Violência Policial
Luiz Eduardo Soares: “Estamos na iminência da legitimação da pena de morte sem julgamento”
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Rafael Duarte
Por Rafael Duarte, da agência Saiba Mais
O antropólogo, cientista político, pesquisador e escritor Luiz Eduardo Soares é um dos principais especialistas em Segurança Pública do Brasil. Ele é autor, co-autor e organizador de mais de 20 livros sobre a área, entre eles Elite da Tropa, obra que inspirou o longa-metragem “Tropa de Elite”, do cineasta José Padilha, que escancara a violência brutal e letal da polícia, bem como as entranhas da corrupção do sistema público de Segurança no país.
Recentemente, Luiz Eduardo Soares participou em 27 de maio como convidado do I Congresso Nacional dos Policiais Antifascismo, realizado em Recife (PE), ocasião em que lançou seu mais novo livro: “Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos”. Na obra, ele defende várias teses, entre elas um novo modelo de organização das polícias, especialmente a Ostensiva (militar).
Para ele, caso o pacote penal enviado pelo ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional seja aprovado, o país vai legitimar a pena de morte. Isso porque uma das propostas é ampliar o excludente de ilicitude que permite, atualmente, crimes cometidos em legítimas defesa. Porém, no projeto apresentado por Moro, o excludente de ilicitude se estende para operadores de Segurança Pública que matem alguém “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado” quando conseguir provar que esteve em situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Subjetivas, as condições apontadas na proposta devem legalizar a execução extrajudicial, especialmente nas periferias, territórios mais vulneráveis às ações de violência policial letal.
A agência Saiba Mais conversou com o antropólogo Luz Eduardo Soares em Recife (PE). Nesta entrevista, ele fala sobre Segurança Pública, desmilitarização das polícias, o projeto penal do governo Bolsonaro e utopias:
Saiba Mais – A sociedade brasileira elegeu em 2018 um presidente armamentista e com discurso fascista. No seu mais recente livro “Desmilitarização: Segurança Pública e Direitos Humanos”, o senhor defende a desmilitarização das polícias. Como é puxar esse debate num momento como esse ? Não parece utópico demais ?
Luiz Eduardo Soares – Talvez ele seja até mais necessário justamente pelas dificuldades. Mais necessário do que nunca, desde a redemocratização, porque nós estamos na iminência de rasgar a Constituição, aliás, o que temos feito regularmente já. Então a nossa democracia, o que resta dela, está muito fragilizada. Evidente que (esse debate) acaba se situando num momento histórico muito difícil, obscurantista, regressivo… e na área de segurança pública mais ainda né ? Portanto levantar bandeiras progressivas, democráticas, o que é imprescindível nessa área, até para que o Brasil vire uma democracia que mereça esse nome, parece um contrassenso, na contramão de fato das marés, mas a gente tem que ter caminhos para o futuro.
A luta em defesa dos Direitos Humanos nunca foi a favor da maré…
É, nunca foi, mas a gente já teve momentos de respeito democrático mínimo pelo menos, e promessa de respeito, ainda que nas áreas periféricas, nos territórios vulneráveis, o genocídio de jovens negros, de jovens pobres, tenha sido uma constante, independente das variações de regime político. Mas de toda maneira havia sempre uma referência constitucional, para nós defensores Direitos Humanos que lutamos e resistimos contra a barbárie e contra a brutalidade policial letal. Para nós, eram instrumentos muito importantes, legais de resistência, sempre faz muita diferença.
Qual a diferença para o contexto atual ?
Agora a gente está na iminência de legitimação e legalização da execução extrajudicial, da pena de morte sem julgamento com essa história do excludente de ilicitude. Então se já tínhamos esse problema imenso da violência policial, agora vai se intensificar e tende a se legitimar. Então realmente o horizonte é muito preocupante. Mas temos que ter caminhos alternativos porque o Brasil há de se recuperar, a gente deve esperar, contribuir e lutar para que isso aconteça e em isso acontecendo temos que ter caminhos e ir construindo possibilidades, as opções. Para não ficar só na negativa a gente já tem que apontar os caminhos aonde investir as energias. Então acho que sempre é o momento.
“O horizonte é muito preocupante”
No posfácio do livro “Desmilitarizar”, o senhor escreve que quando eleitores escolhem, como seus representes, candidatos que se apresentam pela força, na verdade estão elegendo a anarquia. Por que a esquerda não consegue fazer com que a sociedade perceba essa relação ?
