Por Joana Zanotto e Isabella Fiuza, enviadas dos Jornalistas Livres em Montevidéu
O domingo de eleições (27/10) presidenciais e legislativas amanheceu cinzento em Montevidéu. Apesar do momento crucial para a política do país, as ruas se conservaram tranquilas durante todo o dia, com a presença massiva de eleitoras e eleitores. Observamos muitas pessoas idosas e com necessidades especiais indo votar. Os mercados são proibidos de vender bebidas alcoólicas por 24 horas até o fim da eleição.
Ativistas e eleitoras/es da esquerda começaram a se reunir para os festejos, perto do encerramento das votações às 19h30, na avenida principal 18 de Julio, que corta a capital ao longo de sua extensão, e que no final da noite se encheu de gentes, mesmo diante da alta probabilidade de segundo turno, previsto para o dia 24 de novembro.
Encontramos com diversos militantes da Frente Ampla durante o dia, distribuindo folhetos e bandeiras em tendas pela capital.
Logo cedo na primeira hora da votação, que teve início às 8h, o simpático e popular ex-presidente José Pepe Mujica (2010-2015) votou. Aos 84 anos, ele disputa uma vaga ao Senado. Assim como sua companheira, a atual vice-presidenta no governo de Tabaré Vázquez, Lucía Topolansky, aos 74 anos. Ambos da coligação progressista Frente Ampla lutaram contra a ditadura militar no Uruguai, que perdurou entre 1973 e1985.
O candidato a presidente pela Frente Ampla, Daniel Martínez, chegou cerca de 11h30 ao seu colégio eleitoral, na Faculdade de Administração e Ciências Sociais, no Bairro Pocitos, em Montevidéu, onde permaneceu na fila por uma hora até votar conversando com jornalistas. Em entrevista para Jornalistas Livres, disse que pretende, caso eleito, formar entre os países latino-americanos “uma verdadeira integração” visando fortalecer e sustentar um lugar muito mais digno no mundo. “Foi a luta dos que sonharam uma América Latina independente e também muito mais integrada.” Martínez fez referência ao herói libertário uruguaio José Artigas.
É grande a expectativa no processo eleitoral do Uruguai perante a convulsão política que vive a América Latina neste momento, na sua maioria colapsada em crises econômicas e sociais geradas pela agenda neoliberal, que é defendida pelos candidatos de direita no Uruguai, inclusive Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional. O candidato deve se aliar aos demais partidos de direita/conservadores no segundo turno, o que deixa em alerta os setores progressistas. Ainda mais que um dos candidatos nesse bolo, Manini, do partido Cabildo Abierto, fundado neste ano, se promove com discursos fascistas semelhantes aos que elegeram Bolsonaro no Brasil, com forte ênfase na segurança pública. Nas televisões uruguaias os políticos de direita já anunciam as possíveis coligações pela candidatura de Lacalle.
Os dois partidos principais de direita, Colorado e Branco, sempre rivalizaram entre si, mantendo-se por quase duzentos anos no poder. A possível aliança entre os dois partidos é uma tentativa de disputa com a coligação de esquerda.
São quinze anos e três mandatos da Frente Ampla à frente da presidência. O país conquistou importantes avanços nas liberdades individuais e coletivas durante esse período, como a descriminalização do aborto em qualquer circunstância e a liberação da venda e cultivo da maconha. Em 2018, o Parlamento de maioria frenteamplista aprovou lei para proteção da população transgênero.
A eleitora Giselle Marchesi falou em entrevista para a reportagem que nesses quinze anos se conquistou “igualdade de direitos para as mulheres, trans, gays e pessoas com deficiência. Eles [a Frente Ampla] fizeram muito e uma troca de governo a essa altura seria voltar pra trás.”
Junto aos avanços, o país enfrenta desafios como o alto custo de vida. A direita conservadora superexplorou o tema da segurança pública para impulsionar a sua campanha.
Uma proposta da direita de reforma à segurança pública para militarizar as polícias também foi votada neste domingo. A reforma foi rejeitada pela maioria dos eleitores nas urnas, mas ainda assim chegou a receber 47% de adesão.
O eleitor Javier Torres, que trabalha em uma empresa de ônibus e há dois anos também como motorista de Uber, conta que vota em Lacalle porque considera que “algumas coisas precisam mudar.” Ao mesmo tempo, ele considera que “não gostaria de militares nas ruas.”
Pepe Mujica fez uma declaração no final do ano passado, em Los Angeles, nos Estados Unidos dizendo que se conseguiu no país “até certo ponto, ajudar essa gente [pobres] a se tornarem bons consumidores; mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”. A autocrítica de Mujica ganhou bastante repercussão internacional. O ex-presidente, com seu jeito simples e repleto de dignidade, passou o sábado na praça junto a vice-presidenta Polansky conversando com passantes em campanha para a Frente Ampla.
Os resultados preliminares das eleições indicam o segundo turno entre Daniel Martínez e Lacalle Pou.
Uruguaios vivendo fora do país viajam para votar
São mais de 7 mil colégios eleitorais em todo o Uruguai; 6.314 em áreas urbanas e 808 em áreas rurais. A população é de 3,4 milhões de pessoas.
Uruguaios que vivem fora do país se organizaram para viajar nas eleições. O Uruguai é um dos únicos países que não possui o direito a voto consular e, portanto, os cidadãos não podem votar desde outros países.
Do Brasil saíram ônibus de Santa Maria (RS), Caxias (RS), Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC). A reportagem acompanhou a caravana das eleitoras e eleitores da Frente Ampla que partiram de Floripa rumo a Montevidéu. Durante as 20 horas de trajeto muita música e animação entreteve as 46 pessoas no ônibus fretado.
Integrou a caravana o professor de história Luis Hector, preso político e torturado pelo regime militar do Uruguai quando tinha 19 anos. Ele vive no Brasil desde que foi solto e sempre viaja para votar. Nessas eleições, Luis saiu do Rio de Janeiro de ônibus para se juntar à caravana e ir até o seu colégio eleitoral. Questionado sobre seu esforço para participar das eleições, afirmou convicto: “nós temos que ganhar. A esquerda não pode perder, ainda mais agora, no contexto em que a América Latina se encontra. O Chile está provando que a representatividade da direita está falida.”