Jornalistas Livres

Categoria: Feminismo

  • A ignorância dos reacionários da internet que falam em “doutrinação feminista” no Enem

    A ignorância dos reacionários da internet que falam em “doutrinação feminista” no Enem

    Por Pedro Zambarda de Araújo, colaboração para os Jornalistas Livres

    Neste último final de semana ocorreu a prova do Enem para estudantes do ensino médio e interessados em ingressar em faculdades e universidades brasileiras. Além das pessoas que foram barradas por perder a hora e viraram pautas sensacionalistas, as redes sociais foram tomadas por uma onda de conservadorismo após a execução do exame.

    A avaliação incluiu uma pergunta sobre o livro “O Segundo Sexo”, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, utilizando um dos trechos mais famosos da obra que é uma das referências no estudo do feminismo.

    O exame não utilizou apenas Simone como referência e também apresentou questões abordando o pensamento do educador de esquerda, Paulo Freire, o filósofo marxista Slavoj Žižek, entre outras perguntas com viés mais progressista.

    A inclusão dos autores foi suficiente para provocar uma convulsão dos reacionários na internet.

    No segundo dia de avaliação, veio o tema da redação: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. E a internet veio abaixo, com as feministas defendendo a ousadia da prova em finalmente avaliar questões de desigualdade de gênero.

    O primeiro site reacionário a vomitar besteiras foi o Spotniks. Seguindo a linha deles na imitação do liberalismo norte-americano de uma maneira mambembe, publicaram um texto em primeira pessoa de um estudante que está se transferindo de faculdade e precisava fazer o exame. “Quem lê a prova sai com a impressão de que a crise de 2008 segue um assunto mais relevante para a maioria dos estudantes do que a realidade atual do país”, diz o autor Felippe Hermes, que ignora a situação delicada da Europa e acha que tudo na esquerda se refere a Karl Marx.

    Para quem não lembra, o mesmo Spotniks que resolveu criticar a presença de Simone Beauvoir no começo do Enem é aquele site que defendeu que as mulheres usem armas de fogo para se defender de violência sexual. Seus autores estão mais preocupados em defender uma pauta pró-armas do que realmente em diminuir a desigualdade de gêneros.

    Os autores do site também desconhecem a própria esquerda que descrevem. Nem Simone ou seu marido Jean-Paul Sartre são herdeiros do marxismo. Na faculdade, ela estudou o racionalista alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, herdeiro de Descartes, e também pesquisou o idealismo francês. Simone de Beauvoir só se tornou de esquerda na militância política, porque fez parte da resistência francesa contra o nazismo, que era composta por socialistas.

    Pensadores mais influenciados diretamente por Karl Marx vieram da tradição da crítica econômica e da dialética, temas que são caros para Sartre e Simone, mas jamais foram foco de seus estudos.

    É sim verdade que Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre apoiaram Che Guevara, Fidel Castro, Mao Tse-Tung e até a União Soviética, porque eles eram um casal de filósofos existencialistas alinhados com a esquerda da Segunda Guerra Mundial. Na época, esse pensamento era engajado e buscava se firmar por governos autoritários.

    No entanto, essa mesma Simone foi a que combateu o governo francês corrupto de Vichy, que se rendeu a Hitler, e apoiou Sartre na luta pela independência da Argélia, entre outros diversos países. A crítica dos reacionários ao Enem chega a ser infantil de tão pobre, por desconhecimento puro de história mundial.

    No entanto, a ignorância é um celeiro de oportunistas. Os religiosos e ultraconservadores políticos Marco Feliciano e Jair Bolsonaro já declararam que o Enem é “doutrinação ideológica do governo Dilma Rousseff”. Gritando que pensadores de esquerda apoiaram regimes autoritários, a nossa direita reacionária apela para a ignorância dos estudantes e quer mesmo que a escola funcione como uma censura ao gênero feminino e às minorias dos negros, da comunidade LGBT e de outros segmentos.

    A presidente da República se manifestou favorável às novas questões do Enem no fim do domingo (25). “A sociedade brasileira precisa combater a violência contra mulher”, disse Dilma através de sua assessoria de comunicação.

