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Maconha é alternativa para tratamentos
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8 anos atrásem

Por Ana Clara Carvalho e Giulia Staar
Estudantes de Comunicação Social PUC MG
A mineira Juliana Paolinelli fez sua primeira cirurgia aos 18 anos e sua segunda aos 25. Ela entrou andando no hospital e saiu dele com CID de paraplegia 82.1, uma anomalia muito grande, que envolve problemas sérios, como compressão na coluna e uma síndrome que causa dores e espasmos. A paciente neurológica crônica, hoje com 37 anos, tentou todo tipo de remédio no Brasil para acabar com sua dor, e não deu certo, até que, experimentou a cannabis medicinal. Tornou-se a primeira brasileira a receber autorização, com uma liminar, para importar um extrato cannábico, fitoterápico, o Sativex,
“Eu cheguei ao máximo que uma pessoa pode chegar para tentar livrar-se da dor, que foi usar bomba de morfina, implantada por quatro anos, ligada direto ao sistema nervoso central,” conta. Depois de lutar contra a síndrome de abstinência, causada pela bomba, ela conseguiu retirá-la. Tinha espasmos, seus joelhos batiam no seu queixo e a machucavam. Na época, precisava ir de ambulância para o hospital e passava por trás para que os outros pacientes não a vissem em crise, pois era uma cena muito forte.
Hoje, Juliana não sente tanta dor, é mãe de duas filhas e vice diretora da AMA+ME, Associação Brasileira de Cannabis Medicinal. Sua qualidade de vida é maior devido ao uso de remédios à base de cannabis: “A maconha dá uma qualidade de vida melhor para gente; a minha dor hoje em dia é suportável”. O medicamento usado por ela, atualmente, é doado: um óleo feito de um extrato rico em Tetraidrocanabinol (THC), princípio ativo da maconha, produzido no sul do Brasil. “Tomo três doses por dia do óleo e fumo nos momentos de socorro, de muita dor, pois a absorção é mais rápida pelo pulmão do que via oral.”
Segundo uma pesquisa realizada pela Hello Research, públicada pela revista “Exame” em 2016, seis em cada dez brasileiros são a favor da legalização da maconha para fins medicinais. Assim como Juliana, todos os dias, outras pessoas precisam recorrer ao uso da cannabis medicinal em seus tratamentos, mas encontram dificuldades por causa do tabu, do preço e da proibição da ‘droga’ no país.
S.L é diabética e ano passado foi diagnosticada com fibromialgia, com fortes dores da neuropatia diabética. Cabeleireira, de 48 anos, recorreu ao tratamento com remédios convencionais, o que não deu certo: ela não conseguia trabalhar, pois nem saía da cama. S.L resolveu procurar outras alternativas e descobriu a cannabis medicinal na forma “in natura”, fumada. “Nas pesquisas achei o Dr. Paulo Fleury que generosamente me atendeu e me explicou sobre o CBD e o THC e o que isso provoca em nosso corpo. Resolvi experimentar e deu certo.”
TRATAMENTO
De acordo com a AMA+ME “o benefício medicinal da cannabis pode ser alcançado através da forma ‘in natura’, fumada ou vaporizada; ingerida ou aplicada na forma de óleos ou extratos; ou beneficiada farmacologicamente para isolamento de canabinoides na forma de comprimidos, cápsulas ou sprays para uso na mucosa oral.”
Eles esclarecem que, apesar de ínfimas possibilidades, pesquisadores e pacientes ainda encontraram muitos empecilhos para utilização da cannabis. “Ainda são poucos estudos clínicos realizados, devido a predominante política proibicionista internacional, além da dificuldade na importação.”
Entre 2015 e 2016, triplicou o número de pessoas que entraram com ações na justiça contra o Ministério da Saúde, solicitando o fornecimento da cannabis para uso medicinal. De 17, no primeiro ano, passou para 46 pessoas, no seguinte. Os números são ainda maiores, já que os dados não incluem pacientes que moveram ações contra as secretarias estaduais de saúde.
