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Categoria: Saúde

  • João Torrecillas Sartori: Bolsonaro, o inconsciente e o negacionismo da pandemia

    João Torrecillas Sartori: Bolsonaro, o inconsciente e o negacionismo da pandemia

    Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

     

    Nos últimos dias, em meio à Pandemia da COVID-19, uma atitude negacionista tem sido comumente constatada, não somente em redes sociais, mas também no espaço público. Muitos estariam relativizando a gravidade da situação brasileira. Mais séria ainda seria outra constatação: entre os negacionistas, se incluiriam ainda profissionais de saúde; inclusive, médicos. O negacionismo de parte da população, consistindo em uma atitude de algum modo esperada em momentos de crise, não seria restrito ao Brasil, mas estaria ocorrendo mais frequentemente no País. O que motivaria uma coletividade a este negacionismo?

    Freud, criador da psicanálise, considerou que certas ideias do indivíduo, ao acessarem a sua consciência, causariam excessivo desprazer sendo por isso recalcadas, mantidas inconscientes. A ideia monstruosa de uma Pandemia, em si, já tenderia a compelir muitos a um mecanismo psíquico de defesa, a uma relativização negacionista de sua gravidade. Embora o recalcamento, relacionado com esta relativização, mantenha controlado o nível de tensão do indivíduo, também inviabiliza certas atitudes importantes deste no enfrentamento de uma crise. Assim como a febre de um indivíduo que, embora melhore as suas condições de combate a uma infecção, será nociva caso aumente acima de um certo nível. Embora esperado em alguma medida, o negacionismo não seria de modo algum a maior tendência dos indivíduos nesta situação. Contudo, no Brasil, esta reação tem sido mais comum entre os apoiadores de Bolsonaro. Como se explicaria esta sua atitude?

    No início da Pandemia, ansiosos pelas declarações do Presidente, em um momento de apreensão, seus seguidores acríticos se acalentaram enormemente ao escutarem algumas de suas mentiras, tais como a consideração da COVID-19 como uma “gripezinha” e a consideração dos posicionamentos oficiais de sérias instituições internacionais de saúde como uma “histeria”. Freud considerou que o discurso do líder, enquanto a massa existisse, seria necessariamente considerado como verdadeiro pelos seus membros comuns. O negacionismo do líder resultaria no negacionismo dos liderados.

    Além disso, não somente em rede nacional, mas também em vias públicas, Bolsonaro contrariou relatórios científicos, assim como orientações e recomendações das mais sérias instituições internacionais e nacionais no âmbito da saúde coletiva. Esta sua atitude, de modo algum inédita, embora indique desprezo pelas vidas dos não-membros de seu clã, reverbera em um contexto muito mais amplo, de expressiva ignorância coletiva sobre aquelas que viriam a ser as vantagens de se conceber a ciência como norteadora de Políticas Públicas.

    Bolsonaro, como líder de uma massa, influenciaria muitos diretamente –sugestionando bolsonaristas em certos sentidos, condicionando seus pensamentos, seus sentimentos e suas atitudes– e indiretamente –como efeito de uma “rede de arrasto” relacionada com as identificações estabelecidas entre bolsonaristas. Em meio à Pandemia, o discurso mentiroso do líder acerca de seus opositores (entre os quais, neste momento, a ciência e as instituições científicas) estaria contribuindo para uma situação de alienação coletiva capaz de acarretar aumento de agravos e de óbitos.

    Certamente, Bolsonaro não é o único agente da alienação acerca da importância da ciência e de suas instituições. Certos líderes religiosos, visando à manutenção de sua “indústria da fé”, vêm atacando a ciência. E, tendo sido idealizados pelos muitos membros de suas Igrejas – neste caso, sendo concebidos coletivamente como intermediários entre eles e sua divindade –, convenceram esses fiéis a ignorar recomendações científicas. Não raramente, inclusive, um deles tem utilizado os veículos midiáticos dos quais é dono para disseminar desinformação e mentiras em uma escala absurda. Reiteram –de modo perverso– a mencionada tendência, constituída na massa bolsonarista da idealização do Presidente. Por outro lado, quando o discurso de certos profissionais de saúde se alinha ao discurso de Bolsonaro, como resultado de seu apaixonamento pelo mesmo ou pela própria incapacidade momentânea de “encarar” a situação, os riscos são ainda maiores, se considerada a influência destes profissionais sobre a população.

    Freud (1921) considerou que a idealização de um indivíduo, a seleção deste como um líder da massa, ocorreria sob certas condições, entre as quais, o reconhecimento de uma similaridade entre os membros desta massa e este líder. Comumente, esta similaridade consistiria no mesmo desejo inconsciente ou no mesmo ódio a certa entidade, indivíduo ou grupo social. Nos últimos anos, o estabelecimento e a ampliação de certos “ideais sociais” – tais como o antipetismo, o anticomunismo e o ideal antissistema – contribuíram em muitos casos à idealização destes líderes religiosos ou políticos, os quais instrumentalizaram estes mesmos “ideais” estrategicamente, viabilizando seus negócios. Parte da população, alienada pelos seus líderes, seria norteada imaginariamente pelo delírio de que a suposta Pandemia seria uma narrativa comunista – ou, mais restritamente, petista – com o objetivo único de derrubar Bolsonaro.