    Enquanto isso, nossos reacionários permanecem mergulhados numa grave ignorância intelectual, fruto de um antipetismo midiático e da falta de visão social. A gritaria contra o feminismo e contra o marxismo revela o machismo e a falta de leitura deles.

    Como disse uma amiga minha, no Facebook: “O lema ‘machistas não passarão’ está sendo literalmente aplicado agora. Quero ver eles escreverem na prova que feminismo é ‘falta de rola’ e que mulher deve ser estuprada. Merecem ser ridicularizados”.

  • “ Não se nasce mulher, torna-se mulher”

    “ Não se nasce mulher, torna-se mulher”

    O café filosofico, realizado no Cheirim de Café, na sexta-feira (9) de outubro, contou com a participação de Ana Carolina Radd debatendo sobre o feminismo

    Por Klara Wingler (Domeio Conteúdos), para os Jornalistas Livres

    Ana Carolina Radd é formada em Direito e filosofia, faz doutorado em Ciências Sociais, e foi assessora legislativa na Câmara Municipal de Juiz de Fora-MG. Junto aos realizadores do evento apresentou sua palestra inspirada na vida de Simone de Beauvoir.

    “ Eu decidi falar sobre Simone de Beauvoir porque ela foi uma mulher muito forte tanto em sua personalidade quanto na participação da política feminina em uma época tão conservadora”

    Para ela, a mulher sempre foi relacionada a certa vulnerabilidade.

    “ Quando alguém tenta nos apoderar sempre nos colocam em situação de fragilidade, como se esse alguém pressupôs-se que sou uma pessoa frágil e preciso de proteção, pois ainda há a ideia de um masculino dominador, o ‘macho alpha’, um superior e o mundo está mostrando essa situação muito diferente”.

    – O feminismo na política

    Ana Carolina Radd (divulgação)

    Temas dentro do feminismo também foram comentados por Ana Carolina, como cota para mulheres na câmara “ Considero de extrema importância existir cota para mulheres na câmara pela base de representatividade que temos, pois somos minoria em cargos de poder, considerando da empresa até o parlamento. Somos a maioria de professoras nas universidades, porém os chefes de departamento são homens”. Ana Carolina também informa que as mulheres são maioria nos concursos públicos e comenta da desigualdade no mercado de trabalho “ As mulheres advogam nas varas de família, mas ainda há um preconceito de gênero sexual nas áreas criminais, que são ocupadas em sua grande maioria por homens, como também os cargos de indicação e geralmente esses possuem um salário mais elevado. A justificativa é sempre a de que iremos nos encaixar melhor em outro lugar, pois podemos “não dar conta” de tais trabalhos” e completa Então é muito importante que haja cotas para mulheres e mesmo que a gente não consiga preenche-las, essa é uma das formas que temos para discutir a importância da igualdade e nisso se aplica o feminismo”.

    – O feminismo como tabu em relacionamentos

    Simone de Beauvoir

    “ Em alguns relacionamentos, principalmente em relações heterossexuais, se a mulher não quer fazer algo, as vezes surge aquela pergunta “ Mas você não é feminista?” e as mulheres, por serem feministas, são libertárias e se decidirem não querer algo ela deve ser respeitada e geralmente isso é o que gera muita cobrança por parte dos homens” diz Ana Carolina Radd.

    – Estatuto da Família

    Quando perguntada sobre sua opinião do novo estatuto da família, onde só é considerado uma família, casais heterossexuais com crianças de sangue, Ana

    Carolina diz não concordar e que existem várias formas de família atualmente no Brasil. “ As mulheres com quem trabalho e as famílias que pesquiso, a maioria delas não se encaixam nesse padrão do Estatuto da Família. Muitas mulheres criaram e criam seus filhos sozinhas”. A pouco tempo o casamento homoafetivo foi legalizado no Brasil e de acordo com a estudante o Estatuto estaria retrocedendo no conservadorismo.

    Ana Carolina Radd deixa um recado especial para as militantes do feminismo, “ Eu gostaria de dizer para as militantes do feminismo para que elas não desistam. Ainda enfrentamos um período super conservador. Embora haja dificuldade em lutar em prol de movimentos feministas, é importante não desistir por mais que as vezes eles se colidam. Sejamos sempre solidárias umas com as outras, pois isso é o mais importante”.