Eu mesmo me pergunto isso e com esse livro procuro responder essa pergunta. Sempre foi muito difícil, não só no Brasil, mas particularmente no Brasil. Há muitas razões: preconceitos, concepções equivocadas, negligência do debate ou a apropriação oportunista e populista do discurso demagógico punitivista para vencer as eleições, isso associado à ignorância do debate específico. Mas ao invés de ir para uma clave negativa eu prefiro ir por uma clave positiva. Por mais que a gente sonhe com uma sociedade futura sem classe, de plena fraternidade, isso está fora do nosso horizonte concreto histórico. É uma utopia, deve ser mantida, mas certamente não será para minha geração, sabe-se lá, se vier, para qual geração será. O fato é que teremos Estado até onde a vista alcança. Se vamos ter classe também temos Estado. E em havendo Estado há polícia e justiça criminal, há leis. Então as polícias serão companheiras da longa travessia, assim como o Estado. Mas qual o propósito teremos para o Estado ? Aí há muito trabalho já desenvolvido. Mas há uma parte do Estado, que são as polícias, para a qual temos pouquíssimas propostas, pouco entendimento, como se isso não nos dissesse respeito, fosse sempre matéria da direita e nos coubesse apenas lavar as mãos. O resultado é que estamos sempre entregando à direita o protagonismo e a liderança dessa área. E a nós tem cabido só o papel da crítica, que é muito importante, mas é insuficiente porque nós temos que disputar essa área com propostas nossas, que sejam compatíveis com nossos princípios, nossos valores, porque nós estamos convencidos de que será mais democrático e isso caminhará no sentido do antirracismo e no sentido da redução das desigualdades. Então se as esquerdas compreenderem que gostando ou não das polícias estaremos com as polícias ao longo dos períodos históricos que estão diante de nós, temos que ter uma proposta política para os setores dessas instituições. Isso para mim é um argumento irrefutável, a não ser que você diga que estamos na iminência de uma revolução social, que somos vizinhos da utopia e que não vamos perder tempo com isso (risos). E não vejo ninguém de fato dizendo isso, sobretudo agora. Então temos que ter essa humildade histórica e reconhecer que é preciso que haja essa política. E veja, mesmo no socialismo real as polícias são experiências trágicas. A ausência de uma reflexão a respeito de direitos humanos, democracia e socialismo também fez muito mal historicamente.
“Se as esquerdas compreenderem que gostando ou não das polícias estaremos com as polícias ao longo dos períodos históricos que estão diante de nós, temos que ter uma proposta política para os setores dessas instituições”.
O projeto enviado pelo governo Bolsonaro ao Congresso e batizado de “anticrime” pelo ministro da Justiça Sérgio Moro pode ser considerado anticrime mesmo ? Qual sua avaliação sobre a proposta ?
É uma verdadeira insanidade, vai na contramão do que seria necessário no Brasil. Primeiro que autoriza a execução extrajudicial instaurando na prática a pena de morte sem julgamento, o que incrementa um dos nossos grandes problemas, que é a violência policial letal. Segundo porque aposta no encarceramento. Nós já temos a terceira população carcerária do mundo e a que mais cresce desde 2001. Esse projeto amplia penas e cria condições para encarceramento que significa fortalecer, na verdade, as facções criminosas que dominam o sistema carcerário, além de destruir vida de jovens que não necessariamente são violentos e podiam ser aproveitados para a reconstrução de suas vidas. Haveria muitos exemplos das propostas, mas basicamente esses são os pontos principais: aposta no encarceramento em massa e na violência policial letal.
“Agora a gente está na iminência de legitimação e legalização da execução extrajudicial, da pena de morte sem julgamento com essa história do excludente de ilicitude”

O governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que também faz uso da violência para supostamente coibir a violência, é fruto apenas do “bolsonarismo” ?
Certamente o Witzel é fruto do bolsonarismo, foi eleito no vácuo de lideranças alternativas que tivessem grande popularidade e condições de se implantar puxado pelo “bolsonarismo”, principalmente nas últimas duas semanas (da eleição). Mas deveríamos pensar que ele é fruto das condições que também geraram o “bolsonarismo”, ou seja, tanto o Witzel como o Bolsonaro são expressões de algo, de algum fenômeno que nós ainda precisamos compreender. Embora o Witzel seja o ramo e o Bolsonaro seja o tronco, ambos vêm de raízes que ainda precisamos compreender.
