Violência Policial
Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social
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5 anos atrásem

Texto de Míriam Santini de Abreu, Paula Guimarães, Priscila dos Anjos e Fábio Bispo.
A reportagem “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% mais no isolamento social” foi realizada colaborativamente entre Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

Ilustração: Hadna Abreu
Guilherme da Silva dos Santos, 21 anos; Matheus Cauling dos Santos, 17 anos; Derick da Luz Waltrik, 17; Walace Índio Farias, 18; Wellinton Jonatan da Silva, 21; Shilaver da Silva Lopes, 22; Yure Esquivel da Rosa, 17; Lucas Pereira da Silva, 21; Everton da Rosa Luz, 22; Leonardo Leite Arruda Alves, 18; Marlon Leite Arruda Alves, 15; e Jonatan Cristhof do Nascimento, 24.
Os tempos são de pandemia, mas as 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó, no Centro de Florianópolis, não prestam homenagens aos mortos da covid-19 como milhares idênticas espalhadas em memoriais pelo país. A epidemia que sobe o morro na calada da noite, que caça alvos em uma suposta lista e sentencia ali, no calor do momento, é outra, e teve início há muitos anos. Só não inventaram ainda vacina capaz de contê-la: as mortes de jovens negros e favelados pela polícia.
A polícia catarinense matou uma pessoa a cada três dias em 2020. São 60 mortes até 29 de junho. Na pandemia, a partir de 16 de março, a letalidade cresceu 85%. Os gatilhos puxados por policiais catarinenses mataram 35 pessoas. Em 2019 foram 19 mortos nas ações policiais neste período.
Em Florianópolis, este ano, as intervenções policiais mataram pelo menos 11 jovens entre 20 de janeiro e 1º de junho. O mais novo tinha 15 anos; o mais velho, 24. Uma a cada quatro mortes violentas na cidade, este ano, foi pelas mãos da polícia. Em cinco anos já são 64 vítimas fatais nessas ações.
As famílias contestam as versões policiais, falam em execução, alterações das cenas dos crimes e negligência no atendimento. “Onde está a gravação deles que mostra que os guris os enfrentaram, como informaram no B.O.? Que eu saiba eles usam uma câmera na camisa, eu gostaria de ver, onde está?”, questiona a empregada doméstica Raquel Leite Arruda, mãe dos irmãos Marlon e Leonardo, mortos no domingo de Páscoa,
As versões conflitam com as afirmações do comandante do 4º Batalhão, coronel Dhiogo Cidral de Lima: “Todas as ocorrências foram legítimas, as pessoas envolvidas nesse enfrentamento tinham uma extensa ficha criminal”, disse o tenente-coronel, por telefone.
Um relatório de investigação conduzido pela Polícia Militar, nomeado de “Relatório Técnico Operacional” e obtido pela reportagem, elaborado pelo 4º Batalhão de Florianópolis em 2018, listou 55 pessoas na comunidade do Mocotó como envolvidos com o tráfico de drogas. Desses, quatro foram mortos em “confrontos”.
O documento virou inquérito policial, mas não foi diligenciado pela Polícia Civil. O Ministério Público chegou a alertar que investigação da PM não teria elementos para afirmar existência de uma facção.A Justiça chegou a prender parte dos citados.
“E uma verdadeira reprodução do que já havia sido apurado pela Polícia Militar, sem acrescentar nenhuma nova informação ou alargar as investigações”, relatou o promotor Luiz Fernando F. Pacheco. O inquérito tramita desde 2018 sem oferecimento de denúncia. E apesar de ter como base uma investigação da PM, nenhuma informação referente as mortes foi apresentada no inquérito. Em alguns casos, foi juntada certidão de óbito, mas sem explicações das circunstâncias das mortes.
As vidas perdidas desses jovens, que também já tinham chorado a morte de outros amigos, dizem sobre a intensificação de uma guerra sem data para terminar. Para entender o contexto da ausência de trégua, justamente quando há uma luta global para sobreviver à pandemia do novo coronavírus, investigamos algumas dessas mortes, ouvimos moradoras das comunidades, pesquisadoras, além da própria polícia e outras fontes oficiais.
Os dados desta reportagem estão no Anuário Brasileiro de Segurança Pública e nos relatórios da Secretaria de Segurança Pública de SC. A informações referentes às mortes em ações policiais em Florianópolis no ano de 2019 só contabilizam casos até o mês de junho daquele ano. A informação foi requisitada à SSP por meio de assessoria de imprensa e via LAI, mas ainda não foi disponibilizada pelo órgão.
Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a reportagem verificou que dos 12 mortos pela PM na região do Mocotó e listados na abertura desta reportagem, apenas um tinha condenação, por roubo, e quatro estavam relacionados no relatório que apura tráfico de drogas na comunidade. Os demais não respondiam qualquer ação penal na Justiça catarinense.
Sobre a investigação da PM, que alega ter como mote a existência de uma facção criminosa instalada no Mocotó, o Ministério Público apontou que os elementos são frágeis para tal afirmação, mas que constituem indicativos para prosseguimento das investigações.
Levantamento da reportagem apurou que das 64 mortes em ações policiais em Florianópolis desde 2016, cinco casos foram distribuídos para a Vara do Tribunal do Júri. Ou seja, apenas 7% das mortes em operações policiais serão analisadas na Justiça.
Para a professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Flavia Medeiros, casos de violações de direitos, que envolvem tortura, tentativa de morte e morte, mostram que as instituições policiais estão mais preocupadas com o uso da força e manutenção de uma ordem hierárquica e desigual na sociedade, do que necessariamente com a proteção dos cidadãos. “É papel do MP [Ministério Público] o controle externo do uso da força, tanto MP quanto judiciário são omissos neste controle. E essa omissão é forma de corroborar com a ação policial”.
:.Leia a entrevista completa com a pesquisadora em gestão de mortes Flavia Medeiros
Rebelião de mães
O corpo de Jonatan ainda estava quente, quando mães tomaram as ruas do morro, na madrugada do dia 26 de abril, para protestar contra a sequência de mortes em ações policiais na comunidade. Com um tiro na nuca e outro na perna, Jonatan foi a quinta vítima de uma sequência de cinco mortes de adolescentes e jovens que tinham laços familiares e de vizinhança no Mocotó causadas após ações policiais.
:. Polícia no morro: Moradores relatam cotidiano durante a Operação Mãos Dadas

Comunidade desce do Morro, em 28 de abril, e ocupa a Rua Silva Jardim em protesto à violência policial/Foto: arquivo pessoal
Em 28 de abril, Florianópolis atingia a marca de 404 casos confirmados e cinco mortes pelo coronavírus. A Prefeitura anunciava naquela semana a obrigatoriedade do uso de máscaras para a circulação de pessoas em locais públicos. Entretanto, as cinco mortes lamentadas por mães, esposas, filhos e vizinhos do Morro do Mocotó não eram de vítimas do vírus e sim em decorrência de ações da Polícia Militar catarinense. Por isso enquanto a população da maioria dos bairros da capital preparava-se para se adequar às novas regras do isolamento social, a comunidade saia às ruas.
“A gente queria revolucionar pela vida. Porque ali [no Morro do Mocotó] quem mata não é o coronavírus, é a polícia. Então a gente só quis reivindicar contra o nosso coronavírus, que são eles”, contou uma moradora.
A empregada doméstica Raquel Leite Arruda, mãe de Marlon e Leonardo, conta que antes de serem recolhidos pelo IML, após ação policial, os corpos foram arrastados escada abaixo e que há indícios de tortura. “Tinha uma marca de sola de sapato no rosto do Marlon”, contou Raquel.
Keli da Rosa, 43 anos, mãe de Everton Rosa da Luz, 22, morto em 10 de abril, por volta das 2 horas da madrugada, com um tiro na cabeça e outro no peito, questiona a versão de que houve troca de tiros. A certidão de óbito traz como causa da morte politraumatismo por arma de fogo. A mesma operação também resultou na morte do jovem Lucas Pereira da Silva, 21.
Ela que quer ser ouvida. Para falar da dor, mas também da alegria que seu filho representava: “Um menino brilhante”, lembra. “Não teve troca de tiros, nem reação. Meu filho morreu com um tiro na cabeça, pelas costas. Ele caiu logo em seguida e levou outro no peito. Caiu dentro de um valo, foi jogado em um saco e arrastado feito bicho. Ele estava muito machucado, com os braços marcados e os dentes quebrados”, descreve a mãe.
