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Amazônia

Exclusivo: Fogo e negligência nas políticas ambientais ameaçam a Amazônia

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Por: Cyro Assahira (Doutorando em em Ciência Ambiental e Juliana Lins (Mestre em botânica).

Fotos: Cyro Assahira

“o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) recebeu a denúncia de que grupos que apoiam o governo iriam promover queimadas pela Amazônia em um denominado “Dia do Fogo”.

Desmontes das instituições de preservação e conservação da Amazônia, aumento do desmatamento, negligência a dados ambientais e fogo na Amazônia colocaram a região no centro do mundo. 

Não seria exagero dizer que a Amazônia agora é o centro do mundo, é para onde os debates políticos, econômicos, científicos e culturais estão voltados. As discussões têm tomado cada vez mais corpo desde o anúncio pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial) do aumento do desmatamento na Amazônia em 88% com relação ao mesmo período do ano passado [1]. Em seguida, uma nuvem de fumaça que veio das queimadas percorreu grande parte do Brasil, colocando preocupações na cabeça de todo o mundo. Nesse preâmbulo uma guerra de informações e a disputa por uma verdade têm ocorrido. 

A importância global da Amazônia para a manutenção da biodiversidade, ciclos da água e como estoque de carbono é amplamente debatida e de alguma forma se coloca como um assunto comum em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a imagem de um ambiente selvagem à parte da sociedade humana ganhou contornos. Com a suposta separação entre sociedade dos homens e a natureza, somos colocados em um caminho de intensa exploração dos recursos naturais sem refletir que o que está sendo destruído faz parte da própria ecologia em que estamos inseridos. Junto a esse preâmbulo vem a narrativa econômica neoliberal a favor da intensa atividade exploradora do meio natural com a justificativa de ser uma necessidade para o desenvolvimento do país.

Ao longo das últimas décadas, a perspectiva da Amazônia ou qualquer ambiente natural estar a parte das sociedades humanas tem sido questionada. Em muitos casos refutada diante de estudos científicos que têm trazido à tona o fato de que a Amazônia é amplamente habitada por povos originários e tradicionais desde tempos pré-colombianos. A floresta foi moldada a partir da interação sustentável e duradoura com os povos indígenas, que ainda hoje perpetuam tais práticas. Aliás, seus territórios se encontram especialmente preservados com relação às áreas de floresta fora desses territórios [2].

Pesquisas têm demonstrado que o desmatamento está relacionado com maiores incidências de queimadas [3], derrubar a floresta a deixa mais suscetível a propagação do fogo com a maior incidências de ventos e a presença de materiais de fácil combustão como galhos e madeira secas [4]. Nesse sentido o aumento do desmatamento também pode estar relacionado com a intensidade e a quantidade dos incêndios que estão ocorrendo neste instante. No mês anterior à atual onda de incêndios, o desmatamento na Amazônia aumentou em 88% com relação ao mesmo período no ano passado. Tal desmatamento foi tratado como descaso, com a exoneração do diretor do INPE logo após a publicação desses dados. Os mesmos dados foram questionados pelo atual ministro do meio ambiente Ricardo Salles, apontando que teria sido um erro nas estimativas. A postura do ministro do meio ambiente diante do aumento do desmatamento, não foi tomar medidas que freassem a devastação da floresta e sim buscar formas de invalidar os fatos publicados por um órgão do próprio governo [5]. 

Desde o início da gestão do atual ministro Salles, os órgãos fiscalizadores do meio ambiente estão sofrendo desmonte, o orçamento do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) foi reduzido em 24%, o que não cobre nem as despesas fixas do ano, refletindo na diminuição da capacidade de fiscalização [6]. Diante da negligência do governo brasileiro em combater o desmatamento, os principais financiadores do Fundo Amazônia (um fundo criado para projetos de preservação e conservação da Amazônia), Noruega e Alemanha, bloquearem seus repasses e com isso o cenário de devastação da Amazônia pode se agravar ainda mais nos próximos meses. A questão ambiental no governo Bolsonaro tem sido tão controversa que em maio de 2019, todos os ex-ministros do meio ambiente de governos anteriores se reuniram em uma frente de oposição ao projeto ambiental em andamento [7].