“O Witzel e o Bolsonaro vêm de raízes que ainda precisamos compreender”
O senhor disse recentemente que o grande recado dado pela sociedade, sobretudo dos brasileiros mais pobres, nas últimas eleições, foi que a Segurança Pública também interessa a ela, um tema que a esquerda sempre negligenciou. O senhor chegou a citar uma passagem com o ex-presidente Lula nesse sentido…
Isso foi em 2001, no Jardim Ângela, um bairro de São Paulo, na época era o bairro mais violento da América Latina e que segundo a ONU era o mais violento do mundo. A violência policial era extrema e estávamos elaborando o plano nacional de Segurança Pública, fazíamos algumas audiências públicas e fizemos essa no Jardim Ângela com o apoio do padre Jaime, grande liderança dos direitos humanos. Fomos ouvir a comunidade e os representantes relataram durante muito tempo os detalhes da brutalidade policial, era muito comovente. E o Lula comentou comigo: “poxa, Luiz Eduardo, há tantos problemas importantes no Brasil como saúde, educação, e esse pessoal só está falando de polícia”. E eu compreendo o espírito que ele disse, bem intencionado, claro, mas eu falei para ele: “Lula, você é o maior líder da América Latina e nunca falou em polícia ou raramente fala. Mas para esse pessoal, polícia é questão de vida ou morte, não é um detalhe, não é uma questão secundária. Você tem que estar vivo para lutar por emprego, por saúde. É um tema muito importante e é preciso que se fale mais”.
Dentre as alternativas na área de Segurança Pública divulgadas para conter a violência, uma das mais famosas foi o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro. Porquê as UPPs fracassaram ?
As UPPs são uma longa história. Quando houve a apresentação do projeto em 2008, (Sérgio) Cabral estava em declínio político e esse foi um projeto nitidamente político com o qual ele se reelegeu no 1º turno depois e que tinha esse papel de valorização do governo diante das camadas médias e dos turistas. Não se tratava de uma política pública nem tinha dinheiro para isso. E as favelas escolhidas não eram as que mais apresentavam problemas de Segurança Pública e que mais necessitariam de iniciativas nessa área, mas eram aquelas que se situavam junto à zona sul, área nobre ou que seguiam o circuito dos grandes eventos. E além disso ainda que houvesse boas ideias como acabar com as incursões policias de cunho bélico que matam inocentes, suspeitos, nas quais morrem policiais sem que haja avanço. Então isso era uma ótima razão para que se fizesse alguma coisa, acabar com essas intervenções, tratar a favela como bairro, que merece atenção em segurança pública como qualquer outra parte da cidade, atenção de um serviço 24 horas, essa é a ideia original, e com uma abordagem respeitosa, digna da população, um tipo de abordagem acompanhando um modelo do policiamento comunitário.
“As UPPs foram um nítido projeto político”
O senhor foi um crítico desse programa desde o início…
O que eu dizia já na época da implantação é que eu não acreditava que se pudesse mudar o método de abordagem com aquela mesma polícia. Aí se dizia que iriam contratar policiais novos para isso. Mas com quanto tempo de formação ? Misturados com os policiais mais tradicionais ? Com que táticas e estratégias ? E as políticas sociais que acabaram não aparecendo, viriam junto ? Então acho que era um projeto fadado a não dar certo e acabou se convertendo na mesmice de sempre: corrupção, achaques e violência.
Quando se fala em “desmilitarizar” as polícias no Brasil muita gente ainda pensa que a ideia é desarmar os operadores de Segurança Pública. Seu livro defende a desmilitarização sob uma perspectiva dos Direitos Humanos. Na prática, o que significa a desmilitarização das polícias ?