Após a ação, os policiais teriam ameaçado testemunhas e a companheira de Everton, uma jovem de 17 anos e grávida de poucos meses, deixou o morro às pressas. “Tive que fazer uma mudança de vinte minutos da minha nora porque subiram lá e a ameaçaram. Falaram que iriam matar todos eles”.
Uma das testemunhas do episódio relatou a cena para a mãe de Everton, que agora quer limpar a memória do filho, enterrado como suposto traficante. “Quero provas de que ele era traficante”.
Uma dessas provas poderia estar nas câmeras corporais que a PM catarinense utiliza desde 2019. No entanto, apesar de terem sido anunciadas como mais um elemento de prova para elucidar casos como estes, na prática, essas imagens nunca foram mostradas para provar as alegadas trocas de tiros.
Em reunião no dia 30 de junho deste ano, o Poder Judiciário catarinense cobrou da PM o acionamento das câmeras policiais individuais de forma automatizada, no início da ocorrência, e não pelos próprios policiais, como vem ocorrendo.
Parte das imagens das câmeras corporais, que custaram R$ 3 milhões aos cofres públicos, é selecionada e exibida no canal do YouTube da PM de Santa Catarina, na série intitulada Papa Mike. Quase todos os episódios mostram situações de perseguições, incursões em becos e vielas e fazem um trabalho institucional que valoriza a corporação e o trabalho da polícia catarinense.
O Papa Mike deixou de publicar novos vídeos após a aprovação da lei que trata do abuso de autoridade (Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019).
:.Leia a matéria Papa Mike: o jogo de cena da Polícia Militar de Santa Catarina
Escalada de mortes em tempos de pandemia
Em quatro anos a polícia catarinense já matou 369 pessoas. Por outro lado, o número de policiais mortos, seja em operações ou fora de serviço, em média, não passam de três casos por ano.
Das cinco ações penais relacionadas a essas mortes distribuídas para a Vara do Tribunal do Júri, em três delas os réus foram absolvidos sumariamente, e duas ainda tramitam aguardando julgamento.
“O levantamento no Tribunal do Júri nos leva a concluir que os outros casos foram arquivados ou ainda estão pendentes de conclusão, mas completamente negligenciados pelas instituições. Sejam elas da polícia civil, do MP [Ministério Público], inclusive do Judiciário que tem o poder de arquivar”, explica Daniela Felix, advogada popular que atuou na Rede de Direitos Humanos do Maciço do Morro da Cruz, onde está inserida a comunidade do Mocotó, quando acompanhou casos de extermínio de jovens entre 2016 e 2019.
Ainda que as mortes praticadas por policiais catarinenses sejam divulgadas semanalmente em relatório no site da Secretaria da Segurança Pública (SSP), a advogada diz que não há transparência nas informações sobre o trâmite dos processos por homicídio que, em tese, são públicos. “A própria ausência de transparência mostra uma isenção do Estado em relação às vítimas, porque não existe seriedade alguma para lidar com a população negra e pobre que está sendo exterminada”, completou a advogada.
Nacionalmente, o número de mortes em confronto com a polícia foi 26% superior nos meses de março e abril deste ano, em comparação ao mesmo período do ano anterior, são 1.198 contra 949, segundo levantamento inédito que atinge 15 unidades da federação, feito pelo jornal Globo junto às secretarias estaduais de segurança pública.
As mortes praticadas por policiais de Santa Catarina já representam quase 13% de todas as mortes violentas intencionais (MVI)no estado. Estudos apontam que a proporção indica uso abusivo da força. Uma dessas pesquisas, publicada em 2019 pelo sociólogo Ignácio Cano, da UERJ, aponta que quando as mortes causadas pela polícia ultrapassam o limite de 10% há “sérios indícios de execuções e uso abusivo da força policial”.
Levantamento do Fantástico, da TV Globo, divulgado em janeiro deste ano, apontou que as polícias de seis estados brasileiros foram responsáveis em 2019 por mais de 10% do total das mortes violentas intencionais. Santa Catarina figura ao lado de Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, Rio Grande do Norte e Sergipe. Feito em diferentes países, o estudo mostra que as mortes por intervenção policial correspondem, em geral, a 5% do total de homicídios.
Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2019 e com dados compilados até 2018, a polícia brasileira matou 6.220 pessoas. São 11 mortes a cada 100 mortes violentas intencionais. Em seis anos, entre 2013 e 2018 (dados do anuário), 24.327 pessoas perderam a vida pelas mãos de policiais, um crescimento de 166,7%. Em caminho oposto, as mortes violentas intencionais subiram apenas 2,7% no período, de 55.847 para 57.358.
Toda morte deve ser investigada
De acordo com o Código de Processo Penal, homicídios ou tentativas de homicídio são investigados pela polícia civil, denunciados pelo MP e levados ao Tribunal do Júri, independentemente se são praticados por policiais ou não.
“Quando o policial passa a ser réu num processo comum, de crime doloso contra a vida, tem que ser encarado como qualquer outro acusado. Tem que se verificar não a conduta enquanto militar, mas a conduta que ele praticou, o crime, se a liberdade representa algum risco para a busca de provas, possibilidade de eliminar provas. Havendo essa circunstância, o promotor tem que ser o primeiro a pedir que esse réu fique preso preventivamente”, explica Jádel da Silva Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MPSC.
Ocorre que na prática adotada no país persiste a ideia inicial, informada pela polícia, de que a vítima foi morta porque resistiu à ação policial e, consequentemente, que o policial agiu em legítima defesa. Conforme o artigo 23 do Código Penal, não há crime quando a pessoa pratica o ato em legítima defesa, porém ela poderá responder pelo excesso doloso ou culposo.
:. Leia entrevista completa com o promotor Jádel da Silva Júnior do MPSC
“Primeiro atiraram na perna”
“A gente era muito amigo, perdi um filho, um amigo, um companheiro, meu e dos meus filhos. Estamos inconformados, porque sabemos como ele era. Ele era tão querido onde morou, estava cheio de jovem no enterro dele. Levava alegria onde passava. É muito difícil, quantos Evertons serão mortos ainda? Quantas mães, quantas famílias vão passar por isso? Quantos? Isso não pode acontecer. Quantos filhos, quantas crianças, adolescentes não vão ter o direito de viver?”.
Não é silencioso o luto da trabalhadora doméstica Keli da Rosa, 43 anos, mãe de Everton Rosa da Luz, morto em abril no Mocotó. Adotado por um policial militar e pela esposa dele, que o criaram desde pequeno, Everton tinha saído de casa havia menos de oito meses para morar no Mocotó com a namorada. O pai, hoje policial aposentado, sequer pôde ir ao velório do filho, pois enfrenta um câncer e faz parte do grupo de risco do novo coronavírus.
Everton cresceu em contato com policiais do 4ª Batalhão, de onde saíram aqueles que apertaram o gatilho contra ele. “Ele (o pai) sabe o homem que ele criou, ele era o espelho. Não aceita a situação em que o filho morreu, porque o Everton foi criado dentro de um regime muito rígido, estudou na escola da base área, se criou dentro do quarto batalhão com o pai. É chocante para ele como policial saber que a própria farda, a polícia, o matou com covardia muito grande. É como se ele tivesse morrido junto”, afirma a mãe.
O luto de Keli se misturou à luta travada por verdade e memória, para que seu filho não seja lembrado como um criminoso ou, pior, para que não seja responsabilizado pela própria morte.
“O que mais dói é o fato de colocarem ‘traficante’ na ocorrência. Quero provas”, insiste. “Não teve troca de tiros, nem reação. Meu filho morreu com um tiro na cabeça pelas costas”.

Everton da Rosa Luz, 22 anos, foi morto em 10 de abril/Foto: arquivo pessoal
Uma testemunha que foi atingida no rosto por estilhaços relatou à Keli o pânico que viveu naquele dia. A ocorrência custou as vidas dos jovens Everton e Lucas. “Os policiais fizeram a vizinha do terreno ao lado entrar em casa e ficar quieta. Ela ficou tão apavorada que entrou e o cachorro começou a latir. Meu filho tinha descido o morro e, logo em seguida, os policiais disseram que estavam atrás de dois foragidos e atiraram. Quando ela [a testemunha] tentou socorrer o Everton, viu a situação da morte do outro menino. Antes de matarem o Lucas, eles o torturaram. O Lucas tentou correr, pedir socorro, mas o policial já chegou dando tiro nas pernas, nos braços. Foi diferente do que fizeram com o meu filho, que atiraram direto na cabeça”, relata.