    Despreocupados pelo Presidente, certos negacionistas da Pandemia não somente aumentam o seu risco de infecção pelo vírus – e, indiretamente, também o risco dos demais –; mas, também, “contaminam” a sociedade, psiquicamente, em decorrência de uma “rede de identificações”. Mesmo os não-bolsonaristas, ao notarem que indivíduos amados estão agindo normalmente, não receando a Pandemia, estarão mais dispostos, inconscientemente, a um negacionismo. A gravidade da situação, em si, já compele o indivíduo a um complicado trabalho psíquico de elaboração, o qual poderia ser insuportável. Caso Bolsonaro, apoiado por cerca de 30% da população, mantenha mesmo que de modo suavizado atitudes relativizadoras da situação, o risco de “contaminação” coletiva – não somente psíquica, mas corporal –, aumentará. Consequentemente, os danos serão imensuravelmente aumentados.

    Alguns dos efeitos de certas atitudes, tais como as presidenciais, contrárias à efetiva mobilização de esforços no combate à disseminação da COVID-19, serão irreversíveis. De outro lado, certamente, existem alternativas a serem realizadas no intuito de uma redução dos danos ocasionados pela COVID-19 no cenário nacional. Mas, caso o Presidente mantenha o seu discurso anti-científico e não se contenha imediatamente, este negacionismo certamente agravará a crise sanitária e as mortes decorrentes, em meio a uma situação que inclui as conhecidas limitações do sistema público de saúde e as complicadas condições de vida da maioria dos brasileiros. O enfrentamento da Pandemia no Brasil, que apresenta agora uma curva ascendente aproximadamente como a da Itália, depende não somente de um montante expressivo de recursos materiais, mas de uma ampla e coordenada capacidade de aceitar a realidade.

     

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  • São Paulo: A ascensão dos número relacionados ao novo coronavírus

    São Paulo: A ascensão dos número relacionados ao novo coronavírus

    O governo do São Paulo divulgou ,  nesta sexta-feira (3) os números  oficiais  da pandemia no estado. O número de óbitos  triplicou em uma semana, passou de 68  para  219 óbitos relacionados ao novo coronavírus.

    Os casos confirmados também quadruplicaram, saltando de 1.223 para 4.048.

    Os óbitos concentram-se em 25 cidades, sendo que 8 delas tiveram hoje a confirmação do primeiro óbito, sendo: Barueri, Carapicuíba, Diadema, Itapecerica da Serra, Franco da Rocha e Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo; além de Jaboticabal e Cravinhos, na região de Ribeirão Preto.

    O total de municípios com pelo menos um óbito são: São Paulo, São Bernardo do Campo, Osasco, Cotia, Guarulhos, Santo André, Sorocaba, Arujá, Barueri, Caieiras, Campinas, Carapicuíba, Cravinhos, Diadema, Embu das Artes, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Jaboticabal, Mogi das Cruzes, Ribeirão Preto, São Caetano do Sul, São Sebastião, Suzano, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista.  O total soma 121 homens e 98 mulheres.

    Entre as 219 mortes, 24 tinham mais de 90 anos; 57 na faixa de 80-89 anos; 66 entre 70-79; 45 de 60-69 anos. As demais vítimas incluem pessoas com menos de 60 com comorbidades que, assim como os idosos, representam grupo mais vulnerável a complicações da COVID-19.

     

    Força-tarefa

    O Instituto Adolfo Lutz realizou nas últimas 24h uma força-tarefa para diagnosticar todos os óbitos considerados suspeitos que estavam no Instituto Adolfo Lutz.  Das 201 amostras que estavam aguardando resultado, 32 testaram positivo para COVID-19, 132 negativo e 37 foram consideradas inadequadas, ou seja, a unidade que realizou a coleta não manteve a amostras em temperatura adequada ou não havia amostras suficiente para análise. Estes resultados estão sendo comunicados para as unidades e municípios notificantes e sendo inseridos em sistema oficial.

     

    Casos no país

    O Brasil contabiliza  359  óbitos e  9205  casos até o dia de hoje.

     

  • COVID-19 e a luta de classes

    COVID-19 e a luta de classes

    por Karina Iliescu para os Jornalistas Livres

    Mike Davis traça o histórico de pandemias mundiais e recorda de um familiar próximo da COVID-19, a SARS, seus nomes originais são identificados por SARS-Cov-1 (2002) e SARS-Cov-2 (2020). E voltando em 1976, tivemos o Ebola. Davis traz à tona esses vírus como exemplos para entendermos a COVID-19 e seus efeitos.