O que chama a atenção em muitos dos fatos que têm chocado a opinião pública [8], é que tudo isso fez parte da campanha eleitoral, ou seja, está tudo de acordo com as promessas de governo para área ambiental. Assim, é difícil não atribuir, em algum nível, as queimadas que chocam o mundo ao projeto político e ao discurso do atual governo brasileiro.

Anualmente no período de seca, em especial de agosto a setembro, as queimadas se acentuam na Amazônia. Considerar somente os dados de fogo em isolado, sem levar em conta o contexto em que se insere, tem sido utilizado como argumento de membros do governo federal para atribuir as queimadas às causas naturais e à terceiros, ausentando-se da responsabilidade – O ministro Sales atribuiu às condições climáticas e o presidente Bolsonaro trouxe a hipótese de ter sido causado por ONGs ambientais insatisfeitas com os cortes financeiros [9]. No entanto, 2019 não é um ano especialmente seco na Amazônia, que são os anos em que ocorrem as maiores incidências de queimadas. E contradizendo a afirmação do presidente de que os incêndios podem ter sido causados por ONGs Ambientalistas, segundos documentos publicados pelo site Poder 360 [10,11], o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) recebeu a denúncia de que grupos que apoiam o governo iriam promover queimadas pela Amazônia em um denominado “Dia do Fogo”. O Ibama solicitou ajuda à Força Nacional para combater o grupo, mas não foi atendido. No dia 25 de agosto, o site da revista Globo Rural [12] publicou uma reportagem que revela que mais de 70 ruralistas (fazendeiros, criadores de gado e proprietários de grandes propriedades rurais) haviam combinado por Whatsapp de colocar fogo em diversos pontos da floresta. Segundo a reportagem, o ato teve como justificativa mostrar apoio ao presidente Bolsonaro que têm afrouxado a fiscalização ambiental. 

Ao longo das últimas semanas, diversos protestos têm ocorrido pelo Brasil e pelo mundo contra as políticas ambientais do governo Bolsonaro. Este momento tem gerado profunda comoção acerca da Amazônia e muitos se questionam sobre o que fazer. Sabe-se que a principal causa de desmatamento na Amazônia está atrelada a expansão da agropecuária com suas plantações de soja e a criação de gado [13], assim, a proteção da Amazônia passa pelas mudanças de hábitos alimentares e de consumo. Outros processos relacionados com as mineradoras [14] e empreendimentos que precisam do recurso hídrico para a produção da energia elétrica [15] também possuem um enorme peso destrutivo na região e estão todos relacionados com o modelo de desenvolvimento atual. O cenário atual gera reflexões sobre as imediatas consequências da negligência com as questões ecológicas e se coloca como um importante momento para se pensar criticamente como resistir aos processos estruturais que têm que levado a crise ambiental na Amazônia. 

Políticas que já vinham acontecendo em governos anteriores – em maior ou menor grau – em relação à Amazônia ajudaram a frear um pouco o desmatamento: iniciativas de geração de renda com produtos da sociobiodiversidade, investimento do Estado para fiscalização de territórios, incentivo a vigilância de território pela própria população local, multas aplicadas contra crimes ambientais, programas de monitoramento do desmatamento, incentivo a pesquisa na região amazônica, demarcação de Terras Indígenas, criação de Unidades de Conservação, incentivo ao transporte fluvial na região amazônica em detrimento a abertura de estradas. 

É importante uma parceria entre Estado, movimentos sociais e a sociedade civil organizada. A maneira que o Estado brasileiro vem agindo a partir desse ano vem de encontro a tudo isso. As consequências são drásticas. Algumas regiões amazônicas, como o Estado do Acre e Rondônia foram desmatados muito rapidamente, a partir da década de 70, em um processo de ocupação da Amazônia com forte incentivo de migração de pessoas advindas das regiões sul e sudeste e a abertura de estradas. A Amazônia é imensa e é difícil acreditar que é possível acabar com ela, mas ao se aprofundar na história das regiões mais desmatadas, percebe-se, com perplexidade, que o processo de destruição é rápido e irreversível. Perde-se de muitas formas: perde-se biodiversidade, perde-se em mudanças climáticas, perde-se em centenas de modos de vida que nos ensinam que outros mundos são possíveis. Possíveis e necessários.   