A testemunha conta que após a retirada dos corpos, policiais do Bope entraram na casa das possíveis testemunhas e as ameaçaram. A companheira de Everton fugiu às pressas do morro.
“Falei para o pai dele que honraria a farda dele. Eu não tenho mais nada a temer, somente a deus, e creio na justiça dele […] Sempre o protegemos, o pai dizia ‘aí (no Morro) é muito perigoso, o pai não te quer aí’. A gente tinha muito medo, porque sabemos que parte da polícia é bandida. A gente estava ciente de que ali era perigoso, independentemente do que quiseram incriminá-lo”.
Raquel Leite Arruda, mãe dos irmãos Marlon e Leonardo, mortos dois dias depois (12), em um domingo de Páscoa, no Morro da Perla, compartilha da mesma dor. Ela contesta a versão da polícia de que houve confronto e desafia os policiais a mostrarem as imagens das câmeras individuais.
Os irmãos Marlon e Leonardo foram mortos por volta das 18 horas, depois de passarem o dia em um churrasco com amigos. “Soltaram ‘foguete’ no Morro para dizer que tinha polícia, aí a polícia sumiu, mas ninguém viu os policiais indo embora. O Marlon foi para o meio da escadaria, ficou à vista e de costas para a polícia, quando tomou um tiro”, conta uma amiga dos dois.

Os irmãos Leonardo Leite Arruda Alves (acima) e Marlon Leite Arruda Alves/Foto: arquivo pessoal
Segundo o relato, os policiais estavam escondidos no quintal de um morador, quando então apareceram e balearam Marlon. Leonardo, que estava na parte alta do morro, desceu para ver o irmão, e em seguida subiu pedindo socorro. Na escadaria, conta uma das testemunhas, foi surpreendido por policiais subindo e descendo. Primeiro, foi baleado na perna.
Leonardo foi morto em frente à casa da madrinha, com quem ele e o irmão moravam. A testemunha conta que ele pediu a chave do portão para a mulher, mas não deu tempo. “Ela saiu para querer mexer, tocar nele, mas a polícia não deixou chegar perto”, disse à reportagem.
Neste e em outros casos, as testemunhas também afirmaram negligência por parte dos policiais, que não deixaram que as vítimas fossem socorridas pelo Samu. A justificativa foi que já estavam mortos. Mesmo assim os corpos foram arrastados do local e recolhidos pelo IML fora da cena do crime.
“Quando eu cheguei não me deixaram ver meus filhos. Disseram ‘como você sabe que é seu filho’, respondi ‘porque me avisaram’. Então, eles disseram, ‘não fomos nós, foram os bandidos’. Eles riram da minha cara e falaram ‘cuidado com o coronavírus’, em tom de deboche”, relatou a mãe.
Cada um teria sido alvejado com pelo menos dois tiros, um na perna e outro na cabeça. Na certidão de óbito a informação da causa da morte é “trauma toracoabdominal por disparo de arma de fogo”.
Semanas depois, os policiais prenderam outro jovem que estava com os irmãos no dia das mortes. “Quando a polícia prendeu essa pessoa que já estava sendo procurada, eles falaram ‘a gente foi pra te matar, a gente matou os guris’, e contaram com detalhes como tudo aconteceu, que o Léo mesmo baleado chamava o nome de alguém, e aí eles disseram que chutaram o Léo”, revelou entrevistada pela reportagem que preferiu não se identificar.
Ela lembra que Leonardo já tinha falado da intenção dos policiais de o matarem: “o tático (PPT) quer me matar”, teria relatado dias antes. “Ele ainda falou ‘querem matar a mim e a outra pessoa’. A outra pessoa está viva, não sei se a polícia ainda vai matá-la”, emendou a testemunha.
Ela conta em detalhes que a cena do crime foi forjada. “A polícia falou que estavam armados e trocaram tiros, mas estavam desarmados. Dizem que apreenderam dinheiro e arma, mas a única coisa que reconheci foi a chave e o celular. Era páscoa, eles estavam comemorando. Fazia dois meses que o Leonardo tinha saído do centro socioeducativo, estava bem tranquilo, querendo se organizar, mas não deu tempo”.
Maria, outra entrevistada para a reportagem, era colega de Everton, Lucas, Marlon e Leonardo, todos mortos em ações da polícia nas comunidades do Mocotó Morro da Perla. Mas ao contrário do que sugere a versão oficial na genérica classificação de “morte em confronto”, ela e mais três entrevistadas afirmam, categoricamente, que os jovens foram executados, o chamado homicídio extrajudicial, como também é definida por documentos internacionais a situação em que o policial decide matar, quando poderia não fazê-lo.
“A PM tem treinamento para atirar, e o que fazem? Matam e dizem que foi troca de tiros. Eles podem muito bem parar uma pessoa sem matá-la, têm treinamento para isso. Eles já implementaram a pena de morte nas comunidades. E são os mesmos policiais do PPT que estão matando. Acho que tem uma equipe do tático preparada para isso, um grupo de extermínio”, opina.
Vídeo em homenagem às vítimas por Maurício Marques, do Coletivo Negro Minervino de Oliveira:
Violência incentivada por autoridades
David Marques, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), explica que a presença das pessoas nas ruas exerce um tipo de controle social que pode ter sido fragilizado neste período de isolamento social. “Temos menor movimento nas ruas agora, o que dá margem para acontecerem mais abusos de poder. Num segundo aspecto, a questão do isolamento social acabou impactando bastante a atuação dos movimentos sociais que se organizam para falar sobre a situação policial e de direitos humanos, enfraquecendo um pouco a atuação, embora se tenha cada vez mais a questão do smartphone, acesso à internet e redes sociais que têm possibilitado aparecerem esses registros”.
O crescimento dos homicídios está conectado, ainda, a uma tendência de alta registrada ao longo dos últimos anos, e mais recentemente a um contexto político de autorização governamental à truculência e à morte pelas instituições policiais. Exemplo disso está no discurso “bandido bom é bandido morto” e nas tentativas de se aprovar leis que tirem das polícias a responsabilidade de prestar esclarecimentos sobre as mortes causadas por elas mesmas.
No final do ano passado, Bolsonaro afirmou que “auto de resistência é sinal de que policial trabalha”. “Auto de resistência” refere-se à morte praticada por policial, termo abolido justamente por se tratar de um ato administrativo, instaurado à época da ditadura militar, que acobertou grupos de extermínio, principalmente no Rio de Janeiro.
Recentemente, o deputado Jessé Lopes (PSL), uma das vozes do chamado bolsonarismo na Assembleia de Santa Catarina, se ofereceu para pagar um churrasco cada vez que um criminoso for morto por um policial. A “oferta”, publicada nas redes sociais, ocorreu na publicação que anunciava o novo corregedor da Guarnição de Imbituba. A Corregedoria tem entre as suas atribuições investigar justamente casos de desvios de conduta e abusos de poder.
“Cada vagabundo que colocarem no ‘colo do capeta’ eu pago um churrasco! Tmj! Força e honra!”, escreveu o parlamentar. O comentário foi endossado através de curtidas por militares de alta patente e outros políticos, como o de uma vereadora de Garopaba, região onde os mesmo policiais atuam.
“Nessa esteira de ampla sensação de insegurança, o discurso nessa área tende a endurecer, a cobrar uma atuação mais dura da polícia. Fizemos levantamento há dois anos sobre o que pensa a sociedade brasileira da atuação da polícia e o grande enunciado dessa área é ‘bandido bom é bandido morto’. A gente fez duas vezes essa pergunta numa pesquisa com o Datafolha, uma vez deu 50% de apoio, e na segunda 52%”, conta o pesquisador do FBSP, David Marques.
“O chefe da polícia é o governador e o secretário de segurança pública. Eles têm o dever de acompanhar esses casos. São todos responsáveis por esse tipo de violência que é o que tipicamente a gente pode chamar de violência de Estado”, analisa Mariana Possas, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia.
