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Categoria: memória e Justiça

  • A Negação como Política de Estado, suas heranças e possíveis diálogos

    A Negação como Política de Estado, suas heranças e possíveis diálogos

    A X Conversa Pública promovida pela Clínica do Testemunho do Instituto Sedes Sapientiae recebeu os parceiros do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College, dando início a expansão dos projeto de construção de politicas públicas de combate a violência, desenvolvidos pela Clinica do Testemunho.

    Dia 16 junho de 2016, no auditório do Instituto Sedes Sapientiae, ocorreu a X Conversa Pública Violência Psicanálise e Estudos Psicossociais. O evento, com coordenação de Maria Cristina Ocariz da Clínica do Testemunho, apresentou o curta metragem O Oco da Fala, dirigido por Míriam Chnaiderman.

    Estavam presentes na mesa os professores Stephen Frosh e Bruna Seu, do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College da Universidade de Londres; Belinda Mandelbaum do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Departamento de Psicologia Social da USP; e Augusto Stiel Neto, Terapeuta-pesquisador da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae e Coordenador do Projeto Fundo Newton.

    O Projeto Clínica do Testemunho formou núcleos de profissionais capacitados para desenvolver o trabalho clínico e de pesquisa teórica relacionada a traumas de violência causados por Estados autoritários. Essa iniciativa tornou possível que uma série de formas de atendimento e apoio psicológico fossem oferecidas aos perseguidos pela ditadura militar, tanto de âmbito coletivo como individual.

    As Conversas Públicas são uma parte das ações de um espaço coletivo do projeto, desenvolvido junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para produzir insumos para elaboração de políticas públicas e para democratização das instituições para que o horror não se repita.

    Diante desta conquista, em termos de ação pública, e com o auditório lotado, o Instituto Sedes Sapientiae, é um lugar de referência em termos de resistência política e comprometimento com a defesa dos Direitos Humanos, sentei-me ao lado de uma ex-companheira de minha mãe, para assistir meu próprio depoimento em o O Oco da Fala.

    Ver-me e ouvir-me, rendeu “uma pausa de mil compassos”, pois prendi a respiração pensando em como descrever e definir meu lugar neste contexto. E por um momento, me senti neste espaço tenso entre o inspirar e expirar, que pode ser o vazio, o oco e o silêncio. Sou filha de presa política, fui separada de minha mãe aos 3 meses de idade, e só pude voltar a ficar com ela com 1 ano, quando ela saiu da cadeia.

    A companheira de minha mãe, com um suspiro profundo me pergunta:
    – Mas e agora, com esse cara ai? (Michel Temer)

    Como vai ser? Ele está implodindo tudo? Saúde, Educação, Cultura…

    A Conversa Pública marca o encontro dos parceiros do Programa de Desenvolvimento Profissional para Recuperação Psíquica e Combate a Violência, financiado pelo Fundo Newton do British Council do Reino Unido. O convênio assinado em março de 2016 entre o Fundo Newton e a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae, tem como objetivo expandir o escopo de experiências dos 3 anos de trabalho do  “Programa das Clínicas do Testemunho” da Comissão de Anistia, usando a experiência adquirida para o treinamento e construção de capacidade para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), envolvidos em tratamento de reparo psíquico de vitimas da violência estatal na democracia.

    Vítimas de graves violações dos Direitos Humanos estão sujeitas a sequelas traumáticas que exigem reparação através de cuidado médico e tratamento psicossocial contínuo. Estes precisam ser implementados como uma rede articulada, envolvendo diferentes setores, e exigem treinamento de profissionais de saúde para esse propósito específico, com a garantia pelo governo, da eficiência de serviço.  Com isso, uma experiência que começou dentro de um programa de reparação da memória se expande para a conquista de um espaço de política pública e abriga o Centro de Estudos em Reparação Psíquica (CERP).

    Leia mais sobre o Clínica do Testemunho pelo site.