    Foto: Ana Clara Sicalo

    – O feminismo no mundo masculino

    O organizador do evento, Valdir Ribeiro de 32 anos, professor de Filosofia da rede Estadual e FAETEC contou um pouco sobre a iniciativa e a importância de um evento feminista. “ A iniciativa surgiu em abril deste ano e a idéia é construir um círculo de debates sobre temas políticos, que são relevantes para a sociedade. Começamos com direitos humanos, passamos por redução da maioridade penal e nesse mês de outubro chegamos a teoria de gêneros e então o feminismo. É muito importante introduzir uma reflexão e ajudar no desenvolvimento de um pensamento crítico sobre esses temas”. Rodrigo Cosenza de 36 anos, professor de História comentou sobre a idéia de realizar um evento em prol das mulheres e da igualdade de gênero. “ A idéia de se realizar um evento feminista vai além de uma reflexão sobre a condição do indivíduo na sociedade. É preciso mostrar o atrito que existe dentro de nossas relações sociais e como elas estão presentes no cotidiano. A Carol ( Ana Carolina Radd), perpassou a questão de como é difícil permear essa questão de classes e se ter um debate feminista” e conta que o principal objetivo desses debates é promover possibilidades de novas reflexões e vínculos.

    “ Precisamos tratar de maneira mais harmoniosa nosso convívio e perceber o indivíduo na sua maior completude”.

    Rodrigo também comenta sobre a posição do homem emposta pela sociedade. “ É preciso se colocar a prova e na minha condição de homem, é me colocar no papel de um opressor, pois o mundo ainda é opressor com as mulheres. Ainda carregamos uma herança cultural e emocional, que nos impede de enxergar tais preconceitos e isso é ainda mais fácil do que a condição da mulher com o mundo nessas relações sociais” e diz que esses debates são importantes na conscientização tanto no feminismo, quanto nas relações de classes sociais,condições de gênero e preconceitos étnicos.

    CAFÉ COM CULTURA

    Dentre vários eventos culturais realizados no Cheirim de café, como exposição de quadros para vendas a brechós ambulantes, conversamos com Geo, comerciante e proprietária do estabelecimento.

    Como você se sente em proporcionar cultura para as pessoas?

    Geo: Sinto muita satisfação de ter uma casa onde possamos marcar debates independentes de seu tema. Gosto de poder proporcionar um lugar onde as pessoas possam preparar temas e trazê-los para serem discutidos em grupo. Acredito esse ser o bote inicial para um debate aberto e democrático acontecer.

    O que sentiu ao realizar um evento sobre o tema Feminismo?

    Geo: O tema feminismo me atrai, assim como outros temas realizados no café filosófico. Essa possibilidade da conversa, de poder olhar para os assuntos de forma aberta e debater sobre eles, tendo alguém que faça o papel de curador, mediador e não o dono da palavra é muito importante. Muito me agrada conversar sobre o feminismo nesse ambiente.

    Geo deixa um recado amigável aos amantes da cultura e do café e os convida participarem dos encontros. “ O Cheirim de café é um espaço que gera links e cria vínculos, uma espécie de ponte para amizades duradouras” . Geozeli De Pinho, 32 anos.

  • Transfobia não é legal. Transfobia é uó!

    Transfobia não é legal. Transfobia é uó!

    O Fórum Paulista de Travestis e Transexuais (FPTT), com o apoio e parceria da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), lançou dia 27/09 a Campanha:Transfobia Não é Legal. Transfobia é Uó!!! no Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região.

    Diferentemente da primeira campanha lançada pelo Ministério da Saúde em 2004 e depois relançada em 2006 com o mote “Travesti e respeito”, que dava ênfase ao enfrentamento da epidemia de Aids, “Transfobia não é legal. Transfobia é Uó!” é a primeira campanha totalmente elaborada pelo movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans e prioriza o nome social como primeira conquista de cidadania.

    Segundo o documento elaborado pela coordenação executiva do FPTT, a campanha “visa enfatizar a obrigatoriedade do uso do nome social e, assim, coibir e combater a transfobia, preconceito específico sofrido por conta do desrespeito e desprezo à real Identidade de Gênero de Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans, em todos os espaços de circulação e convivência desta população, tais como: Escolas, Faculdades/Universidades, Ambientes de Trabalho, Unidades Básicas de Saúde, Hospitais e Órgãos Públicos.