A policia ostensiva preventiva uniformizada é militar no Brasil de acordo com artigo 144 da Constituição. E ela é considera a força reserva do Exército e deve se organizar à imagem e semelhança do Exército. A primeira pergunta que nós fazemos é muito simples: “qual a melhor forma de organização?”. Uma pergunta assim abstrata não faz sentido, depende da finalidade a que se destina a instituição. O formato ideal para uma universidade não é o mesmo de um açougue. Então porque a polícia militar haveria de copiar o modelo do Exército ? Só haveria uma resposta possível: as finalidades são as mesmas. Mas está errado porque as finalidades da polícia e do Exército não são as mesmas. A finalidade do Exército é defender a soberania nacional, o território nacional, inclusive por meios bélicos se necessário, enquanto a polícia deve garantir direitos, proteger a cidadania, etc. Então não se justifica que a estrutura de organização seja a mesma. O fato de ser militar trás uma série de prejuízos. Primeiro que não permite que os policiais se organizem, formulem suas demandas, participem do processo decisório, isso é excludente politicamente e acaba sendo instrumento de exploração da sua força trabalho. Segundo que a estrutura é muito rígida, hierarquizada e ela impede que haja aplicação de modelo de policiamento que exige atribuição de autonomia na ponta com os policiais que deveriam ter o papel decisório e isso é muito diferente do que a estrutura militar permite. Seria necessário uma estrutura mais flexível, capaz de adaptações plásticas, o que faria do policial um gestor de Segurança, e não um soldado numa guerra. E também há a ideologia da guerra, típica da estrutura militar que define o suspeito como inimigo, com consequências que estamos vendo na brutalidade policial letal que é recorde no Brasil.
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Ativista teve a casa invadida e foi intimidada por policiais
Ativista da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio de São Paulo filmava uma abordagem policial violenta, quando os policiais a viram filmando, invadiram sua casa e ela foi intimidada.
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5 anos atrásem
02/11/20por
Joana Brasileiro
Ao testemunhar uma abordagem violênta que ocorria próximo a janela da sua casa a professora e ativista Maria Nilda de Carvalho, a Dinha, começou a gravar com o celular. Os policiais perceberem a filmagem, e invadiram sua casa arrombando o portão, e a porta, abrindo a janela e derrubando a cortina. Os policiais fizeram xingamentos e jogando as luzes lanternas, tentaram intimidar a ativistas com ameaças de prisão.
Dinha é articuladora em seu bairro, zona sul de São Paulo, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, e graças a sua experiência e consciência teve coragem de gravar a ação da polícia contra pessoas no seu bairro. Ela gravava e transmitia simultaneamente a um dos grupo da Rede, para conseguir se proteger. Os policiais então invadiram a sua casa.
Campanha de proteção a Ativista
Em função dos danos causados a sua casa e a necessidade de maior proteção a ativista, a Rede lançou uma campanha no link :
https://abacashi.com/p/portas-janelas-e-camera-de-vigilancia-para-dinha as doações também servem para comprar uma câmera de vigilância e ampliar a proteção da ativista que sofreu ameaça dos policiais.
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio é um grupo que se pauta no trabalho em rede composto por organizações, como coletivos, ONGs e Pastorais, e pessoas, com atuação voluntária, que são ativistas e profissionais de várias áreas tanto do setor público, quanto do privado do Estado de São Paulo. Esta articulação de militantes denuncia as frequentes ações de violência policial, que ocorrem principalmente nos bairros periféricos de São Paulo, e buscam informar as vítimas e as conectar as instituições e ONGs que possam protegê-las.
Assista a entrevista de Dinha contando mais sobre a ação e sua atuação na Rede de Proteção ao testemunho.
A campanha Fala Quebrada promovida pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio contém dois formulários que permitem denúncias em dois casos:
Para CASOS DE VIOLÊNCIA POLICIAL, clique ou copie e cole em seu navegador: https://forms.gle/f446ajmbiPpcmyVC6
Para DENÚNCIAS RELACIONADAS A TRABALHO, clique ou copie e cole em seu navegador: https://forms.gle/qpEcaq1QgWAn4nys6
Para mais informações, acompanhar
https://www.facebook.com/RedeContraoGenocidio/
https://www.instagram.com/rededeprotecao_e_resistencia
Como a ativista foi intimidada pelos policiais
Apesar das ameaças ela não saiu de casa com medo dos policiais. Eles arrombaram a porta da sala, causando destruição em sua casa e desespero em sua família, composta por crianças pequenas. Os policiais tomaram o celular da mão de Dinha, na tentativa de apagar os vídeos, ameaçando levá-la à delegacia, incriminá-la, ou fazer isso com vizinhos, caso ela não cedesse o aparelho ou se recusasse a ir com eles.
Os policiais também olharam sua casa, fotografaram o interior e uma policial feminina a revistou truculentamente. Antes da invasão, Dinha ainda teve tempo de avisar amigos e familiares, que logo foram socorrê-la. Ao fim, os policiais foram embora e deixaram seu celular com sua vizinha.
