Pela segunda vez, a CryptoRave, que acontece em 24 e 25 de abril, em São Paulo, terá oficina para mulheres
“Isso não é um evento hacker, tem muitas mulheres!”, reclamou, no ano passado, um participante desavisado da CryptoRave. Sim e não, colega. A CryptoRave é um evento de 24 horas para difundir conceitos fundamentais e softwares básicos de criptografia, com atividades sobre segurança, criptografia, hacking, anonimato, privacidade e liberdade na internet, e que este ano será realizada no 24 e 25 de abril, no Centro Cultural São Paulo. É sim um evento hacker, aberto, gratuito e livre. E terá, se depender das mulheres hackers, uma participação feminina cada vez maior.
A primeira pessoa a escrever um algoritmo, uma sequência de instruções a ser processada por uma máquina, foi uma mulher. Ada Lovelace, matemática, foi a programadora do engenho analítico de Charles Babbage, descrito pela primeira vez em 1837, no século XIX, e que é o bisavó do computador. Entetanto, ainda hoje, no século XXI, os ambientes de tecnologia, principalmente os que tratam de segurança da informação, são dominados por homens. Daí o estranhamento do moço, e a iniciativa das mulheres em criar, este ano, na CryptoRave, um espaço para que pessoas que sofrem com a desigualdade e discriminação de gênero se sintam incentivadas a participar. O nome do espaço é Ada. ☺
A CryptoRave foi inspirada no movimento das CryptoParties e é o maior evento aberto e gratuito deste tipo no mundo e reúne hackers, ciberativistas e cypherpunks de diversas regiões e países em um único lugar. É organizada voluntariamente pelos coletivos Actantes, Saravá, Escola de Ativismo e O Teatro Mágico.
Elisa Ximenes, participante do Coletivo Saravá e uma das organizadoras da CryptoRave, realizou na primeira edição do evento, no ano passado, uma oficina de criptografia para mulheres, da qual participaram cerca de 20 pessoas. “Mas por que tem que ter uma específica para mulheres? Elas sabem fazer as coisas, por que tem que ter uma oficina mais ‘facinha’?”, perguntou, na época, outro hacker. As oficinas para mulheres não são mais “facinhas”. São as mesmas oficinas, em um ambiente mais acolhedor. “Há mulheres que não se sentem confortáveis em ambientes masculinos. Se inibem, ficam quietas, não fazem perguntas, não expõem suas dúvidas”, observa Elisa. Há uma outra questão específica que incomoda quem sofre com discriminações de gênero: mulheres, trans e pessoas não binárias são as maiores vítimas de assédio e ameaças no meio digital.
Em relação aos temas tratados na CriptoRave, a coleta de dados pessoais, para gerar publicidade “personalizada”, tem entre as mulheres um público amplo. Cabelos, vestidos, lugares para ir, corpos perfeitos, ideias de famílias e mulheres “ideais” são vendidas o tempo todo na internet, reforçando o padrão vigente de como as mulheres devem ser. Além de alimentar uma indústria baseada na coleta de dados pessoais, a invasão da privacidade, na internet, aumenta o faturamento da imprensa sensacionalista. Monica Lewinsky, a estagiária da Casa Branca que ficou famosa, em 1998, por ter se envolvido com o então presidente dos Estados Unidos, disse no TED Talk, no mês passado: “Essa invasão de privacidade é uma matéria-prima eficiente e desumanamente minerada, embrulhada e vendida para a obtenção de lucro. Um mercado emergiu onde a humilhação pública é um produto e a vergonha, uma indústria. Como se ganha esse dinheiro? Cliques. Quanto mais vergonha, mais cliques. Quanto mais cliques, mais dinheiro de publicidade.”
Porque são as maiores vítimas do assédio, as mulheres precisam estar mais atentas ao expor sua privacidade online, explica Fernanda Shirakawa, uma das organizadoras do Espaço Ada. Além de um espaço de aprendizagem sobre como proteger a comunicação online, o encontro é uma oportunidade de trocar de experiências com as demais participantes. “A programação é diversa, vamos ter oficinas práticas de Criptografia e Segurança Digital, rodas de discussão sobre segurança e ciberativismo feminista e também espaços abertos para instalação de ferramentas de criptografia e sistemas operacionais como o Debian”, explica Fernanda. “Podem participar todas as pessoas, mesmo que nunca tenham usado criptografia e software livre antes.” E mesmo quem não souber o que é criptografia — uma forma de “embaralhar” as mensagens trocadas pela rede para que somente quem tem a “chave” para decifrá-las poder ler. E, assim, impedir que empresas ou governos tenha acesso à sua comunicação privada. No documentário Citizenfour, vencedor do Oscar deste ano, a primeira cena é exatamente uma aula de criptografia. Edward Snowden, analista de sistemas e ex-contratado da CIA e da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, explica a Laura Poitras, a documentarista, por que ela tem que usar criptografia para receber as denúncias que ele estava prestes a fazer sobre o sistema de vigilância global do governo norte-americano.
Há também uma outra dimensão política na coleta de dados por Estados e por empresas que, como denunciou Edward Snowden, além de usar os os dados de seus clientes para obter lucro, fornecem essas informações para governos. O resultado é que sob vigilância, sem direito à privacidade, não há como se organizar, se expressar, debater livremente temas políticos. Por isso, pessoas como Elisa e Fernanda participam da organização do evento, que pretende, com mesas redondas, palestras e oficinas, aprofundar e qualificar o debate sobre a defesa da privacidade na internet como questão fundamental à democracia.