    Apesar de já ter sido sequenciado o genoma, alguns problemas fatais são apresentados por Davis: a desinformação e a falta de kits de testes que resultam na falha dos parâmetros e na falta de dados das mutações e das infecções. O vírus se modifica em diferentes locais e, através da experiência com a gripe espanhola e a H1N1, o resultado do contágio nos mais jovens vai ser radicalmente diferente nos países e grupos mais pobres.

    Através da história, Davis relata quais foram os acontecimentos entre diferentes imunológicos (tanto os fortes quanto os fracos), a desnutrição e as infecções existentes das diferentes populações e como o vírus se adapta.

    Com anos de cortes na área da saúde nos Estados Unidos, inclusive no governo Trump, uma resposta à COVID-19 que não fosse lenta, seria quase impossível. Davis também analisa outras consequências: “os hospitais se tornaram estufas para superbactérias resistentes a antibióticos, como S. aureus e C. difficile, que podem se tornar grandes assassinos secundários em unidades hospitalares superlotadas”, além dos asilos que foram revelados como “o primeiro epicentro da transmissão comunitária” em alguns subúrbios dos Estados Unidos.

    Diante destas questões que só são reconhecidas como emergentes durantes as epidemias, Davis enfatiza a desigualdade social exposta. Quem pode se isolar e trabalhar de home office se salvaguarda e cuida de seus próximos, enquanto milhões de trabalhadores e desempregados vivem a escolha injusta e mortal entre comer e se expor dissipando o contágio à desconhecidos e familiares.

    A luta por uma política pública internacional agora se expande durante a atual pandemia em um sistema de globalização capitalista.

    Dona Ritalina, empregada doméstica, recentemente desempregada por conta da COVID-19. Ela trabalhou por anos numa casa e para ter a carteira assinada, precisou aprender a escrever. Dona Ritalina passou meses estudando para ter a carteira assinada, mas não conseguiu a tempo com a chegada da pandemia e seu patrão à demitiu sem nenhum benefício. Por ser budista e ter contato com uma comunidade budista, hoje ela recebe cestas básicas dessa comunidade, mas não sabe o que será no dia de amanhã.

     

    POLÍTICA ANTICAPITALISTA EM TEMPOS DE COVID-19

    David Harvey analisa o sistema capitalista e como se compõe na teoria e na prática. Na prática, o capital tende a quebrar-se diante da desigualdade social, do crescimento tecnológico constantemente está substituindo e reconfigurando e entre outras mutações inevitáveis. O sistema capitalista produz a sua própria contradição.

    Quando Harvey observou o crescente contágio na China, logo viu a crise econômica que estaria por vir. A China, como segunda maior economia do mundo, reflete diretamente nos outros países.

    A natureza quando observada, não é possível encontra-la a parte do social, da cultura e da política. É fato que os vírus altamente contagiosos retornaram consequentes à falta de higiene e de como as relações se consolidam em um modelo neoliberal.

    Harvey nos traz o entendimento que, apesar da demora ao entender o que de fato acontecia na China, logo vimos uma resposta drasticamente rápida de atendimento à saúde e à contenção do vírus através do isolamento social, muito diferente de países com 40 anos de neoliberalismo. Décadas de cortes na área da saúde e uma indústria farmacêutica que lucra escandalosamente com uma população doente, a resposta será violenta e desregular como o próprio sistema. Principalmente quando a resposta ao contágio é atrasada.

    Ao reconhecer que no sistema capitalista o consumo cria a demanda e que sem essa demanda, em tempos de pandemia mundial, Harvey alega que não vai acontecer uma flutuação na economia, e sim uma quebra. Boa parte da economia é abastecida pelo turismo e pelo consumo.

    “As companhias aéreas estão perto da falência, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa no setor hoteleiro é iminente. Comer fora não é uma boa ideia e os restaurantes e bares fecharam em muitos lugares. Até mesmo entregas a domicílio parece arriscado. O vasto exército de trabalhadores uberizados ou em outras formas de trabalho precário está sendo dispensado sem nenhum meio visível de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, concertos, convenções empresariais profissionais, e até reuniões políticas em torno de eleições foram cancelados. Estas formas de ‘consumismo experiencial baseado em ventos’ foram extintas.”

    Harvey expõe o que vivem os trabalhadores que estão na linha de frente e que não podem parar pois, inclusive, atendem aqueles que estão em quarentena e/ou doentes. Inclui que existe todo um sistema que é altamente sexista, racializado e etnizado nestes trabalhos geralmente informais e altamente precarizados.

    E principalmente neste contexto de pandemia, o aumento de desempregados e assalariados sem benefícios será grande. Por quanto tempo vamos passar por isto?