Para entrar com o pedido de autorização de importação é necessário que o paciente apresente prescrição médica acompanhada de justificativa minuciosa das razões da necessidade do uso de cannabis e preencher um formulário. Até a liberação, a espera pode ser longa, dependendo do processo. Contudo, o maior empecilho continua sendo o preço. Um paciente comum não gasta menos de 300 dólares por mês, (ou seja R$ 928,50).
Juliana hoje tem três autorizações para remédios com cannabis, mas diz existir muita burocracia na importação. “Além disso, não tenho grana para manter o tratamento com extrato rico em CBD importado (canabidiol, substância química encontrada na cannabis sativa). Já usei a maioria das marcas que estão no Brasil, mas todos por doação.”
O principal componente do uso medicinal da cannabis é um óleo rico em CBD, que é utilizado, especialmente, por crianças epiléticas. No Brasil, há boas evidências da eficacia na área de tratamento, especialmente a epilepsia refrataria, aquela em que não se consegue controle com outros medicamentos, em geral. Segundo o Dr. Paulo Fleury, especialista em medicina preventiva e social, com o uso do óleo da cannabis eles alcançaram bons resultados: “O óleo apresenta poucos efeitos colaterais, o que atesta a segurança deste tratamento canábico”.
Dr. Fleury é belo-horizontino, trabalha há três anos tratando pessoas com cannabis, de forma voluntária, e realizando palestras, frequentemente, em vários estados do Brasil. Ele viaja para divulgar o uso de cannabis medicinal e para atender quem precisa.
“São muitas crianças que nascem com essa pré disposição a ter crises convulsivas, logo nos primeiros meses de vida. A crise convulsiva é destruidora para o cérebro; a cannabis consegue conter isso”, comenta. Segundo ele, com o uso da cannabis, para certas condições, é possível buscar algo chamado cura, para outras, pode-se buscar o controle, que é muito necessário, por exemplo, no caso das crianças com epilepsia. Isto porque elas “não conseguem controle com os medicamentos ou com os procedimentos que são disponíveis atualmente.”
O médico conta do sucesso que obteve com uma paciente com crises epilépticas. “Foi detectado no início do tratamento, em 2014, que ela teve 127 episódios de movimentos no corpo e quase uma crise convulsiva, acordando. No último exame, em dezembro, não tinha nenhum episódio mais.”
LEGALIZAÇÃO
Ainda não é permitido pela legislação brasileira o plantio da cannabis, com nenhuma finalidade. Segundo a lei, seu plantio, mesmo em pequenas quantidades, é crime de tráfico de drogas. A cabeleireira S.L comenta que isso é um dos principais desafios no seu tratamento, já que, importar a cannabis é muito caro.
O Dr. Paulo Fleury diz que, apesar disso, hoje existem famílias que estão autorizadas legalmente a plantar para produzir o óleo para seus filhos epilépticos, já que eles precisam do óleo frequentemente para conter suas crises.
Segundo o Art. 28 da Lei 11.343, quem adquirir, guardar, tiver em depósito, trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal será submetido a penas, mesmo que seja para uso medicinal. As penas podem envolver advertência sobre o efeito da droga, prestação de serviço à comunidade, multa ou medida educativa de comparecimento a programa educativo. Vale lembrar que se for para uso pessoal, em poucas quantidades, ninguém vai preso se for flagrado portando ou se medicando com cannabis e suas derivações.
O professor de direito da PUC Minas, Pablo Alves, esclarece que “o profissional da saúde que prescrever uma dessas drogas pode, inclusive, ser penalizado com a mesma pena de prisão (cinco a quinze anos, além de multa), que um traficante de drogas.” No entanto, o seu uso medicinal pode ser autorizado e regulamentado pelo Poder Público em determinados casos.
Sobre a possível legalização da maconha no Brasil, Alves acredita que a seria uma medida viável: “Vários países têm relatado experiências positivas acerca de políticas de legalização da maconha, como a Holanda, Portugal, o Uruguai e, até mesmo, alguns Estados nos Estados Unidos”. O professor observa que o debate ainda é cercado de muito preconceito e argumentos moralistas que dificultam o avanço da discussão.