Os policiais alegavam estar na abordagem, procurando o assassino de um outro policial, que segundo a reportagem da Ponte.org teria acontecido num bairro à 18 km. De qualquer forma nada justifica essa abordagem ilegal, que contraria a Constituição Federal, a qual garante a casa como um asilo inviolável. Neste vídeo da Ponte.org é possível ver algumas das imagens gravadas por Dinha da ação da polícia na rua e na invasão da sua casa.
Violência Policial
Frases venenosas dilaceram a alma, não educam e matam
ARTIGO: Morte de ator negro Bruno Candé, em Lisboa, faz parte de uma sequência de ações rascistas e xenofóbicas em Portugal
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5 anos atrásem
31/07/20
Assassinatos, espancamentos, palavras e omissões matam, e são a marca dos ataques racistas e xenofóbicos em Portugal. Diversas entidades estão denunciando e se reunindo para se opor a esses ataques. A morte de mais uma vítima, o jovem Bruno Candé, ator, negro e português está motivando diversas ações e um ato de repúdio está marcado para hoje (31.07.2020) Às 18h.
Esse fato não isolado, é demonstrado neste artigo de Rita Cássia Silva, que também lembra outras vítimas recentes, como Luís Giovani Rodrigues, assassinado por espancamento no fim de 2019, Cláudia Simões e sua filha, que sofreram violência física e também as frases ditas à Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra.
Por Rita Cássia Silva (*), especial para o Jornalistas Livres
“Não existe nem nunca existirá respeito
às diferenças em um mundo
em que as pessoas morrem de fome
ou são assassinadas pela cor de pele”
(Sílvio Almeida, 2019, p.190).
No início do corrente ano de 2020, pudemos observar de camarote (rede social facebook) um Deputado da Assembleia da República Portuguesa, André Ventura, Homem branco, sugerir contra uma Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra, que “seja devolvida ao seu país de origem”. O contexto demarcava uma proposta da Deputada Joacine Katar Moreira (na época integrante do partido Livre) em que os patrimónios materiais africanos preservados nos museus portugueses deveriam de ser devolvidos aos seus países africanos de origem. Embora tenham decorrido manifestações de repúdios e encaminhamentos de procedimentos contra o tal posicionamento sexista e racista do Deputado André Ventura, por parte de partidos políticos da esquerda portuguesa, junto ao Presidente da Assembleia da República Portuguesa, Dr. Eduardo Ferro Rodrigues, o facto é que os partidos não avançaram para voto de condenação para não “amplificar” as declarações do referido Deputado.
Decorre que o “episódio infeliz da democracia” sem sanção disciplinar e, com um entendimento parlamentar de que foi dado um ponto final ao episódio, reverberou-se no passado Sábado, dia 25/07/2020, no ator português, Homem negro, Bruno Candé, assassinado a queima-roupa em plena luz do dia, pelas mãos de um Homem português, branco, no auge dos seus 76 anos de idade. “Preto, vai para a tua terra” trata-se de uma frase muito utilizada contra pessoas negras naturais portuguesas ou com percursos de migrações, contra pessoas racializadas, na sociedade portuguesa em diferentes contextos. Ficámos a saber através das fontes noticiosas portuguesas que esta frase foi justamente uma das frases que Bruno Candé ouvira da boca do Homem que lhe retirou a vida. Bem como, “Vou violar a tua mãe”, “Fui à tua mãe e àquelas pretas todas de merda”, “Tenho armas do ultramar em casa e vou-te matar”.