    “As únicas políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que Bernie Sanders possa propor e esses programas de resgate terão de ser iniciados sob a égide de Donald Trump, presumivelmente sob a máscara do ‘Make America Great Again’”, cita Harvey com ironia ao final de seu texto.

    Karen e Kelly aguardam por ônibus no centro de Atibaia, interior de São Paulo, após compras no mercado.

    FRANÇA: PELA SOCIALIZAÇÃO DO APARATO DE SAÚDE

    Alain Bihr rebate as teses que vinham sendo defendidas contra uma saúde pública de qualidade. As condições insalubres dos trabalhadores, as “junk foods” e a poluição é responsabilidade daqueles que nos governam. Mas quando realizam cortes na saúde pública e os hospitais privados prosperam (com ajuda do próprio governo) eles passam a idéia de que a responsabilidade a todos estes efeitos e o direito a saúde é exclusivamente individual.

    Agora, mais do que nunca, Bihr convoca as forças anti-capitalistas, associativas, sindicais e políticas para defender arduamente a saúde pública e de qualidade. Após o chamamento, apresenta 12 propostas a serem defendidas na França referente a saúde pública e que podemos usar como estudo, mesmo tendo um sistema de saúde diferente em diversos aspectos.

     

    COVID-19: A MILITARIZAÇÃO DAS CRISES

    Raúl Zibechi analisa o formato de controle da China para conter o vírus e critica todo o método de isolamento e contenção que a China utilizou e traz questões como: E a liberdade das pessoas saudáveis que não podiam sair?

    Zibechi compara o isolamento à campos de concentração e insiste que o medo circula maior do que o próprio vírus. Quando Zibechi faz essas comparações, ele tende a ir para uma orientação sobre controle em massa, como se chamasse nossa atenção para possíveis testes de militarização que está por vir.

    Na contra-mão dos outros autores, Zibechi nos faz lembrar de um inimigo que nunca sumiu: a desnutrição. E também relembra de outras gripes que matam todos os anos meio milhão de pessoas, mas que não são tratadas com a mesma emergência que a COVID-19.

     

    SOBRE A SITUAÇÃO EPIDÊMICA

    Alain Baidou traça o históricos de gripes virais e nos mostra que a pandemia atual não é uma surpresa. O único argumento surpresa é a falta de instrumentos para o combate, justamente por já termos passado por outras pandemias.

    Observa as diferentes reações diante a pandemia e expõe com críticas aqueles que se sujeitam à “misticismo, fabulação, oração, profecia e maldição”. A partir daí, começa a revelar as ideias mais simplistas que podem, de fato, resolver alguns problemas.

    Primeiro, Baidou coloca como essencial o entendimento científico da atual pandemia, para que, inclusive, derrube as falas racistas de que a culpa é dos chineses.

    Segundo, observa o valor econômico do mercado na China e como ele funciona por décadas e traça as contradições deste sistema quando se relaciona ao Estado mundial capitalista.

    Após culpar, verdadeiramente, os países pelo total despreparo, relata que o mundo ocidental não esperava que uma crise e um vírus dessa grandeza fosse afeta-los. Ele critica: “muitos provavelmente pensavam que este tipo de coisa era boa para a África negra ou para a China totalitária, mas não para a Europa democrática”.  Recriminando a atitude da França quando o vírus já estava circulando pela China, Baidou nota: “até muito recentemente, assembleias descontroladas e manifestações ruidosas, o que deveria desqualificá-los hoje, sejam eles quem forem, de denunciar em alto e bom som os atrasos das potências em tomar as medidas necessárias para o que estava acontecendo. Verdade seja dita, nenhuma força política na França tomou realmente esta medida perante o Estado Macroniano.”

    Por fim, Baidou analisa este momento de isolamento (na sua localização francesa), como uma oportunidade de reconfigurar projetos políticos com uma abertura a um possível comunismo, que devidamente sofra críticas mas que a própria epidemia evidenciará.

    “Não demos crédito, mesmo e sobretudo no nosso isolamento, a não ser às verdades controláveis pela ciência e às perspectivas fundadas de uma nova política, das suas experiências localizadas, bem como dos seus objetivos estratégicos.”

    Estabelecimento fechado em tempos de quarentena

    UM GOLPE COMO O DE “KILL BILL” NO CAPITALISMO

    Slavoj Žižek mostra a dualidade entre as ideologias que acreditam em um “novo Chernobyl” e que defendem o capitalismo, e consequentemente, esperam a queda no comunismo chinês. E, por outro lado, uma ideologia muito mais benéfica: a oportunidade de ver, no inevitável golpe ao capitalismo a partir de uma catástrofe, a defesa de uma rede global de saúde pública. Afinal, podemos observar já uma lista de medidas neoliberais que vem sendo destruídas com esta pandemia em curso.

    Žižek, apesar do olhar positivo a novos formatos de higiene e solidariedade, também traz uma triste realidade: um vírus real que vai voltar e provavelmente pior. E um outro vírus ainda desconhecido: o vírus virtual que atua através das redes. “As infecções virais atuam lado a lado, tanto na dimensão real como na virtual.”