    Dulce Xavier, da Secretaria de Políticas para Mulheres

    A campanha também contou com a parceria da Secretaria de Políticas para Mulheres, ligada à Presidência da República, que estava representada pela secretária adjunta Dulce Xavier. Dulce se comprometeu a divulgar o folder e as informações da campanha nos meios da instituição: “A preocupação da Secretaria de Políticas para Mulheres é a de ampliar a garantia de direitos para todas as pessoas e contribuir para eliminar todas as formas de discriminação e preconceito. Essa campanha nos ajuda a trabalhar o preconceito contra pessoas que assumem outras identidades de gênero, sejam transexuais, travestis ou homens trans, pra que a gente possa trazer essa problemática de preconceitos que esses grupos sofrem, e contribuir para mudar o comportamento da sociedade com relação ao respeito a todas as pessoas. “

    Dulce comentou também a dificuldade que pessoas travestis e transexuais têm de serem contempladas com a Lei Maria da Penha : “A lei foi a princípio feita para tratar da violência doméstica de homens (cis) contra mulheres (cis ) ou de uma identidade masculina reconhecida culturalmente como aquela que exerce o poder sobre pessoa de identidade feminina, reconhece nesse sentido a violência entre mulheres que convivem, casal de lésbicas e tal, mas ela precisa ampliar para contemplar as discriminação que as pessoas trans sofrem por terem assumido identidades femininas.”

    A palavra Transfobia é formada pelo prefixo Trans (pessoas travestis e transexuais) + Fobia, que significa a aversão obsessiva ou medo irracional de algo material ou imaterial. A origem etimológica de fobia remonta ao personagem da mitologia grega Fobos, que era a personificação do medo e do terror. Fobos era filho de Ares, deus da guerra e de Vênus, a deusa do amor, e acompanhava o pai nas batalhas. Dessa forma, fobia é filha do espírito beligerante com a intensidade da paixão, só que o que está no campo de batalha não é o amor e sim um ódio cego e incontrolável. Enquanto o medo é um instrumento útil à sobrevivência, causado por uma situação real como estar andando por uma rua escura, a fobia é totalmente irracional e injustificada.

    A transfobia é a repulsa, medo, e ódio irracional contra pessoas travestis e transexuais, e é um sentimento que fala da própria existência e do sofrimento da pessoa que sente, é é proporcional ao nível de dificuldades que ela teve ao ter que se adequar a uma norma social, renunciando muitas vezes à própria felicidade. Ver alguém capaz de construir uma identidade diferente daquela aceita pela cultura cisheteronormativa provoca uma ira capaz de matar. A transfobia, antes de matar fisicamente, mata socialmen!e, invisibilizando, excluindo e negando o acesso da população trans aos direitos civis básicos, como acesso à educação ou ao mercado de trabalho, empurrando travestis e mulheres transexuais e homens trans para as regiões periféricas e guetos da cidade

    Todos os dias pessoas travestis e transexuais são assassinadas no Brasil de forma violenta depois de serem torturadas, espancadas, estupradas, e jogadas num matagal, num rio ou mesmo no meio da rua pra todo mundo ver. São cenas que provocariam o horror se fossem com pessoas cisgêneras (aquelas pessoas que se sentem adequadas aos modelos hegemônicos de comportamento de gênero), mas travestis e transexuais assassinadas não provocam nenhuma comoção e muitas vezes nenhuma emoção. São parte de um universo paralelo, em que a violência prolifera e passam de vítimas a culpadas pela própria morte.

    “Estamos juntos!”

    Segundo o documento de lançamento da campanha, “o comportamento preconceituoso e discriminatório ou intolerante pode ser direto, desde formas fisicamente violentas, chegando a causar mortes por crimes de ódio, até recusas em comunicar-se com a Pessoa Trans (Travesti, Mulher Transexual ou Homem Trans) em questão, ou indireto, como recusar-se a garantir que Pessoas Trans (Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans) sejam tratadas da mesma forma que qualquer cidadã ou cidadão comum, detentora/detentor de seus direitos ou cumpridora/cumpridor de seus deveres.”