Bruno Candé foi assassinado no seguimento do espancamento perpetrado contra o jovem estudante negro, cabo-verdiano, Luís Giovani Rodrigues, no fim de 2019, em Bragança, ato que teve enquanto consequência a sua morte. No seguimento da violência física que deixou Cláudia Simões, Mulher negra, desfigurada e sua filha pequena, criança negra, traumatizada, no Conselho da Amadora, por parte de um agente da força de segurança pública. Também no seguimento do assassinato de George Floyd pelas mãos de um agente da força de segurança pública nos E.U.A., ato potencializador do Movimento Black Lives Matter cujas reverberações fez-se sentir em diferentes localidades do globo terrestre. Em entrevista ao Apenas Fumaça (projeto de média independente), publicada no Geledés – Instituto da Mulher Negra, em 2018, Mamadou Ba, Dirigente da SOS Racismo, comunicara que “Em 15 anos mais de 10 jovens negros morreram nas mãos da polícia”. Quanto as Mulheres negras/mães, Mulheres/mães racializadas (brasileiras), Mulheres/mães brancas em situações de pobreza, as práticas de racismo/xenofobia/discriminações múltiplas não são diferentes: é-lhes negado o direito à maternidade, em situações de vulnerabilidades sociais, a saber: se forem vítimas de violências domésticas, se estiverem no país ao abrigo do tratado de saúde entre Portugal e países africanos ex-colonizados, se estiverem desempregadas e forem pedir ajuda a determinadas instituições do Estado que têm em suas prerrogativas apoiar pessoas em situações de vulnerabilidades sociais. Se não aceitarem ligar as trompas de falópio! É-lhes atribuído a condição enquanto seres humanos indignos de criarem seus filhos e filhas: “a mãe está com problemas psicológicos”, “a mãe não tem competências parentais”, “a mãe é um monstro”, “não se sabe se a mãe, por ser brasileira, é de favela ou empresária”, “a mãe é drogada, anda com drogados e não tem higiene”, “a mãe é burra”, “a mãe é muçulmana, vai praticar fanado”, “a mãe abandonou o filho”, “a mãe é agressiva”, “a mãe mente”, “a mãe é garota de programa”, “a mãe é histérica”, “a mãe trabalha de mais”, “a mãe é alienadora”… Às crianças, por sua vez, por vezes ficam órfãs de mães vivas, sendo subjugadas a vários tipos de violências (perda do direito de conviverem dignamente com suas mães e famílias biológicas – criminalização da pobreza, discriminação étnico-racial, xenofobia, reprodução social do colonialismo, abusos sexuais, discriminação de género, convivências impostas em regimes de guardas compartilhadas entre progenitores agressores e/ou abusadores e, mães protetoras, re-vitimizadas institucionalmente). Tais situações contidas em relatórios entregues a AR, através de associações civis, denunciadas publicamente em jornais portugueses, denunciadas a organismos internacionais, ao que parecem não causam nenhum movimento de empenho transformacional por parte da classe política.
No mais recente relatório da ONU, Dainius Pūras, psiquiatra, relator especial, recomenda aos Estados Membros a incorporação do Direito a Saúde Mental em todos os contextos mundiais. Recomenda que os Estados devem adotar todas as medidas necessárias para garantir a proteção e o florescimento de um espaço cívico como indicador chave do cumprimento do direito à saúde. O que significa que deve haver participação cidadã das pessoas nos processos que dizem respeito às suas vidas. Não pode haver desenvolvimento de saúde coletiva em territórios onde há negação das vozes de grupos de pessoas historicamente oprimidas durante séculos (mulheres, crianças, pessoas negras, pessoas racializadas). Pūras afirma que o modelo biomédico corre o risco de legitimar práticas coercitivas que violam os direitos humanos e podem implantar ainda mais a discriminação contra grupos que já estão em situação marginalizada ao longo de suas vidas e através das gerações.
Frantz Fanon (1968), psiquiatra, explicita-nos que:
“Por ser uma sistematização que nega o outro, uma decisão furiosa de negar ao outro qualquer atributo de humanidade, o colonialismo compele o povo dominado a se interrogar constantemente: Quem sou eu na realidade?”.
O problema é precisamente este. Vivemos no ano 2020, legitimando posicionamentos e procedimentos coloniais em Portugal. Protege-se agressores, racistas, machistas, abusadores sexuais, raramente as vítimas.
A sugestão de “devolução à sua terra” por parte de um Homem branco, detentor de privilégios, dentro da Casa da Democracia – AR, proferida contra uma das três únicas Deputadas Mulheres negras, em Portugal, feriu atrozmente a nossa democracia. Sobretudo porque além de termos perdido um momento único de afirmação dos valores democráticos em Portugal, de dignificação da pessoa humana Mulher negra (torturada durante séculos), de dignificação das pessoas humanas em suas diferentes culturas que contribuem para o desenvolvimento socioeconómico e cultural do país e de inibição de práticas nefastas à humanidade, como o racismo e o sexismo, potencializou-se socialmente mais práticas de violências contra pessoas negras, racializadas, sejam elas naturais portuguesas ou possuam elas percursos de imigrações. Bruno Candé Marques, artista negro português, nascido em Portugal em 1980, foi brutalmente assassinado devido ao racismo estrutural que não tem sido ferozmente combatido em Portugal, desde a primeira infância às faculdades, empresas, instituições do Estado e AR. Não faltam relatos das vítimas! Não faltam pesquisas qualitativas e quantitativas! Não faltam relatórios de organizações internacionais que têm vindo na última década, recomendar mudanças estruturais a Portugal.