:.Leia a entrevista completa com a pesquisadora em processos por mortes em confronto, Mariana Possas
A antropóloga e pesquisadora em segurança pública, violência de estado e gestão de mortes da Federal de SC, Flavia Medeiros, diz que as investigações preliminares dos casos envolvendo policiais apresentam falhas, fazendo com que a maioria sejam arquivadas sem sequer passarem por processos de investigação.
Ela lembra que o chamado “auto de resistência” tem sido usado há décadas para acobertar crimes e assassinatos. “O auto era usado como uma normativa e nome mesmo, uma classificação administrativa. Desde 2012, por conta do caso do menino Juan, que aconteceu na Baixada Fluminense (RJ), o Conselho Nacional dos Direito Humanos recomendou que seja classificado como homicídio decorrente de intervenção policial. Essa classificação é feita inicialmente, mas que por sua vez não prescinde a investigação desse óbito por parte da polícia civil, justamente para esclarecer os fatos que confirmem esse excludente de ilicitude”, pontua.
E ainda que o termo “auto de resistência” tenha sido abolido oficialmente dos registros policiais em 2016, a letalidade policial continua sendo considerada dentro dos padrões da legalidade.
No relatório da Human Rights Watch “O bom policial tem medo”, divulgado em 2016, foram identificados 64 casos em oito anos, nos quais a polícia do Rio tentou acobertar massacres ilegais e que deixou 116 mortos, incluindo 24 crianças. Conforme o documento, o Ministério Público apresentou denúncia em apenas quatro – ou 0,1% – dos 3.441 casos de homicídios cometidos pela polícia que foram registrados entre 2010 e 2015.
O auto de resistência tem suas origens na Ditadura Militar, foi criado em 1969, em forma de ato administrativo, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. O primeiro auto de resistência lavrado para acobertar esse tipo de crime ocorreu em novembro do mesmo ano, com o guarda civil Mariel Moryscotte, integrante de um grupo de extermínio.
Absolvidos sumariamente
Apesar de não termos indicadores de investigação desses casos em Santa Catarina, uma pequena amostragem sinaliza que a capital do Estado não foge à regra. Desde 2010, apenas dez processos por homicídio ou tentativa de homicídio envolvendo policiais foram distribuídos ao Tribunal do Júri da Comarca da Capital, dois deles por crime tentado. Dessa lista, dois foram arquivados ainda em fase de inquérito policial; dois não foram considerados puníveis, um por morte do agente e o outro por ausência de autoria; quatro foram absolvidos sumariamente antes de seguir a Júri, e apenas dois estão em andamentos. Em dois casos de absolvição sumária, a acusação entrou com pedido de recurso.
Passados mais de dois meses, os cinco homicídios dos jovens ocorridos em abril deste ano, seguem em fase de inquérito policial. Desde 2016, quando se tem dados disponíveis, 64* pessoas morreram na capital do estado em decorrências das ações policiais.
O promotor Jádel da Silva Júnior diz que a visão institucional do Ministério Público catarinense é contrária ao entendimento prévio de legítima defesa dos policiais nos casos de homicídio ou outras violações de direitos. “O papel do MP é jamais admitir previamente qualquer legitimação da atuação da polícia”.
Entre os casos em que os policiais foram absolvidos sumariamente, antes mesmo de serem denunciados pelo MP, está o homicídio duplamente qualificado contra Fabrício Pires da Rosa, em 4 de novembro de 2016, no Morro do Horácio, em Florianópolis. Os policiais militares Jonas Aurélio da Silva e Bruno Henrique de Oliveira Lima, também acusados de fraude processual por alteração na cena do fato, foram absolvidos antes mesmo de serem levados para a sessão da vara do Tribunal do Júri da Capital, conduzida pelo juiz Marcelo Volpato de Souza. Na decisão, prevaleceu a alegação de que os réus agiram em legítima defesa, por isso não haveria dolo.
Ao lado do policial Raphael Lopes Vianna Ramos, Jonas também é réu na ação penal sobre o homicídio qualificado de Lucas Luiz Martinez de Almeida, 22, morto também no Morro do Mocotó. O jovem morreu entre 1h30 e 2h de 16 de setembro, horas depois do assassinato do policial militar Vinícius Alexandre Gonçalves, 31 anos. “Meu filho foi executado em casa, duas horas após o policial ser assassinado”, denunciou a auxiliar de limpeza Andréia Martinez, 46, a um um jornal, à época.
As duas mortes aconteceram em datas próximas e na mesma comunidade e as suspeitas são de que ambas têm ligação com a morte do policial militar Vinícius.
“São dois processos quase gêmeos, dois homicídios pela polícia na mesma comunidade e época. Os dois de execução bem clara”, afirma a defensora pública Fernanda Mambrini, assistente de acusação da ação penal que envolve o homicídio de Fabrício.
Os policiais envolvidos na morte de Lucas também foram absolvidos sumariamente. Como informou a advogada Mariana Lixa, os dois policiais foram absolvidos e impronunciados ao Tribunal do Júri. Houve recurso do assistente de acusação à época, que foi julgado improcedente. “As provas, inclusive as testemunhais nos autos, comprovaram que os policiais agiram no cumprimento do dever legal”, disse a advogada, que representa os policiais Raphael Lopes Vianna Ramos e Jonas Palhano.
Defensoria leva caso a júri
No caso da morte de Fabrício, testemunhas indicaram que a vítima já estava rendida e sem chance de defesa quando foi morta pela polícia. A defensora pública Fernanda Mambrini, explica que o trâmite do processo demonstra omissão do Ministério Público na denúncia dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais. “O MP não quis denunciar, pediu o arquivamento. O juiz aplicou uma previsão do Código de Processo Penal, porque quando ele não concorda com o arquivamento ele manda para o Procurador-Geral de Justiça reavaliar o caso, pois o juiz não pode denunciar sozinho. Por meio desse procedimento é que começou a ação penal, houve a denúncia. Ao final, o MP até pediu que fosse a júri, mas pediu de uma forma bem superficial para cumprir tabela, e o juiz absolveu. Não foi nem impronunciou, que é quando não vai a júri, mas ficou uma dúvida, disse que não tinha prova suficiente e que foi legítima defesa”, explica a defensora.
A acusação recorreu do arquivamento e, em 20 de abril deste ano, a maioria dos desembargadores da 4ª Vara Criminal julgou parcialmente procedente o recurso, exceto a qualificadora do homicídio por “motivo torpe”.
A defensora lista uma sequência de irregularidades: “Eles tinham um mandado de busca e apreensão na casa do Fabrício, quando chegaram o rapaz não estava e eles começaram a entrar em todas as casas para ver onde ele estava. Só que o mandado de busca não permite entrar em outras casas. É absolutamente ilegal, isso já demonstraria o procedimento equivocado”.
Mambrini denuncia, ainda, que os policiais confundiram a vítima da execução. “Esse rapaz que faleceu tinha um homônimo e há relatos de que a polícia confundiu. O próprio rapaz que tem o mesmo nome, outro Fabrício, eu não faço a defesa dele, mas ele estava em processo de outro acusado em que eu defendia. Ele disse ‘olha, a polícia está atrás de mim, querem me matar, tanto que mataram o fulano achando que era eu”.
A conduta dos policiais é ainda mais questionável diante do documento juntado ao processo: um parecer técnico de validação da operação elaborado por um policial do Bope, Rafael Vicente, que veio a ser investigado depois pelo homicídio do açougueiro José Manoel Pereira, 44 anos, em 18 de novembro de 2017, em Balneário Piçarras, no Litoral Norte do Estado. “O protocolo de atuação que ele coloca é de guerra, é militar, é inimigo, a gente está entrando em território inimigo, é assim que eles agem”, descreve a defensora.
O major Rafael Vicente e outros quatro policiais chegaram a ficar presos duas semanas em agosto de 2018, mas foram soltos através de habeas corpus. Além do homicídio, o Ministério Público denunciou os agentes por terem omitido no boletim de ocorrência os disparos contra a vítima e de terem apagado imagens de câmera de segurança de um comércio perto do local dos fatos, em Balneário Piçarras.
“O capitão, agora major, comandava o Bope, fazia investigação por conta, não comunicava a polícia civil, havia várias irregularidades. […] Em 2018, esse policial veio a ser preso, o que a meu ver já colocaria em xeque todas as investigações que ele fez. Ele ficou preso um período, depois passou a usar tornozeleira”, explica a defensora.