  • Mulheres e aborto: nas entranhas do sistema de saúde uruguaio

    Mulheres e aborto: nas entranhas do sistema de saúde uruguaio

    O Uruguai legalizou a prática do aborto em 2012. Apesar disso, ainda há muitas críticas quanto à forma com que a legalização vem sendo aplicada. Para conhecer essa nova realidade,Jornalistas Livres entrevistaram ativistas e mulheres que precisaram recorrer à interrupção voluntária da gestação

    A prática do aborto está legalizada em todo o Uruguai, tanto em serviços particulares, quanto em serviços públicos. A interrupção voluntária da gestação é feita em locais que oferecem serviços generalizados de ginecologia e obstetrícia. Alguns dos principais movimentos que lutaram pela legalização do aborto, contudo, ainda acreditam que muito há a se fazer para melhorar a situação das mulheres.

    Alguns dos problemas que persistem:

    1. Um sem-número de médicos ainda se recusam a indicar os medicamentos abortivos, alegando objeção de consciência;

    2. Sobrevivem graves preconceitos na sociedade contra as mulheres que abortam;

    3. Falta informação e acompanhamento do pós-aborto.

    O principal tipo de procedimento realizado no país é o através do medicamento misoprostol, também chamado de Citotec. Originalmente, essa droga foi criada para ajudar no tratamento e prevenção de úlcera do estômago, mas logo se percebeu que induzia fortes contrações uterinas, daí seu uso como abortivo. Com a receita médica, é possível comprar o remédio em qualquer farmácia uruguaia. A ingestão dos dois comprimidos é feita em casa.

    Azul Cordo, militante feminista da ONG Mysu, que luta pela promoção e defesa da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, considera que “o direito de decidir das mulheres enfrenta uma série de barreiras, já que o aborto só pode ser realizado depois de vencidas várias etapas.”

    Letícia Musto, ativista do coletivo uruguaio ProDerechos, explica: Quando uma mulher decide abortar, vai a uma consulta e manifesta sua vontade de abortar. Ela então recebe todas as informações sobre o procedimento. A seguir, tem de se submeter a um exame de sangue para checar se ela está efetivamente grávida e se o óvulo não está alojado fora do útero. Segundo o protocolo, esse exame deveria ocorrer nas 24 horas seguintes à consulta. Munida de todas as informações e das confirmações, a mulher teria então 5 dias para pensar e refletir sobre sua decisão. O prazo para abortar encerrar-se-ia ao fim de 12 semanas de gestação nos casos comuns. Para estupros, o prazo é um pouco mais dilatado –14 semanas. Diagnósticos de malformação fetal ou risco de vida para a mãe autorizam o aborto a qualquer momento da gestação.

    Uma vez confirmada a decisão da mulher pelo aborto, ela é obrigada a passar por um comitê formado por psicólogo, trabalhador social e ginecologista. Eles mais uma vez perguntam-lhe se ela quer continuar com o procedimento para conseguir os medicamentos

    O médico também tem que explicar todos os riscos envolvidos no aborto, como o de perder o útero, e a mulher tem de assinar um consentimento formal de que, ainda assim, deseja fazer o aborto.

    “Fizemos muito esforço para chegar a esta lei, mas ainda é muito difícil falar desse tema em cidades do interior. Na cidade de Salto, por exemplo, não

    Sede da MYSU. Foto: Andrea Raina, Sado Colectivo.

    existe nenhum médico que faça o aborto (100% dos ginecologistas dizem não poder fazer o procedimento por sua convicção moral)”, diz Tamara Gutierrez, do coletivo Mujeres en el Horno.

    “Outro empecilho para a realização do aborto legalizado é a questão etária. As menores de idade também podem fazer o aborto, mas precisam de permissão de seus pais. Muitas vezes, elas temem a reação familiar e preferem recorrer à clandestinidade, apesar de os riscos de uma operação legalizada serem infinitamente menores”, afirma Azul Cordo.