     

    SOBRE OS AUTORES

    MIKE DAVIS é um escritor americano, ativista político, teórico urbano e historiador. Ele é mais conhecido por suas investigações de poder e classe social em sua terra natal no sul da Califórnia.

    DAVID HARVEY é um teórico da Geografia britânico formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. Em 2007 foi classificado como o décimo oitavo teórico vivo mais citado nas ciências humanas.

    ALAIN BIHR é um sociólogo francês ligado à corrente do comunismo libertário. Conhecido por seus estudos acerca da extrema-direita francesa, em especial do Front National, é também utor de vários estudos sobre socialismo e o movimento operário e um dos fundadores e editores da revista À Contre Courant.

    RAÚL ZIBECHI é jornalista, escritor e pensador-ativista, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina.

    ALAIN BADIOU é um filósofo, dramaturgo e novelista francês nascido no Marrocos. É conhecido por sua militância maoísta, por sua defesa do comunismo e do trabalhadores estrangeiros em situação irregular na França.

    SLAVOJ ŽIŽEK é um filósofo, professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana e diretor internacional da Birkbeck, Universidade de Londres.

  • Covid-19. Aprendendo com o vírus

    Covid-19. Aprendendo com o vírus

    A pandemia traz consigo uma mutação não apenas biológica, mas societal.

    Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da aids e resistido até a invenção da triterapia [coquetel], ele estaria hoje com 93 anos: teria aceitado de bom grado ter se trancado em seu apartamento na rua Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer pelas complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar sobre a gestão política da epidemia que, em meio ao pânico e à desinformação, se torna tão útil como uma boa máscara cognitiva.

    A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos órgãos). Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado no qual o poder age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de discurso através das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault poderia ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gerencia a vida e a morte das populações.

    Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da “História da Sexualidade”, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como o passo de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gerencia e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas se estendiam como uma rede de poder que transbordava a esfera legal ou a esfera punitiva, tornando-se uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendia por todo o território até penetrar no corpo individual.

    Durante e após a crise da Aids, vários autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunológicas. O filósofo italiano Roberto Espósito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham a mesma raiz, munus, em latim o munus era o tributo que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum(con)munus (dever, lei, obrigação, mas também oferece): um grupo humano religado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um presente e por uma oferta. O substantivo immunitas é uma palavra proprietária derivada da negação do munus. Na lei romana, a immunitas era uma dispensação ou um privilégio que exonera alguém dos deveres corporativos comuns a todos. Aquele que foi exonerado estava imune. Enquanto quem estava com fome era aquele que tinha todos os privilégios da vida comunitária removidos.

    Roberto Espósito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: supõe uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre os órgãos isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade considera potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição de imunização da comunidade, segundo a qual a comunidade se dará a autoridade para sacrificar outras vidas, em benefício da idéia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização desse paradoxo insuportável.
    O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas reproduz e estende a toda a população as formas dominantes de manejo biopolítico e necropolítico que já estavam trabalhando no território nacional.

    A partir do século 19, com a descoberta da primeira vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou do campo do direito e adquiriu significado médico. As democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade. Para Espósito, a maneira pela qual a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos do manejo imunológico. Essa compreensão imunológica da sociedade não acabou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando políticas neoliberais para administrar suas minorias racializadas e populações migrantes. É esse entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.

    Em 1994, no livro “Flexible Bodies”, a antropóloga Emily Martin, da Universidade de Princeton, analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises de poliomielite e AIDS. Martin chegou a algumas conclusões relevantes para analisar a crise atual. A autora afirma que a imunidade corporal não é apenas um mero fato biológico, independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que alternadamente produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.

    Se repensarmos a história de algumas das epidemias globais dos últimos cinco séculos sob o prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese capaz de assumir a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi quais serão as formas de suas epidemias e como você as enfrentará.

    Covid 19. Proteção e isolamento.

     

    As diferentes epidemias materializam na esfera do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações em um determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional até o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia permite estender a toda a população as medidas de “imunização” política que foram aplicadas até agora de maneira violenta contra aqueles que eram considerados “estrangeiros” tanto dentro como nos limites do território nacional.

    A gestão política das epidemias encena a utopia da comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, exteriorizando seus sonhos de onipotência (e os fracassos retumbantes) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin não tem nada a ver com uma teoria do complô. Não é a ideia ridícula de que o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para estender ainda mais políticas autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança, nada mais é do que replicar, materializar, intensificar e estender à toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no território nacional e em seus limites. Portanto, cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza frente a ela.

    Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu a cidade de Nápoles pela primeira vez em 1494. O empreendimento colonial europeu havia acabado de começar. A sífilis era como a arma de partida para a destruição colonial e as políticas raciais que viriam com eles. Os ingleses chamavam de “a doença francesa”, os franceses diziam que era “o mal napolitano” e os napolitanos que vinham da América: diziam ter sido trazido pelos colonizadores que haviam sido infectados pelos indígenas…

    O vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estrangeiro. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classe e “raça”, bem como as múltiplas restrições que pesavam nas relações sexuais e extraconjugais. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é quais serão as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas.

    A utopia da comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado na vida conjugal como núcleo da reprodução do corpo nacional. Portanto, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo fora das normas domésticas e matrimoniais que fez da sexualidade sua forma de produção, a trabalhadora sexual foi visibilizada, controlada e estigmatizada como o principal vetor da disseminação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginou) que curou a sífilis. Muito pelo contrário. O isolamento das prostitutas apenas as tornou mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos e especialmente da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.

    Meio século depois, a AIDS era para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade não era mais considerada uma doença psiquiátrica, depois de décadas de perseguição e discriminação social. A primeira fase da epidemia afetou, prioritariamente, o chamado 4 H: homossexuais, prostitutas (hookers) — profissionais do sexo, hemofílicos e heroinomâmos (heroin users).

    A AIDS remasterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tecera e que a penicilina e a descolonização, movimentos feministas e gays haviam desarticulado e transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão à homossexualidade causou apenas mais mortes. O que está transformando progressivamente a AIDS em uma doença crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, o direito de dizer não às práticas sem preservativo e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização e a triterapia. O modelo de comunidade/imunidade da Aids tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina, entendida como um direito de penetração inegociável, enquanto qualquer corpo sexualmente penetrado (homossexual, feminino, todas as formas de analidade) é percebido como desprovido de soberania.

    Voltemos agora à nossa situação atual. Muito antes do surgimento do Covid-19, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Antes do vírus, já estávamos passando por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que desenvolveram sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, passou-se de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma forma de produção feudal para uma forma de produção industrial-escrava e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.

    Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico, para formas de controle microprotético e mídia-cibernético. Em outros textos, chamei de farmacopornográfico o tipo de gerenciamento e produção do corpo e a subjetividade sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos não são mais regulados apenas pela passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão. e informação.

    A vida no cyberespaço. Foto: Engin Akyurt para Unsplash

     

    No campo da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, bem como a produção de triterapias, terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos índices de gestão da biotecnologia. A extensão planetária da Internet, o uso generalizado de tecnologias de computação móvel, o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informações em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância computacional por meio de satélites são índices dessa nova gestão semiotécnica digital. Se eu os chamei de pornográficos, é porque, em primeiro lugar, essas técnicas de biovigilância entram no corpo, penetram na pele, nos penetram; e segundo, porque os dispositivos de biocontrole não funcionam mais pela repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pelo estímulo ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis somos, melhor somos controlados.

    A mutação que está ocorrendo também pode ser a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política em que uma parte muito pequena da comunidade do planeta humano se autoriza a praticar práticas de predação universal a uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energia fóssil a uma sociedade de energia renovável. Também está em questão a transição de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto dessa mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é o planeta inteiro) e da imunidade onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.

    Imunidade e política nas fronteiras

    Manifestantes
    Repressão policial

     

    Biopolítica na era ‘farmacopornográfica’

    Centro de São Paulo às moscas. Foto: Sato do Brasil
    Ruas de São Paulo completamente vazias. Foto: Sato do Brasil

     

    Linha de Frente no combate ao Covid 19. Foto: Tedward Quinn para Unsplash

     

    A prisão branda: bem-vindo à telerepública da sua casa

    Dentro de casa. Cuidado com o vão. Arte: Ocupeacidade. Foto: Sato do Brasil

     

    Mutação ou submissão

    Educação é liberdade. Arte: BijaRi. Foto: Sato do Brasil
    Nuvens ornamentais. Foto: Sato do Brasil
    Por do sol em Salvador – BA. Foto: Sato do Brasil

     

    Tradução: Ricardo Moura

    Link original: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.amp.html

  • ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    Tudo cancelado. Era março e, de repente, o futuro não estava mais ali, a ação nas ruas exigindo saber quem mandou matar Marielle,  minha apresentação no teatro São Pedro em POA, o curso de literatura viva para professores que participarão da primeira Festa da Palavra em Itaúnas… tudo se pulverizou em materialidade imaginada só e sem o “quando”. Estávamos todos ansiosos indo para o futuro quando o mundo parou de ir. Se bem que eu andava reclamando de gastar tanto o meu verbo ir. A vida vai levando a gente num frenesi que, muitas vezes, não se tem tempo nem de desfazer as malas porque uma viagem se sobrepõe à outra. E o pior, isso era bom, isso era o “sucesso”.  