Sobre os autores:

Juliana Lins é bióloga, vive e trabalha na Amazônia há 8 anos. Durante suas pesquisas de mestrado em botânica, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, trabalhou com etnobotânica em interfaces com a arqueologia com o objetivo de entender os processos que levaram a Amazônia a ser, pelo menos em parte, uma floresta domesticada e cultural, resultado do manejo de populações indígenas desde tempos pré-colombianos. Nos últimos 3 anos trabalhou com pesquisas interculturais em parceria com pesquisadores indígenas no Noroeste da Amazônia.

Cyro Assahira é fotógrafo que durante o bacharel em biologia marinha estudou a percepção das mudanças climáticas por pescadores artesanais no ambiente costeiro. No mestrado em botânica, realizou pesquisas com o impacto das hidrelétricas nas florestas alagáveis da Amazônia. Também colaborou com pesquisas de dinâmica florestal na Amazônia. Atualmente é doutorando em Ciência Ambiental (Procam/USP) e investiga as conexões entre democracia, questões ecológicas e o Comum.

  1. Fearnside, P.M. 2019. Brazilian Amazon deforestation surge is real despite Bolsonaro’s denial (commentary). Mongabay, 29 July 2019. https://news.mongabay.com/2019/07/brazilian-amazon-deforestation-surge-is-real-despite-bolsonaros-denial-commentary/
  2. Nepstad, Daniel et al. Inhibition of Amazon deforestation and fire by parks and indigenous lands. Conservation biology, v. 20, n. 1, p. 65-73, 2006.
  3. Aragao, Luiz Eduardo OC, et al. “Interactions between rainfall, deforestation and fires during recent years in the Brazilian Amazonia.” Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 363.1498 (2008): 1779-1785.
  4. Cochrane, Mark A. Fire science for rainforests. Nature, v. 421, n. 6926, p. 913, 2003.
  5. Fearnside, P.M. 2019. As Amazon deforestation in Brazil rises, Bolsonaro administration attacks the messenger (commentary). Mongabay, 3 August 2019. https://news.mongabay.com/2019/08/as-amazon-deforestation-in-brazil-rises-bolsonaro-administration-attacks-the-messenger-commentary/
  6. Arroyo, Priscilla, (2019, 1st May). Corte de recursos do Ibama ampliará desmatamento. Retrieved from. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588764-corte-de-recursos-do-ibama-ampliara-desmatamento

  7. Gortazar, Naiara Galarraga e Betim Felipe, maio de 2019. Uma inédita frente de ex-ministros do Meio Ambiente contra o desmonte de Bolsonaro. El País, Brasil.  https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/08/politica/1557338026_221578.html

  8. Fearnside, P.M. 2018. Why Brazil’s New President Poses an Unprecedented Threat to the Amazon. Yale Environment 360, 8 November 2018. https://e360.yale.edu/features/why-brazils-new-president-poses-an-unprecedented-threat-to-the-amazon

  9. O Globo, 2019. Ministro do Meio Ambiente afirma que parte dos incêndios na Amazônia é intencional, 27 agosto de 2019. https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-do-meio-ambiente-afirma-que-parte-dos-incendios-na-amazonia-intencional-23894245

  10. Roscoe Beatriz, 2019. Força Nacional ignorou alerta sobre ‘Dia do Fogo’, mostram documentos. Poder 360 https://www.poder360.com.br/brasil/forca-nacional-ignorou-alerta-sobre-dia-do-fogo-mostram-documentos/

  11. Revista Fórum, 2019. Amazônia em chamas: Ruralistas combinaram “dia do fogo” no Whatsapp por apoio a Bolsonaro. Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/amazonia-em-chamas-ruralistas-combinaram-dia-do-fogo-por-whatsapp-por-apoio-a-bolsonaro/

  12. Matias Ivaci, 2019. Grupo usou whatsapp para convocar “dia do fogo” no Pará. Revista Globo Rural. https://revistagloborural.globo.com/Noticias/noticia/2019/08/grupo-usou-whatsapp-para-convocar-dia-do-fogo-no-para.html

  13. El País, 2019. Ibama diz que Força Nacional ignorou alertas sobre “Dia do Fogo” no Pará. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/27/politica/1566859677_529901.html

  14. Zycherman, Ariela. “Cultures of soy and cattle in the context of reduced deforestation and agricultural intensification in the Brazilian Amazon.” Environment and Society 7.1 (2016): 71-88.