Em 26 de dezembro de 2018, foi aberto um conselho de justificação na PMSC para avaliar a possibilidade de expulsão dos policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Florianópolis, mas o procedimento foi arquivado. “Comecei a fazer levantamento e vou pedir revisão dos casos. Uma das acusações contra os policiais que foram presos era falsidade nos depoimentos, porque faziam todas as acusações para se protegerem. Pedi revisão de todos os processos que eram meus, nos quais ele era testemunha e investigador, alguém que falseia seus depoimentos não merece ter credibilidade para condenar alguém em qualquer outro pleito”.
O advogado de Rafael Vicente, Guilherme Stinghen Gottardi, nos informou que o policial responde a duas ações que estão em fase de instrução, uma tramita na Vara de Direito Militar na Capital, e outra na 2ª Vara de Piçarras. “Na de Piçarras, que apura o homicídio, meu cliente ainda não foi citado do teor da denúncia. Na ação da Capital, que apura supostas infrações disciplinares, foram ouvidas as testemunhas de acusação e, em razão da pandemia, a instrução foi suspensa, restando as oitivas das testemunhas de defesa e interrogatórios. Declaro que em ambas as ações a defesa não concorda com a versão acusatória apresentada pelo MPSC e que por isso pretende esclarecer devidamente os fatos durante a instrução processual”, descreveu o advogado.
A reportagem também fez Também fizemos contato com Luiz Eduardo Cleto Righeto, advogado de Jonas e Bruno, no caso do homicídio deo Fabrício. A defesa entrou com um recurso para que o caso não seja levado ao Tribunal do Júri. “É indispensável uma investigação com qualidade para que realmente se apure se o policial agiu dentro ou fora das normas, mas colocar um cidadão que arriscou a sua vida para defender a sociedade no banco dos réus atribuindo a ele uma execução é uma falta de sensibilidade, bom senso […] Não estou descartando excessos por parte de policiais. Tenho plena convicção, como base em provas, de que o Jonas e o Bruno, colegas de farda que foram denunciados por homicídio, agiram na mais legítima defesa contra o cidadão que investiu contra eles de maneira ilegal”.
Segundo a defensora Fernanda Mambrini, são frequentes os casos de violações de direitos pela polícia, em que provas são forjadas para incriminar as vítimas, sem que os envolvidos sejam responsabilizados criminalmente. Para exemplificar, ela cita um julgamento, ocorrido em 2018, em que quatro jovens, réus em um processo por tráfico de drogas, teriam caído de cabeça no chão durante a prisão, segundo a versão da polícia. A partir de levantamento nas redes sociais dos policiais envolvidos, a defensora juntou aos autos um dossiê de 200 páginas, evidenciando a defesa que fazem de práticas extrajudiciais. “É faca na bota, afirmam estar indo para a guerra, dizem é ‘menos um CPF’ […] A gente tem um Bope que canta música para treinar que é ‘entrar na favela e deixar corpo no chão’”, indigna-se.
Morto no quintal de casa
Uma das duas ações penais envolvendo policiais que continuam em andamento na Vara do Tribunal do Júri da Comarca da Capital diz respeito à morte de Vitor Henrique Xavier Silva Santos, 19.
Vitor foi morto em 18 de abril do ano passado, no bairro Ingleses, em Florianópolis, quando brincava com sobrinho no quintal de casa. Seis tiros foram disparados contra o jovem e quatro o acertaram. O laudo pericial, que apontou para politraumatismo por projéteis de arma de fogo: dois tiros no braço esquerdo, um no peito e outro na bacia. Ele teve o pulmão perfurado.
O processo foi distribuído à Vara em 20 de maio do mesmo ano. Os policiais Guilherme Palhano e Hébert Rezende da Silva são acusados de matar o jovem, por volta das 13 horas.A irmã e o tio da vítima estavam em casa e viram o jovem agonizar.
O documento do Instituto Geral de Perícias (IGP) confirmou que a arma de pressão usada por Vitor tinha ponteira alaranjada na boca do cano – elemento que indica que se trata de um brinquedo. Além disso, apontou que esse objeto foi retirado da cena do crime pelos policiais.
No entendimento do MP-SC e com a aceitação da Justiça, os militares inicialmente responderiam por homicídio qualificado, agravado pela impossibilidade de defesa da vítima. Porém, de acordo com o advogado da família da vítima, Diógenes Miguel Telles Fonseca, no decorrer da ação, o crime foi classificado como homicídio doloso simples, com pena de 12 a 30 anos, mantendo o agravante.
Ainda de acordo com o advogado, apesar de somente o policial Guilherme Palhano ter atirado, os dois foram considerados responsáveis, por consentirem à ação, e devem responder da mesma forma pelo crime.
Judicialmente, os policiais alegaram que houve um erro de procedimento e que agiram em exercício regular de um direito, com base no artigo 23 do Código de Processo Penal, que prevê os excludentes de ilicitude. Informaram, ainda, que eles não tinham como saber se a arma era verdadeira ou não, e que o jovem a teria apontado para o policial, logo após ele mandar baixá-la.
Por conta da pandemia, o depoimento das testemunhas de defesa dos policiais ficou para setembro, informou o advogado da família de Vitor. O caso ainda aguarda a pronúncia do Tribunal do Júri, que encerra a primeira fase do processo penal. Se houver convencimento da materialidade do crime, o juiz pronuncia os acusados para que sejam levados a júri popular.
Mesmo após a Policial Civil ter indiciado os policiais por crime de homicídio doloso no caso de Vitor, a conclusão do Inquérito Policial Militar, em 5 de junho de 2019 apontou não haver “indícios de crime” na atuação do policial, e os PMs aguardam o andamento do processo na ativa.
Segundo a PM, Palhano teria agido “amparado pela excludente de legítima defesa putativa”. Por outro lado, o inquérito militar concluiu que houve “indício de prática de transgressão disciplinar pelos dois policiais” em decorrência de eles terem usado toucas balaclavas para cobrirem o rosto em serviço.
No documento em que pedem que o caso seja julgado na Justiça comum, os promotores com competência na Vara da Justiça Militar, Wilson Paulo Mendonça Neto e Silvana Schmidt Vieira, titulares da 5ª e da 40ª Promotorias de Justiça da Capital, respectivamente, também consideraram ilegal o uso da toca balaclava. Segundo eles, somente militares do BOPE e Choque podem legalmente fazer uso deste tipo de touca, existindo proibição expressa do uso do item no uniforme do Pelotão de Policiamento Tático (PPT), conforme Portaria n. 146/Cmdo-G de 2010”.
“A defesa do policial militar Guilherme Palhano, questionada sobre a tese central de defesa, declara que a instrução processual tem esclarecido a verdade e que, por isso, confia na concretização da justiça”, afirma Victor da Costa Malheiros, advogado de Guilherme Palhano.
Procurado pela reportagem, o advogado Claudio Gastão da Rosa filho, que assiste o policial Hébert Rezende da Silva, não se manifestou sobre o cliente.
A face de quem morre
Everton, Lucas, Marlon e Leonardo são exemplos de uma situação que ultrapassa as fronteiras do Mocotó ou mesmo de Santa Catarina. Suas mortes refletem uma estrutura social de negação de direitos e de uma política que em alguns aspectos pode ser encarada como de extermínio de certa camada da população. Segundo o último Anuário Brasileiro da Segurança Pública, com dados de 2018, quase a totalidade das vítimas desse tipo de homicídio era do gênero masculino, 75,4% eram negros. Mais de 80% deles só concluíram o ensino fundamental. Destes jovens que morreram no Mocotó neste ano, somente Leonardo chegou a concluir o ensino médio, e o fez enquanto ficou internado em centro socioeducativo por três anos.
“Fica explícito como o racismo toma conta do Brasil, não só a nível Rio e São Paulo, que se mata desse jeito. Isso a gente tem que propagar. O racismo é o vetor desses assassinatos, da polícia agir principalmente com meninos negros, pobres, favelados, de qualquer periferia do Brasil. O racismo acaba com expectativa, sonho, juventude, oportunidade de criarem família, de continuarem existindo. Isso, para essas famílias, é de uma dor inesquecível, um buraco totalmente sem condições de ser fechado”, assinalou Monica Cunha, do Movimento Moleque.