    Sem perceber, como escravos robotizados, entramos na doida corrida do ouro, porque dentro do sistema capitalista de altos lucros para os senhores, tudo nosso é muito caro. Então tem que se ganhar muito dinheiro pra se viver com a mínima dignidade: saúde, escola boa, comida, roupa, transporte. Tudo caro. Tudo escrotamente caro. E quem mais trabalha, menos ganha. A comida é cara. Uma passagem de avião, comprada na hora de viajar, despudoradamente te cobra mais porque sabe que você precisa, que é uma emergência. Aproveita-se o momento do desespero, é escancaradamente a taxa desespero! É isso que o capitalismo não quer que pare. Uma máquina de moer gente para transformar em dinheiro! É isso! Estávamos sendo moídos por dentro, lutando pesado para achar um canto para nossa necessária aula de Yoga, de música, um telefonema para os amigos. Congestionadíssimo, o tempo presente, ia sempre acumulado das tarefas de ontem, impossíveis de serem cumpridas num só dia, e as de hoje que, se não fosse a vida on line não pertenceriam ao tempo presente  simultaneamente. Esperávamos cartas por dias. Agora, elas chegam de toda parte do mundo dentro do mesmo “agora” em que apenas se esperavam cartas há vinte anos atrás. O agora não mudou de tamanho. É certo que pode ser imenso, mas é um agora apenas.

     

    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama
    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama

            A verdade é que desembarcamos dentro de nossas casas violentamente.

    Não tem mais aquela reunião física, aquele trabalho foi pra onde ninguém sabe, nem quando. Fora comprar comida, pra que comprar um vestido agora? Pra quê? Aonde vamos? Não vamos. Há uma hora em que o dinheiro vai acabar. O que faremos? É só uma questão de prazo. Isso me aflige e ao mesmo tempo me leva para o espaço da ignorância. Aquele em que fico quando ainda não sei o que eu vou fazer, que cena vou escrever, qual poema, que arco dramático terá esse romance ou essa  peça. É profícuo esse lugar. É vazio. Mas é nele que vai brotar o que houver. Estou perdida. Triste e estranhamente feliz. Tenho alguns compromissos virtuais, reuniões, aulas, mas, de cara, uma vida inteira voltou pra mim sem horas marcadas. Molho as plantas, cozinho, malho, amo, namoro meu amor, e as coisas estão todas animadas sabendo que voltei. No ateliê, recentemente organizado por uma especialista, a fofoca dos lápis, purpurinas, colas, tesouras e papéis de texturas e cores diversas é imensa. Também me aguardam roupas para tingir, revista da biblioteca, esculturas para colar, e muitos cadernos com seus manuscritos decifráveis e a serem digitados. O negócio é animado. Os livros, meu Deus, tantos livros se assanhando pra mim. Lerei todos? 

    Tudo se conecta e implora pela empatia, pelas correntes virtuais de solidariedade, pelo mundo desintoxicado de seu modo egoísta. Esse é o momento para a gente distribuir, olhar para aquilo que não usamos, compartilhar. Os dias de isolamento da humanidade precisam nos levar a uma nova sociedade. Estávamos isolados antes. Vivendo para derrotar o outro. 

    Creiam-me: o mundo muito torto conseguiu chegar aqui até com a fé sendo um produto de manipulação e de grana ao mesmo tempo. Ou seja, um mundo miserável, do ponto de vista espiritual. Amaldiçoado seja o templo que cobra prestação dos fiéis, e o pior,  que tem a má fé de os aglomerar em tempos de contágio onde o ser humano é o único e perigoso hospedeiro e transmissor da devastadora doença. E o presidente chamando o povo para a morte. Será que é ideia dele matar esses crentes? Já que ele sabe que não são todos atletas. Ou esse Deus tem preferências, é injusto, e só vai proteger do vírus os que pagarem o dízimo? Será que é por motivo comercial que os templos não podem parar? Se eu fosse evangélico, ia achar que o presidente está de má fé comigo. O Deus que faz tal distinção não pode ser chamado de Deus. Este é um tipo de cargo que não aceita injustos. Sem citar ainda os produtos vendidos nos templos e tudo isso é negociado, passa de mão em mão entre fiel e vendedor. A verdade é que a grana é que não pode parar. Muitos templos são negócios. Quem quer que não fiquemos isolados agora está apavorado em ficar sem dinheiro, perder o seu altíssimo lucro e fala-se em economia e como se essa pudesse existir sem a mão do trabalhador. Como se não fosse uma produção humana. Quem tem mais dinheiro está achando que tem mais direito à vida do que seu empregado doméstico que ele não liberou na quarentena. 

    Fiquemos em casa, reinventemos a vida. Há muito o dinheiro está em luta com o amor. Usando o seu nome em vão. Até bancos falam levianamente de amor e felicidade e lucram trilhões nos emprestando dinheiro a juros cruéis de dar inveja à mais alta agiotagem, fazendo refém a humanidade. Agora é hora de eles enfiarem as mãos nos próprios bolsos e tirarem as mãos dos nossos. É bom que a reparação tão logo aconteça. Urge.