15.  El Bizri, Hani Rocha, et al. “Mining undermining Brazil’s environment.” Science 353.6296 (2016): 228.

  1. Fearnside, Philip M.; PUEYO, Salvador. Greenhouse-gas emissions from tropical dams. Nature Climate Change, v. 2, n. 6, p. 382, 2012.

 

 

Amazônia

Morte de líder Kumaruara revela a falta de assistência a indígenas no baixo Tapajós (PA)

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Picado por cobra, Alberto Castro Bispo só foi socorrido 6 horas após o comunicado à Secretaria Especial de Assistência Indígena de Santarém-PA

Reportagem originalmente publicada por Amazônia Real

Por: Tainá Aragão

Fotos: Leonardo Milano

Corpo de Alberto é recebido por parentes – Foto: Leonardo Milano / Amazônia Real

Santarém (PA) – “Perdemos mais um Kumaruara por negligência do desgoverno”. A frase em tom de desabafo faz parte da carta-manifesto publicada em 4 de outubro, dia em que morreu o líder Alberto Castro Bispo, 47 anos. O indígena foi picado por uma serpente surucucu e foi a óbito durante a travessia fluvial pelo rio Tapajós por falta do soro antiofídico e assistência médica. A morte causou revolta ao povo Kumaruara, que há anos reivindica acesso à saúde na região da Reserva Extrativista Tapajós- Arapiuns, no Pará, inclusive na pandemia do novo coronavírus.

Por estar no meio da floresta e pelo alto grau de envenenamento, Alberto só conseguiu chegar na aldeia Mapirizinho, na Resex Tapajós-Arapiuns, às 11 horas do mesmo dia, sendo duas horas após ter sido picado. Naquele momento, a comunidade se mobilizou para tentar a sua remoção por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), ambas com sede em Santarém. Mas a lancha da Sesai levou cerca de 6 horas para chegar e Alberto não resistiu ao translado, vindo a óbito nos braços de sua companheira. Eles estavam a caminho de Alter do Chão, no Baixo Tapajós, onde uma ambulância terrestre ainda o levaria para Santarém.

“Ele me olhava e dizia: ‘Minha velha, eu não vou resistir, não’. Se fossem buscar, eu tenho certeza que ele ia escapar. A ambulancha chegou e quando deu umas 18h15 ele deu o ataque no meio do caminho. Aí botei a mão no nariz dele e estava seco, eu estava ali do lado dele, sozinha, e falei para o motorista: ‘Ele já se foi’”, lembra Renita Melo, viúva de Alberto e mãe de seus seis filhos. “Tenha fé em Deus”, ouviu em resposta. Ela chegou a pedir soro aos socorristas, mas só ouviu: “Não temos. [Então] viemos na ‘tora’”, referindo-se a uma expressão local que quer dizer “sem resitar”.

Após o falecimento, parentes e parte da comunidade, em luto, fizeram uma manifestação no dia 5 em frente a Casa de Saúde Indígena (Casai) do município de Santarém. A líder indígena Luana Kumaruara explica que se houvesse mais infraestrutura, mortes poderiam ter sido evitadas. “Estamos em um período de pandemia, além de sofrermos com os impactos dos grileiros, ‘sojeiros’ e madeireiros, também temos que lidar com esse descaso com a saúde, porque dentro da Amazônia não termos esse soro pra picada de cobra. É absurdo, e isso tem que ser prioridade. Já perdemos dois Kumaruara no último mês [setembro] e não dá pra fazer vistas grossas por tudo que estamos passamos”, enfatiza.   

As mortes que Luana se refere são a dois idosos. Eles morreram em consequências de problemas cardíacos. Segundo ela, a comunidade Kumaruara também enfrentou problemas na liberação e remoção dos corpos.

pandemia de Covid-19, que também não dá tréguas, já registrou 1.414 casos confirmados entre os indígenas e 17 mortes de Covid-19 na Resex Tapajós-Arapiuns. Os dados são do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Guamá Tocantins, ligado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Não há registro de mortes pelo vírus entre os Kumaruara.

Na Resex Tapajós-Arapiuns, além dos Kumuruara, vivem também as etnias Tupinambá, Munduruku, Apiaká,  Borari, Maytapu, Cara Preta, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha e comunidades ribeirinhas tradicionais. A Resex fica na região conhecida como Baixo Tapajós, no ponto de encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas. Os Tupinambá são os mais atingidos pela pandemia da Covid-19.

