O enredo de ‘O processo’, documentário de Maria Augusta Ramos, não é novo: conhecemos os fatos, os personagens e os desfechos; e ao revê-los a nostalgia passa longe, os significados já são outros. A tragicidade e as consequências do ocorrido político-histórico que o filme retrata mina qualquer saudade do período. Com referências diretas ao romance de Franz Kafka (na verdade os fatos em si o fazem), o filme debruça sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, entre a aceitação do pedido em dezembro de 2015 e seu término em agosto de 2016.
No entanto, ao contrário de Joseph K., o protagonista do romance de Kafka, a equipe de defesa de Dilma Rousseff tem conhecimento da acusação, está lá muito bem impresso nos autos: os seis decretos suplementares, as chamadas ‘pedaladas fiscais’. O universo kafkiano aproxima-se do processo de Dilma porque é uma luta dela contra um sistema previamente engendrado e que se desenrola por um caminho antes trilhado por interesses diretamente opostos que se misturam ao papel de juízes. Ou seja, a luta de Dilma contra o “grande acordo nacional, com Supremo, com tudo”. E desenrola como desenrolou simplesmente por motivos de aparência legal e sedução da opinião pública, como se a chancela judicial fosse sinônimo de justiça. Assim como Joseph K., Dilma e sua equipe de defesa, esgotaram os recursos e mesmo que houvesse outros não alterariam seus fatídicos destinos, embora mesmo a defesa de Dilma constatando que o processo é pura fachada, a esperança de uma próxima fase imparcial não se esvai. Em suma, a ânsia por julgamento imparcial e transparente une Joseph K. e Dilma Rousseff.
O filme de Maria Augusta Ramos mostra então precisa e didaticamente os porques desse processo de impeachment caracterizar um golpe de Estado ao acompanhar os bastidores da equipe de defesa composta pelo Advogado Geral da União José Eduardo Cardozo, a senadora Gleisi Hoffmann e o senador Lindberg Farias. Acompanha no sentido do cinema direto, sem interferir nos fatos, sem entrevistas, apenas a câmera apontada para o desenrolar dos acontecimentos. Dado o caráter claro e até onde possível sintético (pouco mais de duas horas das 440 horas de material gravado, além de pesquisa de arquivo), o filme serve para uma comunidade internacional aquém de informações sobre o impeachment. E ele está funcionando muito bem nesse circuito: grande repercussão na estreia em Berlim, sala lotada e muito aplaudido em Lisboa (onde tive o oportunidade de assistí-lo).
Maria Augusta Ramos dispensa a voz-off, mantém trechos inteiros e pontuais de fala tanto dos acusadores quanto da defesa ao invés de manobras de montagem a partir de retalhos de texto falado. A ética da diretora tem plena consciência da historicidade do acontecimento e dos argumentos de cada lado, não é precisa forçá-los. Assim como a defesa, a acusação é o que é: o constrangimento se dá exclusivamente pela leviandade e sentimentalismo numa acusação que deveria ser pautada por um racionalismo cirúrgico, como por exemplo faz a defesa de Gleisi, Cardozo e Lindberg. A diferença de preparação, de clareza, de lógica, de lucidez é abismal. Mas num jogo de cartas marcadas pra que seriedade por parte de quem vai ganhar?
Outro ponto magistral do filme é a escolha de Maria Augusta Ramos em centrar a câmera nas personagens mulheres Gleisi Hoffmann e Janaína Paschoal sem minar a importância para o processo dos demais personagens, o advogado José Eduardo Cardozo e o senador Lindberg Farias por parte da defesa e o senador tucano Cássio Cunha Lima por parte da acusação. Afinal é um filme de uma mulher sobre o impeachment de outra mulher e, como colocado no filme, motivado também por um ímpeto patriarcal.
O processo de impeachment serviu ainda como uma espécie de divã para o Partido dos Trabalhadores. Ali mesmo, na frente da câmera, analisa-se os erros, as escolhas conservadoras, as mudanças de direção, as alianças equivocadas. Aqui novamente o caso aproxima-se ao livro de Kafka em que Joseph K., atormentado e desorientado pela sua derrota, auto-analisa-se em busca de motivos para estar naquela situação.
A referência ao escritor moderno aparece ainda discretamente na estante da presidenta ao receber uma comitiva de jornalistas estrangeiros e no sentimento do senador Lindberg Farias que após quase esgotar-se de forças perante a irrealidade do processo, compara Dilma com o personagem de Kafka. E com razão, cada um de nós que a cada votação, a cada derrota, fomos nos perdendo nos cacoetes do jurisdiquês e da burocracia tendenciosamente traduzidos pelos grandes veículos de imprensa (a mídia golpista, alcunha desse perído), sentimos-nos, cada um a seu tempo, impotentes diante do esquema previsto no já célebre áudio entre o senador Romero Jucá e do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado.
A acusação, representada hoje pelo situação do governo Temer, nunca terá um filme documentário-direto do processo de impeachment porque, para fazer valer de seus argumentos, nem o mais hábil dos montadores conseguiria validar o conteúdo produzido pela acusação diante dos fatos. O lado pró-impeachment tem que recorrer às manobras ficcionais como as de José Padilha e Marcelo Antunez, com produções recheada de estrelas globais, clichês e dinheiro para reconstruir contexto, fatos e narrativas.
Em certa altura do filme Gleisi diz-nos que estamos diante de um movimento conservador por parte da sociedade. É verdade. E para ajudar a compreender momentos como esse esbarrei numa citação de uma amiga historiadora, Letícia Santos, em outro contexto mas que encaixa muito bem nesse: “a história não caminha num processo contínuo e linear, não há um trilho intransponível sem escalas para o conhecimento, o desenvolvimento social e democrático. Eles não são cumulativos, eles se transformam. Cabe a nós como sociedade tentar manter a mudança com os valores mais humanitários possíveis.
O processo, e Kafka, se repetem hoje, com Lula.
*por Pedro Ivo Carvalho, Midiálogo pela Unicamp, especial para os Jornalistas Livres
O filme estréia no circuito de cinemas de todo o Brasil no dia 17 de Maio.
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