Que o assassinato de Bruno Candé em Portugal, bem como o assassinato de George Floyd nos E.U.A., todas as mortes de pessoas negras e indígenas no Brasil, resultantes do genocídio que está a decorrer, os assassinatos de 52 pessoas em Moçambique, em Abril deste ano, as retiradas de crianças negras, racializadas, indígenas, de suas famílias biológicas, em Portugal, no Brasil, nos E.U.A., em outros países europeus, entre tantas outras barbaridades, não sejam passíveis de não serem debatidas socialmente. Somos ou não, mulheres e homens do nosso tempo? Somos ou não capazes de responder socialmente com celeridade e firmeza que não podemos ser tornados cúmplices das mais variadas formas de violências? A Bruno Candé Marques, um irmão, paz eterna. Deixou esposa e três filhos pequenos. Deixou a sua Mãe com 78 anos de idade. Mais uma Mãe Mulher negra que perde um filho para a prática racista. Do fim do século XIV até os dias atuais, as Mulheres Negras choram as retiradas violentas dos seus filhos e filhas. Séculos de desumanização do povo negro. Aos familiares e amigos do irmão Bruno Candé Marques: força positiva, resiliência, saúde e determinação. Que nunca nos esqueçamos de que o presente social esclarecedor em que estamos vivenciando em Portugal, demarca o futuro das gerações de crianças que estão crescendo. O Racismo estrutural MATA. Queremos pessoas negras e racializadas a viver em PAZ. Saudar dívidas históricas significa criar os alicerces para que pessoas com responsabilidades políticas e toda a sociedade não reproduzam discriminações racistas, sexistas ou xenofóbicas contra as pessoas. Todas as pessoas têm direito a sua dignificação. Artigo 1o da Constituição da República Portuguesa. Que faça-se Luz!
ALMEIDA, Silvio (2019), Racismo Estrutural, São Paulo, Sueli Carneiro Pólen. FANON, Frantz (1968), Os Condenados da Terra, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
RITA DE CÁSSIA é antropóloga; artista, activista e arte educadora brasileira radicada em Portugal há 19 anos. Rita, também escreve no Diário do Distrito de Setúbal, (LINK https://diariodistrito.pt/tag/rita-cassia/) , e também no Jornal Público, de Portugal (LINK https://www.publico.pt/autor/rita-cassia ) .
Acompanhe nas nossas páginas a cobertura dos atos em Portugal

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A pandemia do racismo em Portugal faz mais uma vítima
https://jornalistaslivres.org/a-pandemia-do-racismo-em-portugal-faz-mais-uma-vitima/
Violência Policial
Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social
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5 anos atrásem
12/07/20
Texto de Míriam Santini de Abreu, Paula Guimarães, Priscila dos Anjos e Fábio Bispo.
A reportagem “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% mais no isolamento social” foi realizada colaborativamente entre Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

Ilustração: Hadna Abreu
Guilherme da Silva dos Santos, 21 anos; Matheus Cauling dos Santos, 17 anos; Derick da Luz Waltrik, 17; Walace Índio Farias, 18; Wellinton Jonatan da Silva, 21; Shilaver da Silva Lopes, 22; Yure Esquivel da Rosa, 17; Lucas Pereira da Silva, 21; Everton da Rosa Luz, 22; Leonardo Leite Arruda Alves, 18; Marlon Leite Arruda Alves, 15; e Jonatan Cristhof do Nascimento, 24.
Os tempos são de pandemia, mas as 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó, no Centro de Florianópolis, não prestam homenagens aos mortos da covid-19 como milhares idênticas espalhadas em memoriais pelo país. A epidemia que sobe o morro na calada da noite, que caça alvos em uma suposta lista e sentencia ali, no calor do momento, é outra, e teve início há muitos anos. Só não inventaram ainda vacina capaz de contê-la: as mortes de jovens negros e favelados pela polícia.
A polícia catarinense matou uma pessoa a cada três dias em 2020. São 60 mortes até 29 de junho. Na pandemia, a partir de 16 de março, a letalidade cresceu 85%. Os gatilhos puxados por policiais catarinenses mataram 35 pessoas. Em 2019 foram 19 mortos nas ações policiais neste período.