Uma lancha para atender a todos

Velório do líder indígena Alberto Kumaruara 
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

O corpo de Alberto Castro Bispo foi levado à comunidade para o enterro ainda no dia 5, após 12 horas. Houve uma burocracia para liberação do corpo por parte do Instituto Médico Legal (IML), pois Alberto faleceu em trânsito e não havia um médico na ambulancha para atestar o óbito. Um médico de Santarém teve que fazer a perícia. O velório aconteceu na comunidade Mapirizinho, por volta das 15h, e o enterro entre 17h e 18h.

A Sesai justificou à comunidade que não teria disponibilidade de horário de voo para fazer remoção de helicóptero e tampouco contava com o serviço de um marinheiro para conduzir a ambulancha. O transporte fluvial foi adquirido em julho pela Sesai, mas está parado. “Estamos há meses esperando que a Sesai faça a contratação dos barqueiros. O Samu respondia que a ambulancha da Secretaria Municipal de Saúde estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível buscá-lo às 17 horas. Ou seja, apenas uma ambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios”, diz a carta-manifesto dos Kumaruara. 

Em nota à Amazônia Real, a Sesai, órgão subordinado ao Ministério da Saúde, por meio do Dsei Guamá Tocantins, diz “lamentar” o falecimento do indígena e se justifica: “Há seis Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (Emsi) na região, atuando de forma volante, levando atendimento de saúde para as aldeias”. Mas admite que faltam profissionais contratados. “O Dsei adquiriu oito novas embarcações fluviais para atendimento da região e os barcos já estão operando no transporte de urgência e emergência de pacientes e equipes de saúde. Os processos de contratação de barqueiros e horas-vôo encontram-se em tramitação, em data anterior ao acidente”, diz a nota.

Segundo Jean Cunha, coordenador do Samu em Santarém, há duas ambulanchas do município, que atuam na região ribeirinha da bacia de três grandes rios: Amazonas, Tapajós e Arapiuns. Apesar da equipe reduzida e da falta de infraestrutura adequada, o Samu alega que se tenta dar suporte às comunidades indígenas. “A Sesai está há um tempo muito grande esperando pra fazer contratação da equipe e isso sobrecarrega o Samu, pois a gente dá suporte para todas as comunidades vizinhas e também às indígenas. Eles não podem colocar as demandas só para o Samu; eles têm hora de helicóptero e uma ambulancha equipada, se a gente tivesse esse material faríamos muitas remoções. Ter o material e não saber usar, fica difícil”, enfatiza o coordenador.

Na Resex, são 75 comunidades, entre indígenas e não-indígenas, e apenas 10 Unidades de Saúde. As mais próximas da comunidade indígena Mapirizinho são Suruacá e Parauá, a cerca de 15 quilômetros de distância. Mas nenhuma das unidades possui o soro antiofídico, específico para conter o veneno da serpente, como explica o agente de saúde do posto de Suruacá, Djalma Lima.

“Não existe soro nem para picada de cobra, nem de aranha, nem de lacraia, porque não tem energia elétrica no posto, e não tem como armazenar. Além disso, para se ter esse soro dentro das comunidades, precisa de um médico, de uma infraestrutura adequada, com geladeira e não temos”. Djalma enviou, por intermédio de seu filho, um punhado de medicina natural para tentar amenizar a dor de Alberto. “Mandei pra ele uxi [fruto nativo] para conter o veneno, mas já era tarde”, diz o agente de saúde. 

Para Roselino Kumaruara, cacique da comunidade Mapirizinho e genro do falecido, o descaso com a população tradicional, indígenas e pescadores, que vivem no outro lado do rio é constante. “Essa situação é ruim. Perdemos um parente e não podemos mais trazer ele de volta, já houve outros casos como esse. Quando a gente liga, não tem. A gente fica triste, mas fica com raiva também. A gente tem muitas barreiras pela frente”, protesta o cacique.

Luta pelo acesso à saúde

Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

O caso de Alberto Castro Bispo não é isolado. Desde 2015 os povos indígenas do Baixo-Tapajós, por meio do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), reivindicam acesso à saúde indígena. Em 2016, houve a ocupação do Polo Base da Sesai, em Santarém. Após a ocupação, as comunidades indígenas obtiveram acesso ao direito da saúde por meio de uma decisão judicial a partir de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF).