    As falas dos professores Bruna Seu e Stephen Frosh do Departamento de Estudos Psicossociais de Birkbeck College da Universidade de Londres, reverberaram dentro de mim, e me motivaram a aprofundar uma reflexão que se estende a uma percepção geral sobre as políticas de reparação e justiça, e também a minha trajetória pessoal.

    Uma das reflexões tem a ver com perceber como se dá o processo de elaboração dos conflitos históricos, vividos direta ou indiretamente, ou por herança, interna ou coletivamente. Sejam no silêncio das verdades que não são ditas às crianças, ou nos acordos conciliatórios de políticas de Estado.

    Nos acordos, como no nosso caso, a lei de anistia de 1978, que permitiu a volta dos exilados políticos, pressupõe-se que houve um “acerto de contas” entre as partes, sem que tivesse havido o reconhecimento dos fatos. O longo processo de lá para cá é chamado de Justiça de Transição, e elabora uma série de ações de reconhecimento e pedidos de perdão por parte do Estado como forma de reconhecimento dos crimes cometidos e a construção de políticas de reparação.

    Em Abril de 2016, Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, escreveu em sua pagina pessoal do facebook:

    “As Clínicas do Testemunho complementam o Programa Brasileiro de Reparações e Memória da Comissão de Anistia construído em cinco eixos: reparações restitutivas (rematrículas em cursos superiores interrompidos, contagem de tempo para aposentadoria, reintegração de postos de trabalho, correção de informações documentais etc.); reparações econômicas (indenizações e compensações financeiras); reparações simbólicas e morais (pedidos de desculpas, atos de homenagens públicas, atos de reconhecimento, declaração de anistiado político, Caravanas da Anistia etc.); reparações coletivas e transindividuais (projetos Marcas da Memória, construção do memorial da Anistia, ações educativas etc.) e reparações psicológicas (Clínicas do Testemunho). A Rede Nacional das Clínicas do Testemunho são ainda um trabalho com pouca visibilidade pública, mas que simboliza parte desta nova agenda da Justiça de Transição no Brasil, criando um serviço inédito de atenção psicológica às vítimas, a quaisquer de seus familiares e também aos postulantes por reparação que se preparam psicologicamente para seus testemunhos perante a Comissão de Anistia e as Comissões da Verdade”.

    Não fosse o momento atual, uma faca a balançar novamente sobre nossas cabeças, e a luta de um século, ao menos na história do Brasil e do planeta por liberdade e justiça, talvez fosse impossível que eu encontra-se meu lugar, meu espaço histórico-emocional, nisso tudo.

    Na fala de Bruna Seu, a visão acadêmica, psicanalítica e psico-social sobre o conceito da negação, e sua variadas tonalidades e consequências,  muito bem colocadas em relação a negação do Estado, sobre a memória da sociedade reflete aspectos importantes do processo. Um processo que nunca acabou de fato, que permanece entalado, por exemplo, na decisão de um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São que insiste em NEGAR a responsabilidade já comprovada por um processo jurídico completo, aos 74 PMs condenados pela morte dos 111 presos no conhecido Massacre do Carandiru.

    Uma parte das análises que nos presenteou Stephen Frosh foi sobre a importância e responsabilidade da testemunha, no processo jurídico, e que se não valorizada, ou negada como instrumento legal, descaracterizando todo esforço daquela fala, e levando-a ao fracasso, retoma a lógica cruel da negação histórica e institucional. Tão presente no nosso cotidiano, nos casos que chegam a ir a julgamento, como aquele do único PM, que chegou a ser julgado, em primeira instância, responsabilizado por uma das 594 mortes, de jovens, pretos e pobres, em maio de 2006, em São Paulo.

