A Venezuela vive hoje a maior crise política desde a tentativa de deposição do presidente Hugo Chávez em 2002, por meio de um Golpe de Estado. Desde que os protestos contra o governo de Nicolás Maduro começaram, convocados pela oposição agregada na MUD (Mesa da Unidade Democrática), mais de uma centena de pessoas morreram, gerando alvoroço internacional. Greves, prisões de líderes opositores e crise de abastecimento ocupam espaço nos mais diversos veículos de imprensa. Como resposta à crise, o presidente da República Bolivariana da Venezuela convocou uma Assembleia Constituinte a fim de pacificar os ânimos políticos e redefinir os rumos do Estado. A reação foi imediata na Venezuela. Maduro tem sido acusado de golpista e ditador por vozes que ecoam por todo mundo, inclusive no Brasil.
Este artigo pretende contribuir com o debate se debruçando na seguinte questão: a Assembleia Constituinte é constitucional? A pergunta, em que pese seu caráter técnico jurídico, é essencial para uma compreensão política do que é o governo Maduro: se a resposta for “não”, entenderemos que é uma ditadura despótica; se “sim”, é um governo constitucional submetido a leis. Este autor recorrerá às lições de Hans Kelsen (1881 – 1973), maior jurista do século XX, cuja importância no direito jamais foi superada. Para responder à pergunta formulada acima, consultei a “Constituição” da Venezuela e o livro “Teoria Pura do Direito”, de Kelsen (Ed. Martins Fontes, tradução de João Baptista Machado).
Como pretendo fazer um juízo de valor baseado no Direito é preciso estabelecer o que é o direito, livre de interpretações ideológicas estranhas à ciência jurídica. Sem isto, não podemos saber o que é ou não legal nesta celeuma. Vejamos como o austríaco Hans Kelsen define o “direito”:
“Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”. (Pág. 5).
Ora, é direito um “Sistema de normas” e não uma série de exigências políticas feitas pela oposição venezuelana. Parece óbvio, e deveria de fato ser! Mas quando se trata da Venezuela, o que se vê é a reprodução de narrativas políticas e ideológicas (à direita e à esquerda) que forçam uma ideia de que o que é justo para uns deve ser compreendido como direito vigente. Se a ordem neoliberal é tida como a mais justa, isto nada tem a ver com o direito. O mesmo poderia ser dito sobre uma ordem socialista. Quando se trata de “justiça”, o debate se torna mais político, moral ou teológico, que efetivamente jurídico. Se a Constituinte é legal ou não, não se pode avaliar em termos de “justiça”. Se Nicolás Maduro gosta ou não de Leopoldo López, isto não importa para uma análise estritamente jurídica.
Neste caso, vale dizer, que o que importa aqui são as normas venezuelanas, e não brasileiras ou americanas. Temos valores diferentes e isto não pode contaminar a nossa noção de direito a respeito do país vizinho. O que é legal aqui pode ser ilegal lá, e o que é legal lá pode ser ilegal aqui, sem que nenhum cidadão de um ou outro país possa dizer que o outro não tem uma “ordem” constitucional vigente.
Por falar em “Ordem”, vale a pena se debruçar nesta palavra. Nosso país vizinho teria ainda uma ordem, em meio a tantas mortes e depredações? A resposta é afirmativa, por mais contraditório que possa parecer. O fato de existirem pessoas contrárias a uma ordem não significa que esta não exista. O “ser” (fato) nem sempre está associado ao “dever ser” (norma). Se Leopoldo López é ou não um criminoso que deve ser preso, isto tem a ver com uma determinada “ordem” posta que é ou não contrariada. Nada tem a ver com a opinião de Maduro ou Capriles. Alguém pode ser um criminoso a depender da vigência de leis no tempo e espaço. Recolher gravetos para se aquecer no frio não é crime no Brasil (espaço) do Século XXI (tempo), mas era na Alemanha do século XIX. Ordem não tem a ver com o quanto determinado grupo político acha que a “casa está arrumada”, usando uma metáfora doméstica. Para o jurista austríaco é o seguinte:
“Uma ‘ordem’ é um sistema de normas cuja unidade é constituída do fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade”. (Pág. 33)
O chavista Orlando José Figuera, queimado vivo por oposicionistas, em 4/6
Derrubar o governo Maduro não é este “fundamento de validade” de que fala o texto. Incendiar alguém ou arremessar bombas contra a Suprema Corte não pode ser considerado válido, por mais que os opositores assim entendam, em nome do imperativo da “democracia” e “liberdade”. Serei direto: o fundamento de validade das normas e das ações na Venezuela é a Constituição promulgada em 1999. Qualquer juízo que passe disto não é jurídico.
