consegue controle com outros medicamentos, em geral. Segundo o Dr. Paulo Fleury, especialista em medicina preventiva e social, com o uso do óleo da cannabis eles alcançaram bons resultados: “O óleo apresenta poucos efeitos colaterais, o que atesta a segurança deste tratamento canábico”.
Dr. Fleury é belo-horizontino, trabalha há três anos tratando pessoas com cannabis, de forma voluntária, e realizando palestras, frequentemente, em vários estados do Brasil. Ele viaja para divulgar o uso de cannabis medicinal e para atender quem precisa.
“São muitas crianças que nascem com essa pré disposição a ter crises convulsivas, logo nos primeiros meses de vida. A crise convulsiva é destruidora para o cérebro; a cannabis consegue conter isso”, comenta. Segundo ele, com o uso da cannabis, para certas condições, é possível buscar algo chamado cura, para outras, pode-se buscar o controle, que é muito necessário, por exemplo, no caso das crianças com epilepsia. Isto porque elas “não conseguem controle com os medicamentos ou com os procedimentos que são disponíveis atualmente.”
O médico conta do sucesso que obteve com uma paciente com crises epilépticas. “Foi detectado no início do tratamento, em 2014, que ela teve 127 episódios de movimentos no corpo e quase uma crise convulsiva, acordando. No último exame, em dezembro, não tinha nenhum episódio mais.”
LEGALIZAÇÃO
Ainda não é permitido pela legislação brasileira o plantio da cannabis, com nenhuma finalidade. Segundo a lei, seu plantio, mesmo em pequenas quantidades, é crime de tráfico de drogas. A cabeleireira S.L comenta que isso é um dos principais desafios no seu tratamento, já que, importar a cannabis é muito caro.
O Dr. Paulo Fleury diz que, apesar disso, hoje existem famílias que estão autorizadas legalmente a plantar para produzir o óleo para seus filhos epilépticos, já que eles precisam do óleo frequentemente para conter suas crises.
Segundo o Art. 28 da Lei 11.343, quem adquirir, guardar, tiver em depósito, trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal será submetido a penas, mesmo que seja para uso medicinal. As penas podem envolver advertência sobre o efeito da droga, prestação de serviço à comunidade, multa ou medida educativa de comparecimento a programa educativo. Vale lembrar que se for para uso pessoal, em poucas quantidades, ninguém vai preso se for flagrado portando ou se medicando com cannabis e suas derivações.
O professor de direito da PUC Minas, Pablo Alves, esclarece que “o profissional da saúde que prescrever uma dessas drogas pode, inclusive, ser penalizado com a mesma pena de prisão (cinco a quinze anos, além de multa), que um traficante de drogas.” No entanto, o seu uso medicinal pode ser autorizado e regulamentado pelo Poder Público em determinados casos.
Sobre a possível legalização da maconha no Brasil, Alves acredita que a seria uma medida viável: “Vários países têm relatado experiências positivas acerca de políticas de legalização da maconha, como a Holanda, Portugal, o Uruguai e, até mesmo, alguns Estados nos Estados Unidos”. O professor observa que o debate ainda é cercado de muito preconceito e argumentos moralistas que dificultam o avanço da discussão.
Atualmente, existem dois projetos de lei para legalização da maconha tramitando na Câmara Federal: o 7.187/2014, de autoria do deputado Federal Eurico Pinheiro Júnior, PMDB, e o 7.270/2014, de autoria do deputado Federal Jean Willys, PSOL. Para o professor, “a legalização das drogas reduziria drasticamente a superpopulação carcerária no Brasil e também representaria uma redução no número de processos, permitindo que, os referentes a crimes graves, como homicídios, latrocínios, estupros, pudessem tramitar mais rapidamente.” Ele adiciona que a polícia também teria maior efetivo para combater crimes já que, hoje, grande parte do trabalho policial gira em torno da repressão às drogas.
O Dr. Paulo Fleury acredita que o processo de legalização da maconha medicinal está sendo progressivo no Brasil: “Hoje, do ponto de vista técnico científico mais básico, a maconha já está até legalizada. Porque se retira o THC e o CBD do conceito de drogas ilícitas, a maconha tecnicamente deveria sair também, porque eles são os dois principais componentes da cannabis”. Para ele, a visão de que a maconha pode levar prejuízo aos pacientes está sendo vencida por uma série de evidências consistentes de benefícios para muitos pacientes.
Mas o médico psiquiatra, Frederico Garcia, coordenador do Centro de Referência em Drogas (CRR) da UFMG, acredita que a legalização seria prejudicial para a saúde do brasileiro, pois a maconha pode desencadear doenças. “Um dos fatores de risco é a fumaça aspirada, que aumenta o risco de câncer bucal e do pulmão. A cannabis também aumenta o risco de doenças mentais como depressão e esquizofrenia.”
O médico acha que o nível de evidências da eficácia do canabinoide é baixo e não é seguro: “Precisa-se estudar mais sobre o tema, porém, é perda de tempo investir recursos nisso, em uma planta que nem é brasileira. É dar aspecto de segurança a uma droga.”