    Frosh, abordou também a questão da conciliação, da responsabilidade e o impacto sobre as gerações futuras transpondo a questão para o ponto de vista dos filhos de opressores. Ele apresentou um trecho do documentário do Diretor David Evans, “My Nazi Legacy”, (da BBC), veja link disponível no You Tube:

    https://youtu.be/LSpnZ7kQDAA

    O documentário escrito e apresentado por Phillippe Sands, advogado de uma família judia, com apenas um sobrevivente do nazismo, acompanha dois filhos de comandantes nazistas para as cenas dos crimes de seus pais. Horst von Wächter e Niklas Frank, neste processo enfrentam, reconhecimento, negação e culpa, diante das atrocidades cometidas por seus pais. Frank, no trecho apresentado por Frosh, enfrenta a resistência de Wächter, em admitir os crimes de seu pai na Galícia, apesar das provas documentais irrefutáveis. Niklas Frank percorre o mundo fazendo palestras sobre as atrocidades do nazismo e pedindo perdão aos judeus pelos crimes de seu pai.
    É possivel ver mais sobre os depoimentos dos filhos de nazistas no filme “Hitler’s Children” As Crianças de Hitler, do diretor Chanoch Zeevi. Disponível também no You Tube nesta PLAYLIST.

    Neste contexto Frosh fez um questionamento sobre as dimensões profundas do perdão, com base no reconhecimento. Como se o perdão, instituido da maneira que é pela nossa cultura judaico-cristã, pudesse varrer da história as verdades, e por tanto silenciá-las.

    O reconhecimento, memória, verdade e justiça são a base de um processo, que como disseram Bruna Seu e Stephen Frosh podem “evitar que uma tragédia se repita”.

    E neste momento, em que minha pausa de mil compassos ainda reverbera, que construo as diversas narrativas, lógicas e cruzamentos dessa tão importante Conversa Pública, e vislumbro que o diálogo entre psicanálise, jornalismo e sociedade, se configuram como uma ação de extrema urgência.

    Olho para amiga de minha mãe e digo:
    –Calma companheira, vamos resistir…

    Veja o convite para a XII Conversa Pública com o Jornalistas Livres AQUI.

  • Água contaminada é distribuída a população na bacia do rio doce

    Água contaminada é distribuída a população na bacia do rio doce

    Reportagem especial da cobertura da Marcha realizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, um ano após a tragédia de Mariana (MG), que refaz o trajeto da lama de Regência (ES) até a barragem em Minas Gerais.

    Foto: Lidyane Ponciano/ CUT Minas
    Foto: Lidyane Ponciano/ CUT Minas

    A pequena comunidade do Vale do Aço mineiro é uma das 11 cidades que continuam sendo abastecidas pela água do Rio Doce depois do rompimento da Barragem de Fundão em Novembro do ano passado. Situado as margens do rio, o vilarejo possuí uma estação de tratamento de água que supostamente a tornaria própria para consumo humano. No entanto, a população permanece receosa em relação a qualidade do que saí de suas torneiras.

    Foto: Mídia NINJA
    Foto: Mídia NINJA

    “Olha minha mão!” exclama Sueli, mostrando as palmas descamadas pelo rejeito. Ela diz que só molha as mãos com a água do rio ao lavar suas roupas, mesmo assim isto já bastou para manchá-las. “Eu até já liguei há pouco tempo para a Samarco e o cara falou que a água aqui é potável. Eu disse para ele vir aqui e beber da minha torneira que eu quero ver.”

    Todos da comunidade se recusam a beber a água ou usá-la no preparo de alimentos. E não é por menos, em Agosto deste ano, um laudo técnico do Ministério Público de Minas Gerais e Federal afirmou que a água distribuida em Governador Valadares – que utiliza o mesmo tratamento de Belo Oriente – é imprópria para o consumo devido a alta concentração de alumínio.

    Adenilson, socorrista do Samu, de Governador Valadares, 40 anos, diz que mesmo depois de um ano a população que ele atende ainda sofre com os problemas de saude causados pela lama contaminada, principalmente os moradores perto do rio, que bebem a agua e tem diarreia. Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres
    Adenilson, socorrista do Samu, de Governador Valadares, 40 anos, diz que mesmo depois de um ano a população que ele atende ainda sofre com os problemas de saude causados pela lama contaminada, principalmente os moradores perto do rio, que bebem a agua e tem diarreia. Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres

    “Considerando que os rejeitos das barragens apresentam em sua composição elevadas concentrações deste metal, é bem possível que o alumínio tenha sido transportado ao longo do rio Doce, ocasionando alterações na composição química em diversos trechos deste curso d’água, conforme a direção dos ventos, os índices pluviométricos e a vazão do rio”, explica o documento.