“Eles nunca vão acabar com o tráfico matando. Se eles derem outra oportunidade, criar projetos, aí sim. Quem está ali é porque não tem outro caminho, outra visão de futuro. Todos ali são pobres, com base familiar desestruturada, muitos são filhos de usuários de droga. A questão ali é mais de necessidade do que qualquer outra coisa. Nenhum deles é milionário ou tem mansão. Muito diferente da polícia que tem um estudo, um preparo para estar ali”, analisa uma das moradores ouvidas pela reportagem.
Em sete meses de oitivas, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Assassinato de Jovens, relatada pelo ex-senador Lindbergh Farias (PT), concluiu seus trabalhos em 2016 sem conseguir apurar circunstâncias mais detalhadas das mortes de jovens negros e periféricos no Brasil. “Ao morrer, esses jovens se tornam ainda mais invisíveis do que quando estavam vivos. Em outra dimensão, a CPI esbarrou na morosidade estatal, na burocracia para a busca de informações, na dificuldade de encontrar fontes confiáveis de dados para apurar circunstâncias trazidas ao nosso conhecimento”, diz trecho da conclusão do relatório.
Café das fortes: mães em busca de justiça
O Movimento Moleque, fundado por Monica Cunha, compartilha da dor de perder o filho pela instituição policial. Rafael da Silva Cunha, 32 anos foi assassinado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, em 20016. A ativista coordena a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde atuou ao lado da vereadora Marielle Franco, e participa da construção do movimento de mães que perderam seus filhos assassinados pelo Estado.
Entre outros projetos, Monica atua também no Café das Fortes, o qual promove o encontro das mulheres que lidam com o mesmo luto, em busca de fortalecimento afetivo e político. A maioria das mães ainda aguarda resposta da Justiça sobre o assassinato de seus filhos. O processo criminal pelo assassinato de Rafael Cunha foi arquivado por falta de provas. Na certidão de óbito consta que ele foi morto em um “auto de resistência”.
“Tem que entrar em terapia, ter o apoio da família é fundamental. A dor acaba não sendo tão profunda quando a gente consegue unificá-la, estar perto uma das outras. A segunda maneira de sobreviver à essa dor é a justiça, e a justiça como reparação psicológica, financeira, e reparação para que o braço armado do Estado venha a mudar”, compartilha a ativista.
A versão da polícia
A reportagem conversou com o tenente-coronel Cidral, comandante do quarto batalhão, responsável pelos bairros onde a maioria dos os jovens de Florianópolis foram mortos. De acordo com o militar, as operações, especialmente no Morro do Mocotó, estão relacionadas a um processo de desarmamento de pessoas envolvidas com o tráfico. A publicação em redes sociais de jovens com armas de fogo naquela comunidade teria levado policiais a operações de busca. “No final do ano passado surgiram vários relatos de armas de fogo de grosso calibre sendo utilizadas no Morro. Começamos o monitoramento das redes sociais e de várias pessoas que colaboram com a polícia militar e recebemos várias fotos de pessoas identificadas com arma de fogo. A gente sabe que essas armas existem no Morro e estavam sendo usadas para amedrontar os moradores locais, como também enfrentamento à PM”, contextualiza o policial.
Conforme o tenente, o Morro do Mocotó é alvo de operações policiais por ser “um dos locais de maior tráfico na capital, pela proximidade com o centro da cidade”. “Sabemos do grande fluxo de pessoas que moram perto e moradores de rua que se utilizam dos espaços e vão até o morro comprar drogas. Tanto é que os grandes usuários que hoje convivem na cidade que chamamos de pessoas em situação de rua, eles se valem da facilidade do Morro do Mocotó”, destacou.
Pedimos que o policial relatasse a sequência de fatos que pudesse explicar o alegado confronto que levou às mortes de Everton e Lucas. “Fazemos acompanhamento de inteligência, e a polícia vai até o local prender as pessoas que estão em posse dessas armas. Infelizmente, apesar da verbalização, as pessoas não acataram as ordens, dispararam contra a PM, e a gente teve que entrar em confronto, porque primamos pela nossa segurança e da comunidade”, afirmou sobre a ocorrência que resultou em duas mortes.
Ainda que considere que “toda pessoa deve passar pelo crivo da justiça”, independentemente de sua ficha policial, a suposta trajetória de crimes dos jovens é citada por ele como elemento importante para entender o confronto. “Foi um infeliz episódio da morte dos jovens irmãos. Um dos jovens tinha mais de 30 passagens policiais e o outro já tinha envolvimento com o tráfico. Eu não estou presumindo que ele seja ruim, mas depois de 30 passagens, teve 30 oportunidades de fugir daquela vida do crime. Infelizmente optou por continuar no crime e o desfecho eu não considero coisa boa. Quero que seja frisado: qualquer ação policial com desfecho de morte é uma coisa que não pode ser tida como aceitável. É um resultado que chegou naquele ponto”.
Por falar em legalidade, se olharmos pela lente da lei, os irmãos Marlon e Leonardo, sequer poderiam ser considerados criminosos. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis. Marlon tinha apenas 15 anos, e Leonardo havia saído há menos de dois meses da internação em estabelecimento educacional, onde cumpriu medida socioeducativa durante três anos por cometer um ato infracional. Foi no espaço de ressocialização que o jovem conseguiu concluir o Ensino Médio, já o irmão de 15 interrompeu os estudos na sétima série.
O comandante considera ser um contrassenso a afirmação de que há intenção deliberada da polícia militar nessas mortes, já que o número de homicídios também é indicador de segurança de uma cidade e, estado. “Nós temos estatísticas, medimos a qualidade do nosso serviço por meio delas, casos de homicídios elevam o grau de insegurança de uma cidade. A morte em confronto me desagrada particularmente, mas muitas vezes é processo natural dentro da visão de combate ao crime. O crime organizado existe, é fato, o tráfico é constante, emprego de arma de fogos existe, tanto que existem confrontos entre os traficantes das comunidades. Tendo a certeza que lá tem arma, naturalmente quando fazemos operação, não querendo o confronto, mas não desconsiderando a possibilidade de fazê-lo.”
Em relação à denúncia de que policiais derrubaram cruzes do memorial em homenagem às vítimas do Mocotó, o tenente contestou a versão das entrevistadas. “Não temos envolvimento nenhum, gostaríamos que provassem, se não tem a quem culpar, culpam a polícia militar. Se eu, enquanto policial militar, quisesse fazer a limpeza do espaço público, que é de domínio público, poderia fazer, mas se assim o fosse removeríamos todas as cruzes”.
A reportagem entrou em contato com a Corregedoria-Geral da Polícia Militar para apurar o número de inquéritos policiais militares abertos desde 2009 sobre mortes em confronto, assim como o desfecho deles, se foram arquivados ou resultaram em expulsão do policial envolvido. Em e-mail assinado pelo Corregedor-Geral da PM SC, o coronel Ig Lacerda Queiroz, foram informados os números de mortes em confronto com a polícia, dado já disponível no relatório semanal da PM. “Verificou-se que há 29 Inquéritos Policiais Militares que apuram ocorrências dessa natureza e que ainda estão em andamento, referentes ao ano de 2020”, enumera a corporação, sem mencionar o desfecho de processos de anos anteriores.
Tentamos entrevista com o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), para compreender a visão institucional em relação a essas mortes. A assessoria de imprensa do governo nos orientou que a entrevista fosse com o responsável pela Secretaria de Segurança Pública, hoje coordenada por um colegiado formado pelas chefias da polícia civil e militar. Enviamos dez perguntas, que foram respondidas de forma genérica em uma nota da Polícia Civil de Santa Catarina, cujo delegado geral, Paulo Koerich, é o presidente do colegiado, transcrita abaixo.:
“Com investimentos diferenciados e específicos na formação inicial e capacitação periódica de seus integrantes, bem como adotando e exigindo a estrita observância da legislação específica e protocolos de atuação operacionais, a Polícia Civil de Santa Catarina se destaca no âmbito nacional por apresentar indicadores mínimos de letalidade em confronto. Contudo, lamentando toda e qualquer circunstância que, mesmo sob o amparo legal, tenha como resultado a morte de um cidadão”, diz a nota .
Em relação ao andamento dos processos das 12 mortes listadas na abertura desta reportagem junto ao Ministério Público, Judiciário e Polícia Civil, não houve retorno.
Buscamos apurar junto ao MP, Judiciário e Polícia Civil, o andamento dos processos das doze mortes listadas na abertura desta reportagem, mas não tivemos retorno.