Mesmo com o reconhecimento, a principal luta dos indígenas nos municípios de Aveiro, Santarém e Belterra continua sendo a mesma de cinco anos atrás: a criação de um novo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) para a região. Atualmente, Santarém está incluído no Dsei Guamá-Tocantins, com sede em Belém, a 1.375,8 quilômetros do município. Ou seja, cerca de 22 horas por transporte terrestre, o que dificulta ainda mais o acesso aos atendimentos.  

“Não dá pra gente ficar vinculado ao Dsei-Guamá-Tocantins que está em Belém, o que dificulta o diálogo. Por isso, estamos entrando com um documento no MPF para pressionar mais uma vez a criação do Distrito”, explica a líder Luana Kumaruara.

O Dsei Guamá Tocantins atende a uma população de 17.198 indígenas de 42 etnias, que vivem em 186 aldeias. O órgão conta com 31 Unidades Básicas de Saúde  e oito polos bases, além de cinco Casas de Saúde Indígena (Casais). 

Cortes na Saúde Indígena 

Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

A saúde indígena funciona por meio de um Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), coordenado pela Sesai. Articulado com o SUS, descentralizado, e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, o SasiSUS é organizado em 34 Dseis, distribuídos em todo o território nacional. Os distritos são responsáveis por prestar atenção primária em saúde aos povos que moram nas Terras Indígenas. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas.

Conforme o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo Inesc, Instituto especializado em orçamento público e Direitos Humanos no Brasil, a política de saúde indígena foi um capítulo significativo na ofensiva aos direitos destes povos.

“Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhões contra R$ 1,76 bilhões em 2018, cerca de R$ 280 milhões a menos. Isto certamente compromete o atendimento deste grupo da população, que tem diversos indicadores de saúde piores que a média brasileira, como suicídio, desnutrição e mortalidade infantil e algumas doenças infecciosas, como a tuberculose”, informa o relatório.

O relatório do Inesc aponta, ainda, que os cortes orçamentários demonstram que há uma violação de direitos direta sobre essas populações: “As medidas legislativas e executivas de iniciativa do governo demonstram que está em curso uma política de destruição intencional e sistemática dos modos de vida e da cultura dos povos indígenas.” 

Neste ano atípico, em meio à pandemia, as vulnerabilidades e os abismos sociais se mostram ainda mais profundos. Com o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, por meio da PEC 241 – também chamada de PEC 55, no Senado – e implementada por Michel Temer (2016-2019), a tendência é que as comunidades mais vulneráveis, incluindo os povos tradicionais, populações amazônidas, ribeirinhas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas e agricultores, continuem sendo impactadas pelos déficits na saúde e na educação. 

“Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. Vidas Indígenas Importam!”, afirma a última linha da carta-manifesto do povo Kumaruara.

Amazônia Real entrou em contato com a Secretária de Saúde do Pará para buscar informações sobre óbitos por animais peçonhentos na região, mas até o dia 13 não obteve resposta. 

Sepultamento do corpo do líder indígena Alberto Kumaruara morto por picada de cobra
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

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Amazônia

Em Santarém (PA), indígena picado por cobra morre por falta de atendimento

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Em carta, povo Kumaruara denuncia descaso do poder público com a saúde indígena

No começo da noite do último domingo (4), Alberto Castro Bispo, indígena do povo Kumaruara, faleceu, vítima de uma picada de cobra, e do descaso do poder público. Alberto foi picado pela manhã, mas só conseguiu ser atendido no final da tarde. A SESAI (Secretaria de Saúde Indígena) alegou que não tinha horas de voo disponíveis de helicóptero para fazer o atendimento, nem marinheiro para pilotar a lancha até a aldeia.

Neste momento, a esposa de Alberto está em Santarém, tentando liberar a liberação do corpo de seu companheiro; também encontra dificuldade para conseguir, com a SESAI, transporte até a aldeia. Parentes de Alberto estão em frente à SESAI, protestando contra o descaso na saúde indígena.

A reportagem dos Jornalistas Livres está acompanhando o caso. Segue a carta do povo Kumaruara.

CARTA/MANIFESTO DE REVOLTA DO POVO KUMARUARA

É com pesar que o povo Kumaruara comunica que está em LUTO.