    A investigação acrescenta que o consumo desta água pode levar a sérios problemas de saúde: “Inúmeros estudos demonstram que a presença do alumínio na água, em concentrações superiores ao padrão de potabilidade, pode contribuir para o aparecimento de algumas doenças no organismo humano, tais como a osteoporose e doenças neurológicas e alterações neurocomportamentais, incluindo a encefalopatia, esclerose lateral amiotrófica, doença de Parkinson, demência dialítica e mal de Alzheimer”.

     

    Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres
    Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres

    O governo dos municípios e de Minas, em conjunto da Samarco, argumentam que os rejeitos da Barragem de Fundão é inerte, não sendo tóxica. Segundo a mineradora, a lama derramada é constituída apenas de água, silica e minérios de ferro e manganês, que realmente não são danosos para a saúde humana. O tratamento de água, feito tanto em grandes cidades como Governador Valadares, com quase 300 mil habitantes, quanto pequenas comunidades como Cachoeira Escura, busca separar a água do barro, utilizando de agentes floculantes que combatem a turbidez do rio. De fato, o processo consegue dar uma aparência de pureza à água, que saí dos canos limpa e transparente.

    Porém, este processo desconsidera a contaminação da água por lixo, esgoto e outros materiais que foram carregados pela corrente de lama. Substâncias que, apesar de não estarem inicialmente dentro da barragem, são altamente tóxicas ao ambiente e às pessoas. Mesmo cientes disto, o serviço público e a mineradora insiste em distribuir essa água contaminada a população.

    Foto: Guiga Guimarães
    Foto: Guiga Guimarães

    Sem acreditar ingenuamente nas corporações, a população local improvisa para conseguir água potável.  A alternativa encontrada por Evangelista Luis é gastar suas reservas para construir um poço artesiano. Outra moradora da cidade, Dona Maria José Carvalho fez uma Mina D’água nos fundos de sua casa. Porém, os mais pobres, sem recursos para reformar o estoque de água de seus domicílios, ainda dependem de algumas bicas espalhadas pela cidade. Estas fontes funcionam por bombas manuais, sendo que a vazão também varia muito conforme as chuvas. Uma pessoa pode ficar horas enchendo garrafas pet ou baldes para conseguir prover sua família.

    Foto: Guiga Guimarães
    Foto: Guiga Guimarães
  • A memória que escorre nas águas do tempo

    A memória que escorre nas águas do tempo

    A ancestralidade e seus registros têm seus caprichos e responsabilidades. Estudiosos, artistas e museus trazem registros únicos de povos e situações ao longo da conquista e apropriação de territórios. O mais vulnerável diante dos conquistadores sempre cedia, ou pela morte dos tiros e aprisionamento, ou pelas doenças e submissão. Nesse processo de saque, grilagem e avanço das propriedades sobre as terras  comuns às  antigas comunidades,  ficaram registros fotográficos e objetos das culturas  dominadas, acervos deslocados aos museus, universidades ou em gavetas e armários particulares.

    Equipe de TV francesa realiza documentário na aldeia Pyuluene.
    Equipe de TV francesa realiza documentário na aldeia Pyuluene.

    Com os indígenas brasileiros não foi diferente. Nos dias de hoje,  os sucessores nascidos no caos ou após os trágicos contatos com os povos nativos, saem em busca desses acervos para se reconhecerem e se fortalecerem em sua identidade. Reivindicam  acessos e compartilhamento. Índios Waujá, do Parque Indígena do Xingu, da aldeia Pyuluene , saíram em rota de viagem à busca de suas imagens antigas e primitivas tradições, a memória resguardada entre os martírios  particulares, no tempo dos igarapés, lagoas, rios e temporais. Tudo é líquido como lágrima nas águas da memória de índio. Saudade é palavra que chora entre as aldeias.