Conforme o delegado Ênio Matos, da Delegacia de Homicídios da Capital, os 12 casos listados nesta já tiveram seu inquérito concluído e encaminhado ao Ministério Público, exceto os cinco casos que ocorreram neste ano. A assessoria do Tribunal de Justiça informou que só faz buscas de processos pelo número ou nome do autor, o que de certa forma inviabilizou os pedidos de informação. A assessoria de imprensa do Ministério Público não concluiu a pesquisa a tempo do fechamento desta reportagem. Também tentamos contato com a delegada Salete Mariano Teixeira, responsável por pelo menos um dos casos, mas ela afirmou não comentar sobre suas investigações.
A reportagem “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% mais no isolamento social” foi realizada colaborativamente entre Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.
Equipe:
Portal Catarinas: Paula Guimarães e Inara Fonseca
Folha da Cidade: Fábio Bispo, Míriam Santini de Abreu e Priscila dos Anjos
CatarinaLAB: Fábio Bispo
Fotos: Alice Sima e Odara Cris
Ilustrações: Hadna Abreu
Dados: Fábio Bispo
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Violência Policial
Ativista teve a casa invadida e foi intimidada por policiais
Ativista da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio de São Paulo filmava uma abordagem policial violenta, quando os policiais a viram filmando, invadiram sua casa e ela foi intimidada.
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5 anos atrásem
02/11/20por
Joana Brasileiro
Ao testemunhar uma abordagem violênta que ocorria próximo a janela da sua casa a professora e ativista Maria Nilda de Carvalho, a Dinha, começou a gravar com o celular. Os policiais perceberem a filmagem, e invadiram sua casa arrombando o portão, e a porta, abrindo a janela e derrubando a cortina. Os policiais fizeram xingamentos e jogando as luzes lanternas, tentaram intimidar a ativistas com ameaças de prisão.
Dinha é articuladora em seu bairro, zona sul de São Paulo, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, e graças a sua experiência e consciência teve coragem de gravar a ação da polícia contra pessoas no seu bairro. Ela gravava e transmitia simultaneamente a um dos grupo da Rede, para conseguir se proteger. Os policiais então invadiram a sua casa.
Campanha de proteção a Ativista
Em função dos danos causados a sua casa e a necessidade de maior proteção a ativista, a Rede lançou uma campanha no link :
https://abacashi.com/p/portas-janelas-e-camera-de-vigilancia-para-dinha as doações também servem para comprar uma câmera de vigilância e ampliar a proteção da ativista que sofreu ameaça dos policiais.
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio é um grupo que se pauta no trabalho em rede composto por organizações, como coletivos, ONGs e Pastorais, e pessoas, com atuação voluntária, que são ativistas e profissionais de várias áreas tanto do setor público, quanto do privado do Estado de São Paulo. Esta articulação de militantes denuncia as frequentes ações de violência policial, que ocorrem principalmente nos bairros periféricos de São Paulo, e buscam informar as vítimas e as conectar as instituições e ONGs que possam protegê-las.
Assista a entrevista de Dinha contando mais sobre a ação e sua atuação na Rede de Proteção ao testemunho.
A campanha Fala Quebrada promovida pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio contém dois formulários que permitem denúncias em dois casos:
Para CASOS DE VIOLÊNCIA POLICIAL, clique ou copie e cole em seu navegador: https://forms.gle/f446ajmbiPpcmyVC6
Para DENÚNCIAS RELACIONADAS A TRABALHO, clique ou copie e cole em seu navegador: https://forms.gle/qpEcaq1QgWAn4nys6
Para mais informações, acompanhar
https://www.facebook.com/RedeContraoGenocidio/
https://www.instagram.com/rededeprotecao_e_resistencia
Como a ativista foi intimidada pelos policiais
Apesar das ameaças ela não saiu de casa com medo dos policiais. Eles arrombaram a porta da sala, causando destruição em sua casa e desespero em sua família, composta por crianças pequenas. Os policiais tomaram o celular da mão de Dinha, na tentativa de apagar os vídeos, ameaçando levá-la à delegacia, incriminá-la, ou fazer isso com vizinhos, caso ela não cedesse o aparelho ou se recusasse a ir com eles.
Os policiais também olharam sua casa, fotografaram o interior e uma policial feminina a revistou truculentamente. Antes da invasão, Dinha ainda teve tempo de avisar amigos e familiares, que logo foram socorrê-la. Ao fim, os policiais foram embora e deixaram seu celular com sua vizinha.
Os policiais alegavam estar na abordagem, procurando o assassino de um outro policial, que segundo a reportagem da Ponte.org teria acontecido num bairro à 18 km. De qualquer forma nada justifica essa abordagem ilegal, que contraria a Constituição Federal, a qual garante a casa como um asilo inviolável. Neste vídeo da Ponte.org é possível ver algumas das imagens gravadas por Dinha da ação da polícia na rua e na invasão da sua casa.
Violência Policial
Frases venenosas dilaceram a alma, não educam e matam
ARTIGO: Morte de ator negro Bruno Candé, em Lisboa, faz parte de uma sequência de ações rascistas e xenofóbicas em Portugal
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5 anos atrásem
31/07/20
Assassinatos, espancamentos, palavras e omissões matam, e são a marca dos ataques racistas e xenofóbicos em Portugal. Diversas entidades estão denunciando e se reunindo para se opor a esses ataques. A morte de mais uma vítima, o jovem Bruno Candé, ator, negro e português está motivando diversas ações e um ato de repúdio está marcado para hoje (31.07.2020) Às 18h.
Esse fato não isolado, é demonstrado neste artigo de Rita Cássia Silva, que também lembra outras vítimas recentes, como Luís Giovani Rodrigues, assassinado por espancamento no fim de 2019, Cláudia Simões e sua filha, que sofreram violência física e também as frases ditas à Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra.
Por Rita Cássia Silva (*), especial para o Jornalistas Livres
“Não existe nem nunca existirá respeito
às diferenças em um mundo
em que as pessoas morrem de fome
ou são assassinadas pela cor de pele”
(Sílvio Almeida, 2019, p.190).
No início do corrente ano de 2020, pudemos observar de camarote (rede social facebook) um Deputado da Assembleia da República Portuguesa, André Ventura, Homem branco, sugerir contra uma Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra, que “seja devolvida ao seu país de origem”. O contexto demarcava uma proposta da Deputada Joacine Katar Moreira (na época integrante do partido Livre) em que os patrimónios materiais africanos preservados nos museus portugueses deveriam de ser devolvidos aos seus países africanos de origem. Embora tenham decorrido manifestações de repúdios e encaminhamentos de procedimentos contra o tal posicionamento sexista e racista do Deputado André Ventura, por parte de partidos políticos da esquerda portuguesa, junto ao Presidente da Assembleia da República Portuguesa, Dr. Eduardo Ferro Rodrigues, o facto é que os partidos não avançaram para voto de condenação para não “amplificar” as declarações do referido Deputado.
Decorre que o “episódio infeliz da democracia” sem sanção disciplinar e, com um entendimento parlamentar de que foi dado um ponto final ao episódio, reverberou-se no passado Sábado, dia 25/07/2020, no ator português, Homem negro, Bruno Candé, assassinado a queima-roupa em plena luz do dia, pelas mãos de um Homem português, branco, no auge dos seus 76 anos de idade. “Preto, vai para a tua terra” trata-se de uma frase muito utilizada contra pessoas negras naturais portuguesas ou com percursos de migrações, contra pessoas racializadas, na sociedade portuguesa em diferentes contextos. Ficámos a saber através das fontes noticiosas portuguesas que esta frase foi justamente uma das frases que Bruno Candé ouvira da boca do Homem que lhe retirou a vida. Bem como, “Vou violar a tua mãe”, “Fui à tua mãe e àquelas pretas todas de merda”, “Tenho armas do ultramar em casa e vou-te matar”.