    Enquanto isso sinto que a Natureza está gostando. As praias estão desertas. Ouvem-se mil vozes de pássaros em Copacabana. Espécies em extinção voltaram a dar as caras. Os céus estão mais azuis e estrelados em toda parte, de Pequim a Sampa, e o número de desastres automobilísticos nas estradas despencou geral. Golfinhos aparecem nas orlas, brincam. O planeta  respira, desocupamos seus poros. Parece que a Terra descansa de nós. Eu sinto, ela está farta de nós, da nossa presença tóxica, predatória, destruindo e pisando afoitos com a bota da pressa querendo fazer o tudo. Seguíamos vorazes, velozes e furiosos, em busca do pseudo próximo novo. De repente, aquele futuro imediato não será mais daqui a pouco. Vai demorar e será outro. Estamos sem quando. Esse importantíssimo advérbio de tempo que nos guiava como uma estrela na noite escura do inédito. Sabemos que a ciência deve ser ouvida, a arte compartilhada para nutrição geral e que o Estado, representante do povo que é, tem que segurar a estrutura e nos manter vivos até chegarmos à nova ordem. Que encontre esta grana. Que milionários usem os altos lucros agora para nos manter viáveis se quiserem ter gente viva consumindo quando o futuro voltar a ser possível.

    Abaixo os neoliberalistas, abaixo separatistas, abaixo a vida escrota e competitiva até o talo. Coisa tensa. Pois o jogo mudou. O mundo todo se tornou contaminador e contaminável. Neste momento constatamos que paz, igualdade e sobrevivência não são assuntos particulares. Renomados indígenas afirmam que o futuro é um delírio branco pois, no encalço cego deste futuro desprezamos passado e presente, que são simplesmente o seu chão. Estivemos todos muito tempo fora de casa. A mãe Terra nos  botou pra dentro. Que nos seja lição. O que do que fomos servirá para o novo mundo que surgirá depois da guerra? Já não somos mais os mesmos.

     

    Coluna Cercadinho de  palavras, Elisa Lucinda, outono inusitado, 2020

     

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  • Sindicato oferece colônia de férias para hospital de campanha

    Sindicato oferece colônia de férias para hospital de campanha

    Na guerra contra o coronavírus, o Sintaema – Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, que representa trabalhadores da Sabesp, Cetesb, Fundação Florestal e empresas privadas da área ambiental, disponibilizou oficialmente a colônia de férias da categoria ao governo do Estado para Hospital de Campanha ou base de apoio para o que for preciso.

    A Colônia de Férias tem cerca de 30 mil metros quadrados, 54 chalés com dois ou três quartos, cozinha e sala e fica no município de Nazaré Paulista, a 70 km de São Paulo (cerca de uma hora e vinte minutos). A estrutura dispõe de mais de 130 leitos que poderão ser utilizadas como Hospital de Campanha.

    Em nota de divulgação, o sindicado explicou que “neste período crítico em que todos estão unidos em solidariedade, esta foi a forma de ajudar a população e os profissionais da saúde no combate à pandemia”.

    Para o presidente do Sintaema José Faggian, esse é um momento crucial “O momento é grave, a pandemia atingirá principalmente os trabalhadores com menos recursos, assim é preciso solidariedade de classe e a contribuição de todos! A colônia de férias do Sintaema é um patrimônio dos trabalhadores que foi construído para proporcionar lazer e saúde aos nossos companheiros, por isso decidimos cedê-la agora pra ajudar a salvar vidas para que, no futuro, possamos usá-la novamente para nos confraternizar”.

    A importância dos trabalhadores do saneamento e do meio ambiente

    O sindicato ainda ressalta o papel essencial dos trabalhadores da categoria frente à crise do coronavírus, inclusive as equipes da Sabesp que saem às ruas para atender às emergências e que também estão fazendo um importante trabalho de desinfecção nas cidades.

    “Como em toda situação de crise surgem heróis, na pandemia do coronavírus não é diferente. Muitos se arriscam e se expõem para preservar a vida do coletivo, profissionais da área de saúde, de alimentação e de outros serviços sem os quais a pandemia seria potencializada e o sofrimento da população seria ainda maior. Nesse grupo estão incluídos também os profissionais do saneamento e do meio ambiente que no momento garantem o abastecimento de água tratada, o afastamento do esgoto e ainda cumprem um importante papel ajudando os governos na desinfecção de ruas, hospitais e outros aparelhos públicos”, explica Faggian.

    O abastecimento de água é uma das categorias essenciais que não param as medidas de isolamento social. Lavar as mãos e higienizar corretamente os alimentos vêm sido defendidos, juntamente com o isolamento social, como uma das principais formas de se proteger, e proteger a todos, contra o Novo Coronavírus.