    Das águas claras do rio Von Den Steinen saíram em direção à Universidade Federal de São Paulo e à Universidade de São Paulo, instituições que abrigam o Projeto Xingu (programa cinquentenário de extensão universitária em saúde indígena da Escola Paulista de Medicina ) e o MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP ). De lá partiram para Washington, ao Instituto Smithsonian .

    Longos foram os percursos no desejo Waujá, índios em movimento ao longo das Américas colonizadas sobre as etnias tradicionais , em violação  ao novo mundo descoberto entre a expansão

    europeia quinhentista.

    Muitos indígenas se emocionaram com visão reveladora de velhos negativos e suas sendas ao final do périplo. Os Waujá voltaram para seus antigos domínios com muitas imagens na bagagem, sorriso na boca, olhar pleno. O  que se revela é uma emancipadora travessia entre passado e futuro. O presente é identidade. Entre afogados e sobreviventes restou um povo forte que navega num tempo em disritmia e num espaço curvo. Velhos retratos libertam e afirmam.

     

  • A dor da perda amplificada com a dor da injustiça

    A dor da perda amplificada com a dor da injustiça

    No dia 6 de outubro de 2016, Ato em Memória aos 24 anos do massacre do Carandiru, que percorreu as ruas do centro de São Paulo e terminou em frente do Tribunal de Justiça na praça da Sé, foi marcado ela dor e pela angustia diante da anulação do julgamento, no dia 27/09, dos 74 PMs condenados pelo no massacre.

    Familiares de vítimas, representantes dos movimentos Mães de Maio, Mães do Cárcere, Mães de Osasco e ativistas foram da av. Tiradentes à praca da Sé para protestar contra a impunidade pelos 111 presidiários mortos em outubro de 1992, na extinta Casa de Detenção de São Paulo, no Carandiru.

    “Com julgamentos dos envolvidos sendo anulados ao longo dos 24 anos pós-massacre do Carandiru, os pedidos de justiça que entoaram a marcha não aparentavam ter o destino certo para serem atendidos. O que importava é que o grito por justiça precisa ser gritado quando tudo o que querem é o silêncio. A dor da perda amplificada com a dor da injustiça e da justiça que não é justa com todos segue forte, assim como os sentimentos de inquietação e luta. ”

     

  • A prisão dos pais condena os filhos?

    A prisão dos pais condena os filhos?

    Por Leo Drumond e Natália Martino | Projeto Voz para os Jornalistas Livres

    Nossa população carcerária é muito jovem e a maioria dos condenados têm filhos. Qualquer estatística ou uma simples observação dentro de unidades prisionais confirmam isso. Quase nada se sabe, porém, sobre essas crianças e adolescentes que crescem sem os pais, apartados pela cadeia. Os dados oficiais não os contemplam, não sabemos quantos são, com quem vivem ou que tipo de auxílio recebem. O senso comum já nos faz imaginar que eles são negativamente impactados pelas prisões dos pais e várias pesquisas confirmam isso. Ainda assim, não existem políticas públicas para eles. Por isso, o recente trabalho de Rafael Posada, apresentado como dissertação do seu mestrado na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, é importante. Ele ilumina alguns dos aspectos mais cruéis e mais desconhecidos do Sistema Carcerário.

    Vespasiano_MG, 10 de Abril de 2013 10 anos do Choque de Gestao Na foto, a detenta Shirley da Fonseca e seu filho Lazaro Henrique no Centro de Referencia a Gestante Privada de Liberdade. Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    A detenta S.F. com seu filho no Centro de Referencia a Gestante Privada de Liberdade (MG). Foto: Leo Drumond / VOZ

    A partir de uma pesquisa com 718 pessoas presas de 19 estabelecimentos penais da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Posada chegou às seguintes conclusões. Entre os filhos daqueles que estão encarcerados, 9,7% já esteve ou está atualmente em situação de conflito com a lei. Quando o recorte é feito para aqueles que são menores de idade, entre 12 e 17 anos, a taxa é de 5,7%. É muito? Bom, a taxa de jovens infratores no Brasil corresponde, ainda de acordo com o pesquisador, a 0,1% dos adolescentes. Ou seja, ser filho de alguém que cumpre pena de privação de liberdade aumenta em 59% a chance de ser apanhado pelo Sistema de Justiça. Então, a resposta é sim, é muito.