Bruno Candé foi assassinado no seguimento do espancamento perpetrado contra o jovem estudante negro, cabo-verdiano, Luís Giovani Rodrigues, no fim de 2019, em Bragança, ato que teve enquanto consequência a sua morte. No seguimento da violência física que deixou Cláudia Simões, Mulher negra, desfigurada e sua filha pequena, criança negra, traumatizada, no Conselho da Amadora, por parte de um agente da força de segurança pública. Também no seguimento do assassinato de George Floyd pelas mãos de um agente da força de segurança pública nos E.U.A., ato potencializador do Movimento Black Lives Matter cujas reverberações fez-se sentir em diferentes localidades do globo terrestre. Em entrevista ao Apenas Fumaça (projeto de média independente), publicada no Geledés – Instituto da Mulher Negra, em 2018, Mamadou Ba, Dirigente da SOS Racismo, comunicara que “Em 15 anos mais de 10 jovens negros morreram nas mãos da polícia”. Quanto as Mulheres negras/mães, Mulheres/mães racializadas (brasileiras), Mulheres/mães brancas em situações de pobreza, as práticas de racismo/xenofobia/discriminações múltiplas não são diferentes: é-lhes negado o direito à maternidade, em situações de vulnerabilidades sociais, a saber: se forem vítimas de violências domésticas, se estiverem no país ao abrigo do tratado de saúde entre Portugal e países africanos ex-colonizados, se estiverem desempregadas e forem pedir ajuda a determinadas instituições do Estado que têm em suas prerrogativas apoiar pessoas em situações de vulnerabilidades sociais. Se não aceitarem ligar as trompas de falópio! É-lhes atribuído a condição enquanto seres humanos indignos de criarem seus filhos e filhas: “a mãe está com problemas psicológicos”, “a mãe não tem competências parentais”, “a mãe é um monstro”, “não se sabe se a mãe, por ser brasileira, é de favela ou empresária”, “a mãe é drogada, anda com drogados e não tem higiene”, “a mãe é burra”, “a mãe é muçulmana, vai praticar fanado”, “a mãe abandonou o filho”, “a mãe é agressiva”, “a mãe mente”, “a mãe é garota de programa”, “a mãe é histérica”, “a mãe trabalha de mais”, “a mãe é alienadora”… Às crianças, por sua vez, por vezes ficam órfãs de mães vivas, sendo subjugadas a vários tipos de violências (perda do direito de conviverem dignamente com suas mães e famílias biológicas – criminalização da pobreza, discriminação étnico-racial, xenofobia, reprodução social do colonialismo, abusos sexuais, discriminação de género, convivências impostas em regimes de guardas compartilhadas entre progenitores agressores e/ou abusadores e, mães protetoras, re-vitimizadas institucionalmente). Tais situações contidas em relatórios entregues a AR, através de associações civis, denunciadas publicamente em jornais portugueses, denunciadas a organismos internacionais, ao que parecem não causam nenhum movimento de empenho transformacional por parte da classe política.
No mais recente relatório da ONU, Dainius Pūras, psiquiatra, relator especial, recomenda aos Estados Membros a incorporação do Direito a Saúde Mental em todos os contextos mundiais. Recomenda que os Estados devem adotar todas as medidas necessárias para garantir a proteção e o florescimento de um espaço cívico como indicador chave do cumprimento do direito à saúde. O que significa que deve haver participação cidadã das pessoas nos processos que dizem respeito às suas vidas. Não pode haver desenvolvimento de saúde coletiva em territórios onde há negação das vozes de grupos de pessoas historicamente oprimidas durante séculos (mulheres, crianças, pessoas negras, pessoas racializadas). Pūras afirma que o modelo biomédico corre o risco de legitimar práticas coercitivas que violam os direitos humanos e podem implantar ainda mais a discriminação contra grupos que já estão em situação marginalizada ao longo de suas vidas e através das gerações.
Frantz Fanon (1968), psiquiatra, explicita-nos que:
“Por ser uma sistematização que nega o outro, uma decisão furiosa de negar ao outro qualquer atributo de humanidade, o colonialismo compele o povo dominado a se interrogar constantemente: Quem sou eu na realidade?”.
O problema é precisamente este. Vivemos no ano 2020, legitimando posicionamentos e procedimentos coloniais em Portugal. Protege-se agressores, racistas, machistas, abusadores sexuais, raramente as vítimas.
A sugestão de “devolução à sua terra” por parte de um Homem branco, detentor de privilégios, dentro da Casa da Democracia – AR, proferida contra uma das três únicas Deputadas Mulheres negras, em Portugal, feriu atrozmente a nossa democracia. Sobretudo porque além de termos perdido um momento único de afirmação dos valores democráticos em Portugal, de dignificação da pessoa humana Mulher negra (torturada durante séculos), de dignificação das pessoas humanas em suas diferentes culturas que contribuem para o desenvolvimento socioeconómico e cultural do país e de inibição de práticas nefastas à humanidade, como o racismo e o sexismo, potencializou-se socialmente mais práticas de violências contra pessoas negras, racializadas, sejam elas naturais portuguesas ou possuam elas percursos de imigrações. Bruno Candé Marques, artista negro português, nascido em Portugal em 1980, foi brutalmente assassinado devido ao racismo estrutural que não tem sido ferozmente combatido em Portugal, desde a primeira infância às faculdades, empresas, instituições do Estado e AR. Não faltam relatos das vítimas! Não faltam pesquisas qualitativas e quantitativas! Não faltam relatórios de organizações internacionais que têm vindo na última década, recomendar mudanças estruturais a Portugal.
Que o assassinato de Bruno Candé em Portugal, bem como o assassinato de George Floyd nos E.U.A., todas as mortes de pessoas negras e indígenas no Brasil, resultantes do genocídio que está a decorrer, os assassinatos de 52 pessoas em Moçambique, em Abril deste ano, as retiradas de crianças negras, racializadas, indígenas, de suas famílias biológicas, em Portugal, no Brasil, nos E.U.A., em outros países europeus, entre tantas outras barbaridades, não sejam passíveis de não serem debatidas socialmente. Somos ou não, mulheres e homens do nosso tempo? Somos ou não capazes de responder socialmente com celeridade e firmeza que não podemos ser tornados cúmplices das mais variadas formas de violências? A Bruno Candé Marques, um irmão, paz eterna. Deixou esposa e três filhos pequenos. Deixou a sua Mãe com 78 anos de idade. Mais uma Mãe Mulher negra que perde um filho para a prática racista. Do fim do século XIV até os dias atuais, as Mulheres Negras choram as retiradas violentas dos seus filhos e filhas. Séculos de desumanização do povo negro. Aos familiares e amigos do irmão Bruno Candé Marques: força positiva, resiliência, saúde e determinação. Que nunca nos esqueçamos de que o presente social esclarecedor em que estamos vivenciando em Portugal, demarca o futuro das gerações de crianças que estão crescendo. O Racismo estrutural MATA. Queremos pessoas negras e racializadas a viver em PAZ. Saudar dívidas históricas significa criar os alicerces para que pessoas com responsabilidades políticas e toda a sociedade não reproduzam discriminações racistas, sexistas ou xenofóbicas contra as pessoas. Todas as pessoas têm direito a sua dignificação. Artigo 1o da Constituição da República Portuguesa. Que faça-se Luz!
ALMEIDA, Silvio (2019), Racismo Estrutural, São Paulo, Sueli Carneiro Pólen. FANON, Frantz (1968), Os Condenados da Terra, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
RITA DE CÁSSIA é antropóloga; artista, activista e arte educadora brasileira radicada em Portugal há 19 anos. Rita, também escreve no Diário do Distrito de Setúbal, (LINK https://diariodistrito.pt/tag/rita-cassia/) , e também no Jornal Público, de Portugal (LINK https://www.publico.pt/autor/rita-cassia ) .
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Manchete
Edifício Caveirão: entre ruínas e violência policial, mulheres lutam para não ir para a rua
Publicadoo
5 anos atrásem
29/06/20
Por Laura Capriglione e Lina Marinelli
“Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo pra lua
Nada continua” (Caetano Veloso)
O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.
Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos –sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”
O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.

Caveirão: policiais militares ameaçam moradores
Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.
O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.
Sofrimento demais

Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:
–Você quer fugir?
Ela nem ouviu. Ela sentiu:
–Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?
–Sim!
–Quero!
“Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”
Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.
Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.

Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.
Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.
Moradia de carros

Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.
O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.
O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.
Casa sem banheiro, sem teto, sem nada
O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.

Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”
João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”
“Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.
O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.
Mas é infinitamente melhor do que a rua.”
“A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. Porque para a rua eu e meus filhos não vamos. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. Eu ofereço o meu peito para a a bala. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim” (Elisângela)
Veja o vídeo gravado na ocupação:
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