Mas quanto ao governo de Nicolás Maduro, agiu de forma válida ao convocar uma Assembleia Constituinte que serve para criar outra Constituição que vai se colocar no lugar desta que é o “fundamento de validade” da ordem venezuelana? Seria possível propor uma nova ordem que suceda a presente sem feri-la? Sim, é possível. E não sou eu que digo, mas a própria Constituição venezuelana:
Artigo 347. O povo da Venezuela é o depositário do poder constituinte originário. No exercício de tal poder, pode convocar uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição.
Artigo 348. A iniciativa de convocar a Assembleia Nacional Constituinte poderá tê-la o Presidente ou Presidenta da República no Conselho de Ministros; a Assembleia Nacional, mediante acordo de dois terços de seus integrantes; os Conselhos Municipais em cabildos, mediante o voto de dois terços dos mesmos; e 15% dos eleitores inscritos e eleitoras no registro eleitoral.
Artigo 349. O Presidente ou Presidenta da República não poderá contestar a nova Constituição. Os poderes constituídos não poderão de forma alguma impedir as decisões da Assembleia Constituinte. Para efeitos da promulgação da nova Constituição, esta se publicará na Gazeta Oficial da República de Venezuela ou na Gazeta da Assembleia Constituinte.
Artículo 350. O povo da Venezuela, fiel à sua tradição republicana, à sua luta pela independência, pela paz e pela liberdade, desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou menospreze os direitos humanos.
Em quatro artigos compreendemos que (art. 347) o povo é depositário do poder Constituinte Originário, que é a capacidade de criar nova Constituição, ( Art. 348) o presidente da República tem o poder de convocar uma Assembleia Constituinte, (Art. 349) sem que ele ou qualquer poder constituído (legislativo ou judiciário) possa se opor. O art. 350, por sua vez, determina a permanência de valores democráticos e direitos humanos na Constituição.
Alguém poderia objetar que Maduro poderia ter escolhido outro caminho para a paz, como a renúncia, já que a constituição não o obriga a seguir o caminho que ele escolheu. Mas “uma norma pode não só comandar, mas também permitir e, especialmente, conferir a competência ou o poder de agir de certa maneira” (pág. 6).
Juízos de Valor – Maduro é “bom”
Kelsen, em sua teoria, estabelece dois tipos de juízo de valor: o objetivo e o subjetivo. Por questão de prudência é importante identificar em qual dos dois grupos se encaixa o nosso juízo, e dos outros, neste delicado debate.
“Quando o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é boa traduz que ela é correspondente a uma norma objetivamente válida, e o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é má traduz que tal conduta contraria uma norma objetivamente válida, o valor “bom” e o desvalor “mau” valem em relação às pessoas cuja conduta assim é apreciada ou julgada, e até em relação a todas as pessoas cuja conduta é determinada como devida (dever ser) pela norma objetivamente válida, independentemente do fato de elas desejarem ou quererem esta conduta ou a conduta diversa”. (Pág. 22).
Kelsen prossegue ainda:
“A sua conduta tem um valor positivo ou negativo, não por ser desejada ou querida –ela mesma ou a conduta oposta -, mas porque é conforme uma norma ou a contradiz”.
Em termos práticos: afirmar que Maduro cumpriu a Constituição ao convocar a Constituinte é um juízo de valor objetivo, pois seu ato é analisado tendo por base a norma constitucional que lemos acima. Dizer que Maduro é um ditador por ter convocado a Constituinte para se “perpetuar no poder” é um juízo de valor subjetivo, cuja importância para o direito se compara ao julgamento estético de seu bigode, ou seja, não tem o menor significado jurídico. Deste modo, o que fez é “bom” do ponto de vista jurídico. Você discordar disto seria um valor subjetivo, baseado em sua vivência, ideologia, religião ou moral.
Não pretendemos dizer aqui que tudo vai bem na República Bolivariana. Não vai! Mas não é por causa da Constituinte. É prematuro acusar de ditador um cumpridor da Constituição, dado que faltaria um elemento fundamental para caracterizar Maduro deste modo: o despotismo, que é o desrespeito à lei. Se os países do Mercosul suspenderam a Venezuela, não é por romper com cláusula democrática ao convocar a Constituinte. O dispositivo legal está lá há anos: se este é “antidemocrático”, por que não repararam nisso antes?
Quanto aos brasileiros que gritam golpe “lá” e pediram golpe “aqui”, nada podemos esperar de coerência moral, política ou jurídica.
A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.
Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes.
A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial
A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.
“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.
Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán—, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.
O novo ciclo
A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.
O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.
Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.
A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.
Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.
Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)
Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.
Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.
Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.
Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.
Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019,pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.
Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.
Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.
Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).
A LEI ATUAL
Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.
A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos. O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.
Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.
Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.
Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.
Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.
Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.
Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.
Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.
DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES Buenos Aires, 18 de outubro de 2020
Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia. Viva a Bolívia! Evo Morales