    Ibirite_MG, 18 de Abril de 2015 Projeto Maes do Carcere Na foto, Patricia, que esta em casa com condicional usando tornozeleira eletrônica Foto: LEO DRUMOND / NITRO
    Na foto, a detenta P., que esta em casa com condicional usando tornozeleira eletrônica
    Foto: Leo Drumond / VOZ

    Os que acreditam que o “fruto não cai longe da árvore” e a criminalidade é uma tendência genética deveriam parar de ler este texto por aqui. Não estamos falando de biologia, estamos falando de dinâmicas sociais. Posada destaca que a maioria desses filhos já apresentava, antes do encarceramento de um dos pais, uma série de desvantagens econômicas que os colocavam mais vulneráveis e mais suscetíveis a entrar em conflito com a lei. Isso sem contar o aspecto do preconceito racial ainda determinante no Sistema de Justiça Criminal. A questão é que a prisão de um dos progenitores adiciona mais desvantagens em relação mesmo aos seus pares sem pais presos.

    Sao Joao Del Rei_MG, 24 de agosto de 2016 A Estrela - Edicao de Sao Joao del Rei Imagem: A ESTRELA
    Recuperando da APAC de São João Del Rei com seu filho durante a visita íntima. Foto: André Gustavo / A ESTRELA

     

    Aos cuidados de uma nova família

    Algumas observações feitas durante as entrevistas levaram o pesquisador a crer que parte do problema está no estigma criado ao redor dessas crianças e adolescentes. “Tem uma reunião de pais na escola e as pessoas dizem que a mãe daquele aluno não foi porque está presa. E ninguém está preparado para lidar com isso”. O pesquisador fala de discriminação entre os colegas e de perseguição policial. Segundo ele, alguns relatos indicam que esses jovens acabam sendo mais visados pelos policiais que patrulham suas comunidades. Há, ainda, mudanças nas condições financeiras e na rotina das crianças e adolescentes, sem contar o impacto de saber que os pais estão presos.

    O mais determinante na perpetuação do ciclo de violência tende a ser a ruptura abrupta da estrutura familiar – o que é muitas vezes mais grave quando quem está presa é a mãe, que na maioria dos casos é a que tem a guarda e se responsabiliza pelo cuidado dos filhos. Assim, a pesquisa concluiu que as chances de um adolescente cuja a mãe está presa entrar em conflito com a lei é mais de 10 vezes maior do que nos casos dos pais encarcerados. Parte da explicação pode estar no fato de que, quando o pai está preso, o filho costuma permanecer com a mãe. É o que acontece em 57% dos casos. Mas quando é a mãe que está atrás das grades, apenas 12% dos filhos ficam com os pais e 34% acabam com os avós. No caso das mulheres presas, há ainda uma maior porcentagem de crianças que acabam em abrigos: 4,5%, contra 0,1% no caso dos pais.

    Na foto, o garoto A., que vive com sua mãe em unidade prisional para grávidas e lactantes. Foto: LEO DRUMOND / VOZ
    Na foto, o garoto A., que vive com sua mãe em unidade prisional para grávidas e lactantes.   Foto: Leo Drumond / VOZ

     

    Ao se analisar o impacto da prisão na vida dos filhos dos condenados, Posada também tratou da vida pregressa dos presos e algumas questões merecem destaque. Mais de um quarto das mulheres entrevistadas disseram ter vivenciado a prisão de um dos pais antes de serem presas e entre os homens a porcentagem é de 12,5%. Além disso, 20% dos homens e 32% das mulheres declararam terem sido vítimas de violência na infância. Quando o assunto é escolaridade, fica evidente de que classe social estamos falando. Mais de 50% das mulheres e de 60% dos homens têm escolaridade muito baixa, ou seja, não completaram nem o Ensino Fundamental. “A população carcerária é caracterizada por biografias nas quais a intervenção do sistema educativo é precária, enquanto a intervenção do sistema penal é total”, salienta Posada.