Atualmente, existem dois projetos de lei para legalização da maconha tramitando na Câmara Federal: o 7.187/2014, de autoria do deputado Federal Eurico Pinheiro Júnior, PMDB, e o 7.270/2014, de autoria do deputado Federal Jean Willys, PSOL. Para o professor, “a legalização das drogas reduziria drasticamente a superpopulação carcerária no Brasil e também representaria uma redução no número de processos, permitindo que, os referentes a crimes graves, como homicídios, latrocínios, estupros, pudessem tramitar mais rapidamente.” Ele adiciona que a polícia também teria maior efetivo para combater crimes já que, hoje, grande parte do trabalho policial gira em torno da repressão às drogas.
O Dr. Paulo Fleury acredita que o processo de legalização da maconha medicinal está sendo progressivo no Brasil: “Hoje, do ponto de vista técnico científico mais básico, a maconha já está até legalizada. Porque se retira o THC e o CBD do conceito de drogas ilícitas, a maconha tecnicamente deveria sair também, porque eles são os dois principais componentes da cannabis”. Para ele, a visão de que a maconha pode levar prejuízo aos pacientes está sendo vencida por uma série de evidências consistentes de benefícios para muitos pacientes.
Mas o médico psiquiatra, Frederico Garcia, coordenador do Centro de Referência em Drogas (CRR) da UFMG, acredita que a legalização seria prejudicial para a saúde do brasileiro, pois a maconha pode desencadear doenças. “Um dos fatores de risco é a fumaça aspirada, que aumenta o risco de câncer bucal e do pulmão. A cannabis também aumenta o risco de doenças mentais como depressão e esquizofrenia.”
O médico acha que o nível de evidências da eficácia do canabinoide é baixo e não é seguro: “Precisa-se estudar mais sobre o tema, porém, é perda de tempo investir recursos nisso, em uma planta que nem é brasileira. É dar aspecto de segurança a uma droga.”
Para B.D, enfermeira de 28 anos, a maconha ainda é proibida simplesmente por preconceito. “A maconha, é uma planta, veio da terra, é proibida por puro tabu.” B.D tem doença de Crohr, um mal intestinal inflamatório e crônico que afeta o revestimento do trato digestivo. Ela sente constantemente cólicas abdominais, náuseas, vomito e diarreia. Quando utiliza a maconha, “as cólicas passam, a náusea some, o vômito passa e consigo comer. A diarreia não para, mas só de tirar a dor é um alívio.”
Ela começou a usar maconha de forma recreativa. Quando viu que seus remédios não estavam ajudando, começou a pesquisar todo tipo de ajuda, até que viu um artigo sobre a maconha no auxílio de doenças inflamatórias intestinais.
“Para mim foi muito bom, eu não uso mais remédios sintomáticos, não tenho mais dor e não preciso me preocupar por tomar muitos analgésicos que podiam me prejudicar com o passar dos anos.”, diz. B.D não tem autorização para importar remédios derivados da cannabis e, por isso, faz seu tratamento por si só, fumando maconha.
DESCRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA ENTRA EM FOCO
Em novembro de 2016 foi realizada uma audiência pública sobre a legalização da maconha pela Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e outras Drogas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Essa audiência atendeu o requerimento do deputado Antônio Jorge (PPS-MG) e teve como convidado o jurista uruguaio, Santiago Pereira, que relatou sobre a experiência da legalização da maconha em seu país e os impactos da medida três anos depois de implantada.
O deputado Antônio Jorge, médico psiquiatra, diz não ser a favor da legalização da maconha, mas da descriminalização do usuário, “em se tratando de uso recreacional como o primeiro passo.” Ele defende que a melhor escolha é a regularização do uso, não uma liberação geral, como foi feito no Uruguai. Antônio Jorge acredita que o Brasil precisa fazer esse debate e atualmente sua meta é realizar o primeiro seminário internacional Brasil e Portugal, sobre a descriminalização. Ele considera que o Brasil tem muito que aprender com a experiência portuguesa, que já dispõe de resultados palpáveis com sua política de descriminalização há 12 anos.