Para B.D, enfermeira de 28 anos, a maconha ainda é proibida simplesmente por preconceito. “A maconha, é uma planta, veio da terra, é proibida por puro tabu.” B.D tem doença de Crohr, um mal intestinal inflamatório e crônico que afeta o revestimento do trato digestivo. Ela sente constantemente cólicas abdominais, náuseas, vomito e diarreia. Quando utiliza a maconha, “as cólicas passam, a náusea some, o vômito passa e consigo comer. A diarreia não para, mas só de tirar a dor é um alívio.”
Ela começou a usar maconha de forma recreativa. Quando viu que seus remédios não estavam ajudando, começou a pesquisar todo tipo de ajuda, até que viu um artigo sobre a maconha no auxílio de doenças inflamatórias intestinais.
“Para mim foi muito bom, eu não uso mais remédios sintomáticos, não tenho mais dor e não preciso me preocupar por tomar muitos analgésicos que podiam me prejudicar com o passar dos anos.”, diz. B.D não tem autorização para importar remédios derivados da cannabis e, por isso, faz seu tratamento por si só, fumando maconha.
DESCRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA ENTRA EM FOCO
Em novembro de 2016 foi realizada uma audiência pública sobre a legalização da maconha pela Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e outras Drogas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Essa audiência atendeu o requerimento do deputado Antônio Jorge (PPS-MG) e teve como convidado o jurista uruguaio, Santiago Pereira, que relatou sobre a experiência da legalização da maconha em seu país e os impactos da medida três anos depois de implantada.
O deputado Antônio Jorge, médico psiquiatra, diz não ser a favor da legalização da maconha, mas da descriminalização do usuário, “em se tratando de uso recreacional como o primeiro passo.” Ele defende que a melhor escolha é a regularização do uso, não uma liberação geral, como foi feito no Uruguai. Antônio Jorge acredita que o Brasil precisa fazer esse debate e atualmente sua meta é realizar o primeiro seminário internacional Brasil e Portugal, sobre a descriminalização. Ele considera que o Brasil tem muito que aprender com a experiência portuguesa, que já dispõe de resultados palpáveis com sua política de descriminalização há 12 anos.
Porém, quando o assunto é cannabis medicinal sua posição é outra. Junto com as associações, inclusive a AMA+ME, o deputado está lutando pela busca do reconhecimento da importância do uso para algumas famílias, defendendo a regulamentação que facilite o uso medicinal. “Queremos reverter esse cenário esdrúxulo, que penaliza um pai que está tentando melhorar as crises convulsivas do seu filho. Isso só faz sentido para uma leitura moral, só porque vem da maconha. Temos que parar de tratar a maconha como se fosse a erva do diabo”.
O terapeuta ocupacional Ronaldo Viana, também concorda com a legalização somente para uso científico (para pesquisa e como medicamento). Ele considera que existe sensacionalismo em relação à exposição de posições radicalmente contrárias e baseadas em argumentações simplistas sobre usar ou não, sem um estudo responsável sobre o tema ‘fumar maconha recreativamente’.
Para ele, as pessoas deveriam discutir menos sobre legalizar ou não o uso de maconha e se aprofundar mais na questão do significado deste uso: “Deve-se questionar mais sobre o para quê usar maconha, ou outra droga qualquer, incluindo as bebidas alcoólicas que são legalizadas e que trazem problemas, inquestionavelmente, maiores que o uso de maconha”.
Ronaldo Viana é diretor da associação ‘Terra da Sobriedade’ que promove a vida através da prevenção do uso e abuso de drogas e da recuperação e reinserção de dependentes químicos e de seus familiares na sociedade. Ele conta que na associação eles recebem pacientes com problemas gerados pela maconha, tanto por causa da dependência, quanto por causa de outros transtornos psiquiátricos, como algumas psicoses. Ele considera que qualquer substância psicoativa, quando utilizada para alteração da consciência, pode ser “porta de entrada para outras drogas”.
Como terapeuta, acredita que o pior é as pessoas acreditarem que um psicotrópico que altera a consciência pode trazer-lhes maior compreensão da realidade: “Ao inverso, de fato provoca um afastamento do real, formando uma ilusão, que só é benéfica para a manutenção de valores associados ao consumismo, materialismo, hedonismo e capitalismo, razões maiores que justificam os esforços para a comercialização livre e regulamentada da maconha, nos dias de hoje”.
Já para o deputado Antônio Jorge, a maconha faz mal se usada em excesso, pois cria uma dependência psicológica. Para ele, ela não é uma droga inocente que não traz nenhuma consequência, mas também não a considera um problema da humanidade. “Eu não defendo o uso, defendo o direito das pessoas usarem. Tratando-se da droga, o ideal é não usar, mas fazer de conta que a sociedade não usa é uma hipocrisia.”
A intenção dele é tentar regular o uso e criar medidas que não criminalizem as pessoas. “Não tenho nenhum discurso moral contra as drogas. A sociedade é consciente e a gente tem o direito de saber o que está fazendo. Informação é o mais importante. É política de esclarecimento e desincentivo ao uso. Proibir por proibir não adianta”, conclui.
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Fotografia:
Lucas Prates e Marianne Fonseca
Infográficos:
Laura Brand
Texto:
Ana Clara Carvalho e Giulia Staar
Estudantes de Comunicação Social PUC MG