Uma perda que poderia ter sido evitada, os povos da floresta continuam padecendo e morrendo pela falta de assistência médica dentro da Amazônia, sem posto de saúde, rádio transmissão e ambulancha para socorro.

Sr. Alberto Castro Bispo, pertencente do povo Kumaruara, aldeia Mapirizinho nas margens do rio Tapajós foi picado por uma cobra surucucu, neste domingo (04/10/20) por volta de 9 horas da manhã no meio da floresta, quando conseguiu chegar na aldeia se arrastando pedindo socorro era 11 horas, a hora em que a aldeia começou se mobilizar, entrando em contato com órgão competente SESAI e SAMU para fazerem remoção do paciente.

No primeiro momento a SESAI justificou que não tem “hora vôo” para fazer remoção de helicóptero e nem marinheiro para lanchas e ambulânchas da SESAI, transporte que chegou no mês de julho em Santarém. Estamos há meses esperando que a SESAI faça contratação dos barqueiros.

O SAMU respondia que a ambulancha da SEMSA estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível busca-lo ás 17 horas. Ou seja, apenas 1 ambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios.

Os postos de saúde até as comunidades mais próximas (Suruacá e Parauá), tem a distância de 15 km, mas de nada adiantava levar porque não tem soro antiofídico nas UBS dentro da Amazônia. Isso é inadmissível!

Estamos tristes e revoltados, já passamos por tantas humilhações, foi com muita luta que conseguimos o helicóptero para DSEI GUATOC fazer remoção dos indígenas do Baixo Tapajós. E agora com o desmonte desse governo genocida/etnocida que continua matando os povos indígenas, corta tudo da noite para o dia. Isso tudo acontecendo, em meio uma crise sanitária mundial, a pandemia da COVID-19, ainda temos que sobreviver as invasões nos territórios de madeireiros, garimpeiros, sojeiros, etc.

O parente chegou às 19h em Alter do Chão, desacordado, tarde demais. Perdemos mais um Kumaruara por negligencia do desgoverno, que trata sem importância a vida de quem mora do outro lado do rio. Esse é um caso relatado, de muitos que acontecem na Amazônia com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, continuamos sem acesso a saúde pública de qualidade dentro da nossa realidade.

Já estamos há 4 anos vinculados ao DSEI GUATOC (sede em Belém), sentimos muita dificuldade em atuar como controle social. As equipes que entram em área de forma ambulantes, e é um trabalho exaustivo, que depende até de força corporal para carregar malas, isopor com gelo, rancho e aparelho respiratório, que agora nesse período de verão aumenta ainda mais as dificuldades de deslocamento de uma aldeia para outra.

Por isso, reiteramos novamente ao Poder Legislativo a criação de um próprio DSEI para região do Baixo Tapajós. Pedimos ao Ministério Público Federal e Estadual, que fiscalize as prestações de conta do dinheiro público direcionados as políticas públicas de saúde, neste município.

Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. VIDAS INDÍGENAS IMPORTAM!!!

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Amazônia

Çairé 2020: beleza, sincretismo e o “novo normal”

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Por: Leonardo Milano, em parceria com O Boto

Com mais de 300 anos de tradição e comemorado no mês de setembro, o Festival Çairé é uma grande manifestação folclórico-religiosa, de encontro entre a cultura indígena amazônica e a religião católica, introduzida com a chegada dos jesuítas. De origem indígena, a festa foi sendo modificada pelos portugueses ao longo dos anos e, hoje, todos os ritos e ladainhas são cantados em latim. Em 2005, a prefeitura de Santarém determinou que a palavra Çairé passasse a ser escrita com “s”, para se adequar à língua dos colonizadores.

Devido à Covid-19, o Çairé desde ano acontece de forma reduzida, para evitar aglomerações. Na última quinta-feira (10), o festival iniciou sua programação, com a Missa em Ação de Graça, seguida da Procissão Fluvial e da Carreata pelas ruas de Alter do Chão. Com o “novo normal”, trazido pela pandemia, as máscaras de contenção passaram a fazer parte do figurino dos participantes. 

A programação do Çairé de 2020 segue no dia 17 e se encerra no dia 19/09, com distribuição de Tarubá – bebida típica indígena – e a apresentação do grupo Espanta Cão. Confira a programação completa do Çairé deste ano, e as fotografias do primeiro dia do festival. 

Saiba mais em Sairé: a verdadeira resistência

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