Porém, quando o assunto é cannabis medicinal sua posição é outra. Junto com as associações, inclusive a AMA+ME, o deputado está lutando pela busca do reconhecimento da importância do uso para algumas famílias, defendendo a regulamentação que facilite o uso medicinal. “Queremos reverter esse cenário esdrúxulo, que penaliza um pai que está tentando melhorar as crises convulsivas do seu filho. Isso só faz sentido para uma leitura moral, só porque vem da maconha. Temos que parar de tratar a maconha como se fosse a erva do diabo”.
O terapeuta ocupacional Ronaldo Viana, também concorda com a legalização somente para uso científico (para pesquisa e como medicamento). Ele considera que existe sensacionalismo em relação à exposição de posições radicalmente contrárias e baseadas em argumentações simplistas sobre usar ou não, sem um estudo responsável sobre o tema ‘fumar maconha recreativamente’.
Para ele, as pessoas deveriam discutir menos sobre legalizar ou não o uso de maconha e se aprofundar mais na questão do significado deste uso: “Deve-se questionar mais sobre o para quê usar maconha, ou outra droga qualquer, incluindo as bebidas alcoólicas que são legalizadas e que trazem problemas, inquestionavelmente, maiores que o uso de maconha”.
Ronaldo Viana é diretor da associação ‘Terra da Sobriedade’ que promove a vida através da prevenção do uso e abuso de drogas e da recuperação e reinserção de dependentes químicos e de seus familiares na sociedade. Ele conta que na associação eles recebem pacientes com problemas gerados pela maconha, tanto por causa da dependência, quanto por causa de outros transtornos psiquiátricos, como algumas psicoses. Ele considera que qualquer substância psicoativa, quando utilizada para alteração da consciência, pode ser “porta de entrada para outras drogas”.
Como terapeuta, acredita que o pior é as pessoas acreditarem que um psicotrópico que altera a consciência pode trazer-lhes maior compreensão da realidade: “Ao inverso, de fato provoca um afastamento do real, formando uma ilusão, que só é benéfica para a manutenção de valores associados ao consumismo, materialismo, hedonismo e capitalismo, razões maiores que justificam os esforços para a comercialização livre e regulamentada da maconha, nos dias de hoje”.
Já para o deputado Antônio Jorge, a maconha faz mal se usada em excesso, pois cria uma dependência psicológica. Para ele, ela não é uma droga inocente que não traz nenhuma consequência, mas também não a considera um problema da humanidade. “Eu não defendo o uso, defendo o direito das pessoas usarem. Tratando-se da droga, o ideal é não usar, mas fazer de conta que a sociedade não usa é uma hipocrisia.”
A intenção dele é tentar regular o uso e criar medidas que não criminalizem as pessoas. “Não tenho nenhum discurso moral contra as drogas. A sociedade é consciente e a gente tem o direito de saber o que está fazendo. Informação é o mais importante. É política de esclarecimento e desincentivo ao uso. Proibir por proibir não adianta”, conclui.
—
Fotografia:
Lucas Prates e Marianne Fonseca
Infográficos:
Laura Brand
Texto:
Ana Clara Carvalho e Giulia Staar
Estudantes de Comunicação Social PUC MG
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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL
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6 anos atrásem
17/01/19
Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.
O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.
É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.
A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.
São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.
É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.
Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.
Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.
Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.
Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke
O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.
Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.
Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.
Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.
Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?
A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.
Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.
Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.
Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.
Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.
Rodrigo Janot
Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.
Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.
26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.
A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.
Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.
Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.
Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.
Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.
Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?
Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.
Rogério Favreto
Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.
“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.
Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.
Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.
Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.
Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.
Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.
Marco Aurélio Mello
Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.
1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.
É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.
Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.
Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.
Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.
2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.
Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.
A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.
Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.
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