    O trabalho de Posada é essencial por levantar estatísticas até então inexistentes. Torna ainda mais óbvio o que já se diz há anos: não haverá redução de criminalidade sem programas de universalização de educação e de oportunidades e sem se repensar o Sistema de Justiça Criminal voltado para a segregação de determinados grupos – especialmente no quesito Lei de Drogas. Os que defendem o encarceramento em massa, que enfrentem calados a violência dos filhos daqueles que prenderam.

     

    Sobre o pesquisador

    Colombiano, Rafael Posada é antropólogo e iniciou sua trajetória de trabalho com a população carcerária por um motivo banal, que ele atribui à sorte: “foi o emprego que consegui”. Atuou, assim que saiu da faculdade,  em uma pesquisa realizada pelo governo colombiano nas cadeias do país. Conta que tinha todos os preconceitos que qualquer um tem com essa população. “Quando comecei a trabalhar, todos me diziam para ter cuidado, que eles eram nervosos, perigosos. Aí cheguei para fazer a pesquisa e o guarda me deixou sozinho com 50 presos. Pensei ‘nossa, eles vão me matar’”, recorda-se. Não mataram. “Me trataram normalmente e eu entendi com o tempo que atrás de alguém que cometeu o homicídio é também um pai, um tia, um parente de alguém. Ou seja, podia ser um parente seu. É um ser humano”, diz. Posada nunca mais mudou de área e agora já está no doutorado analisando de forma mais detalhada os dados coletados para a dissertação do mestrado.

  • EDITORIAL – UM GOLPE COM SANGUE NOS OLHOS

    EDITORIAL – UM GOLPE COM SANGUE NOS OLHOS

    Por Flávia Martinelli, para os Jornalistas Livres

    Foto e vídeo: Sato do Brasil/Jornalistas Livres

    Começou com sangue nos olhos. Um globo ocular dilacerado, cego e, por uma dessas ironias amaldiçoadas, esquerdo. Deborah Fabri, a estudante de 19 anos atingida por estilhaços de bala na primeira manifestação depois do golpe, foi perfurada em muito mais do que em seu direito de se manifestar. Figura de linguagem já não cabe mais na retórica da repressão inaugurada pelo golpista.

    Houve também uma câmera fotográfica destroçada. A quantidade pedaços quebrados denuncia a ira do arremesso. E, ainda, centenas de olhos inflamados por spray de pimenta. Choro de gás e de inconformidade. “Mão na cabeça e cara virada pro muro, filho da puta! Olha pro chão, vândalo do caralho!”, é a clássica ordem de prisão policial da tropa de Geraldo Alckmin. E não dá para esquecer do olhar dos refletores do poder.

    Lentes de TV estão seletivas. Só registram o vidro do caixa eletrônico quebrado. O noticiário da Globo adora um quebra-quebra. Os editoriais, espaços para a defesa do ponto de vista dos jornais, pedem mais repressão. A Folha e o Estado de S.Paulo tipificaram os manifestantes por um único grupo de meia dúzia de queimadores de lixo, pneus e quebradores de vidraças bancárias. Justificam a porrada, incutem medo na classe média, querem medidas mais duras para conter quem protesta.

    O presidente golpista atendeu no mesmo dia. Temer autorizou as Forças Armadas a atuarem na Avenida Paulista no domingo (04/09) marcado para inúmeras manifestações. A “garantia da lei e da ordem” tem como desculpa a passagem da tocha olímpica no local. O governo do Estado gostou. Emitiu nota avisando que protesto não pode, não. Estão todos de olho, nas palavras dos jornais, nos “vândalos”, “arruaceiros”, “milicianos”, “fascistas”, “criminosos”, e, claro, “baderneiros”, definição preferida dos apoiadores do golpe.