Em Florianópolis, este ano, as intervenções policiais mataram pelo menos 11 jovens entre 20 de janeiro e 1º de junho. O mais novo tinha 15 anos; o mais velho, 24. Uma a cada quatro mortes violentas na cidade, este ano, foi pelas mãos da polícia. Em cinco anos já são 64 vítimas fatais nessas ações.
As famílias contestam as versões policiais, falam em execução, alterações das cenas dos crimes e negligência no atendimento. “Onde está a gravação deles que mostra que os guris os enfrentaram, como informaram no B.O.? Que eu saiba eles usam uma câmera na camisa, eu gostaria de ver, onde está?”, questiona a empregada doméstica Raquel Leite Arruda, mãe dos irmãos Marlon e Leonardo, mortos no domingo de Páscoa,
As versões conflitam com as afirmações do comandante do 4º Batalhão, coronel Dhiogo Cidral de Lima: “Todas as ocorrências foram legítimas, as pessoas envolvidas nesse enfrentamento tinham uma extensa ficha criminal”, disse o tenente-coronel, por telefone.
Um relatório de investigação conduzido pela Polícia Militar, nomeado de “Relatório Técnico Operacional” e obtido pela reportagem, elaborado pelo 4º Batalhão de Florianópolis em 2018, listou 55 pessoas na comunidade do Mocotó como envolvidos com o tráfico de drogas. Desses, quatro foram mortos em “confrontos”.
O documento virou inquérito policial, mas não foi diligenciado pela Polícia Civil. O Ministério Público chegou a alertar que investigação da PM não teria elementos para afirmar existência de uma facção.A Justiça chegou a prender parte dos citados.
“E uma verdadeira reprodução do que já havia sido apurado pela Polícia Militar, sem acrescentar nenhuma nova informação ou alargar as investigações”, relatou o promotor Luiz Fernando F. Pacheco. O inquérito tramita desde 2018 sem oferecimento de denúncia. E apesar de ter como base uma investigação da PM, nenhuma informação referente as mortes foi apresentada no inquérito. Em alguns casos, foi juntada certidão de óbito, mas sem explicações das circunstâncias das mortes.
As vidas perdidas desses jovens, que também já tinham chorado a morte de outros amigos, dizem sobre a intensificação de uma guerra sem data para terminar. Para entender o contexto da ausência de trégua, justamente quando há uma luta global para sobreviver à pandemia do novo coronavírus, investigamos algumas dessas mortes, ouvimos moradoras das comunidades, pesquisadoras, além da própria polícia e outras fontes oficiais.
Os dados desta reportagem estão no Anuário Brasileiro de Segurança Pública e nos relatórios da Secretaria de Segurança Pública de SC. A informações referentes às mortes em ações policiais em Florianópolis no ano de 2019 só contabilizam casos até o mês de junho daquele ano. A informação foi requisitada à SSP por meio de assessoria de imprensa e via LAI, mas ainda não foi disponibilizada pelo órgão.
Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a reportagem verificou que dos 12 mortos pela PM na região do Mocotó e listados na abertura desta reportagem, apenas um tinha condenação, por roubo, e quatro estavam relacionados no relatório que apura tráfico de drogas na comunidade. Os demais não respondiam qualquer ação penal na Justiça catarinense.
Sobre a investigação da PM, que alega ter como mote a existência de uma facção criminosa instalada no Mocotó, o Ministério Público apontou que os elementos são frágeis para tal afirmação, mas que constituem indicativos para prosseguimento das investigações.
Levantamento da reportagem apurou que das 64 mortes em ações policiais em Florianópolis desde 2016, cinco casos foram distribuídos para a Vara do Tribunal do Júri. Ou seja, apenas 7% das mortes em operações policiais serão analisadas na Justiça.
Para a professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Flavia Medeiros, casos de violações de direitos, que envolvem tortura, tentativa de morte e morte, mostram que as instituições policiais estão mais preocupadas com o uso da força e manutenção de uma ordem hierárquica e desigual na sociedade, do que necessariamente com a proteção dos cidadãos. “É papel do MP [Ministério Público] o controle externo do uso da força, tanto MP quanto judiciário são omissos neste controle. E essa omissão é forma de corroborar com a ação policial”.
:.Leia a entrevista completa com a pesquisadora em gestão de mortes Flavia Medeiros (mais…)
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