    Mas o que é “baderna” diante de um complô de corruptos, grandes instituições financeiras, indústrias e mercados internacionais capazes de derrubar uma democracia? E que massa é essa de “soldados da arruaça” ou “fanáticos da violência” como diz a “Folha de S.Paulo” que, depois de apoiar o golpe – esta sim a violência superlativa – se vitimiza de forma patética ao ter sua fachada pichada por manifestantes?

    Os repórteres de gabinete não viram, por exemplo, que entre os incendiários de lixo havia um pai de família de 54 anos, professor da rede pública, puto por ter seu voto roubado. Se ele botou fogo para fazer barricada contra a tropa de choque, é miliciano e ponto final. E dá-lhe bomba, diz o jornal. E bomba na cara, age a PM.

    “Nos últimos dias, eu testemunhei policiais fazendo mira na cabeça de manifestante”, diz a jornalista Kátia Passos que, muito antes de ser Jornalista Livre, há um ano, é mãe de uma estudante secundarista e registra praticamente todos os atos de estudantes em São Paulo. “Nesses três últimos atos não teve conversa. Eu sempre falo com os comandantes como, ouço o outro lado. Não consegui trocar uma palavra. Eles se recusam a negociar.”

    Kátia reconheceu todas as cinco forças da polícia nas manifestações: Tática, Tropa de Choque, helicóptero, cavalaria e Polícia Militar. “Não via esse esquema de repressão desde o massacre de 2013, quando os policiais perderam completamente o controle e saíram atirando a esmo. A polícia não está na rua para dispersar, mas para encurralar.”

    No dia do golpe, (31/08), havia mais de mil policiais em ação na manifestação. Num trecho da rua da Consolação, sem saídas laterais, eles passaram a comprimir os manifestantes, cercando o grupo num círculo. “Bombas foram lançadas no meio da passeata. A única maneira de escapar era passar pelos cordões policiais com risco de levar tiro de borracha à queima-roupa”, lembra o Jornalista Livre Adolfo Várzea.

    No dia seguinte, Lucas Porto, repórter, fotógrafo, rotineiro cinegrafista de transmissões ao vivo das manifestações do Jornalistas Livres chegou a ser, literalmente, caçado por uma matilha de oficiais. Lucas sabe que sempre esteve marcado. Mas dessa vez, o grupo de policiais não se contentou de correr em seu encalço. Lucas ganhou uma bomba exclusiva, só pra ele, numa calçada praticamente vazia. Só não foi apanhado pelos PMs porque outro colaborador dos Jornalistas Livres, Caco Ishak, se colocou diante dos policiais. Caco foi atropelado por uma moto da tropa na calçada, derrubado no chão, imobilizado e levado para a delegacia. Só saiu de lá depois das 4 da manhã.

    O parâmetro da violência policial deixa claro a que veio o golpe. É a opinião dos fotógrafos Christian Braga e de Sato do Brasil, ambos Jornalistas Livres. Christian vê uma escalada crescente de violência nesses últimos dias. “Tá punk, sim. E tem bala de borracha pra caramba, os caras nem pensam antes de atirar.” Sato estava próximo ao prédio da Folha de S.Paulo na última quarta-feira (31/08), quando os manifestantes picharam o portão blindado da entrada e jogaram pedras na fachada no jornal.

    “Vi de longe quebrarem a câmera do fotógrafo ali. Ele estava sentado com as costas na parede. O policial simplesmente tirou o capacete da cabeça dele, arrancou a câmera, jogou no chão e pisou no equipamento.” Sato deu de cara com um PM e avisou: ‘Sou imprensa, sou imprensa’. Ele respondeu: ‘Foda-se, sai daqui! Quer tomar tiro na cara?’”. De fato. Àquela altura, a estudante Deborah já havia perdido a visão. Não era força de expressão. O golpe quer tirar sangue dos nossos olhos.