    S.M., 29, fez um aborto ilegal, antes de a lei ser aprovada. Ela pediu para não ser identificada:

    “Foi quando eu tinha 23 anos. Eu tinha um parceiro e o que passou foi que a camisinha rasgou, eu fui à farmácia para tomar a pílula do dia seguinte, e ela não funcionou. Quando vi que estava grávida, pensei em tirar, mas também estava insegura — o aborto me parecia algo horrível, era como se minha vida fosse ser completamente mudada. Meu parceiro não me deu um apoio, não disse nem sim e nem não. Em uma clínica particular, quando fui ver se estava grávida, a médica me disse tudo o que tinha fazer para abortar, mas fiquei com medo. Então falei com mulheres de todas as idades, minhas tias, minhas avós, minha mãe, e todas já tinham feito um aborto em alguma idade. Nesse momento não havia nenhuma clínica, nem clandestina, e o único jeito de conseguir um aborto era comprar os remédios, tomá-los, ir ao posto de saúde e mentir. Como era tão sombrio e fora do legal, me parecia horrível. Falei com um senhor que me contou como teria que fazer e fiz, levei uma semana para decidir tomar, com o remédio na minha casa, e aí o fiz. Depois fui ao médico, não sabia que poderia mentir tranquilamente, e menti. Foi difícil, não sabia que poderia tomar um calmante, não sabia que ia doer como uma dor de barriga muito forte, e começou a sangrar muito. Fiz uma ecografia intravaginal no hospital e continuei a mentir, dizendo que não fiz um aborto, no outro dia eu também sangrei. Na verdade o que me custou foi tomar a decisão, porque eu não queria ser mãe e não queria que ele fosse o pai, e havia todo um preconceito, mas hoje é uma coisa tranquila.”

    J.R., 32 fez um aborto legal, depois de a lei ser aprovada. Ela pediu para não ser identificada:

    “Eu tinha um filho de 2 anos, fiquei grávida e desde o primeiro momento soube que não queria ser mãe naquela hora. Estava muito feliz sendo mãe de meu filho, queria fazer outras coisas na minha vida e sabia o que implicaria ser mãe de dois filhos. A lei tinha sido recém-aprovada e sancionada, e eu fui para o centro de saúde. Primeiro, chamei uma moça da recepção e a perguntei quem poderia fazer este tipo de consulta, e não souberam me dizer nada, nem onde tinha que ir, o que tinha que dizer, e não é porque quero esconder, mas queria me preservar e não queria perguntar para as conhecidas. Não fui com meu ginecologista de sempre, fui com o primeiro que apareceu. Contei a ele e ele me disse ‘tá, tudo bem’. Em seguida, me deu as indicações. A enfermeira também me tratou super-bem. Às vezes, me passava uma dúvida porque os bebês são divinos e eu já tivera um, que era uma coisa preciosa. Mas eu também sabia o quão difícil era amar, sustentar e criar dois filhos. Meu marido me acompanhou desde o primeiro dia na decisão — ele é o pai do meu primeiro filho. Eu estava nervosa antes da confirmação da gravidez e ele me acalmou bastante. Eu disse que não queria, ele disse que não podia dizer que não queria, mas que também não achava que era o momento para ter outro filho. Uma coisa ruim foi que eu escutei o coração do bebê durante o ultrassom e eles não podem nos mostrar a imagem do feto e nem nos deixar escutar nada. Foi um erro da equipe, e foi doloroso porque havia pouco eu tinha vivido isso com meu primeiro filho em um momento lindo. Uma coisa que me aliviou é que me disseram que o feto tinha uma má-formação. Isso me tranquilizou, não era a hora. Deram-me a medicação e foi difícil essa parte. Eu tive um filho de cesária e não sabia que as contrações uterinas doíam tanto. Eu não sabia o que era uma contração. Sinto que me faltou informação.”

    Outro ponto importante a ser ressaltado é a questão da moralidade, que é fortemente realçada pelos meios de comunicação, que falam do tema sob o viés do arrependimento, da família e da vida…

    “Existem alguns ginecologistas que se declararam objetores de consciência, ou seja, que se dizem impossibilitados por suas convicções morais, de ministrar os medicamentos abortivos. Isso acontece muito no interior do país. O problema é que o mesmo médico pode se declarar objetor de consciência e logo em seguida se ‘des’- declarar. Isso é um problema porque não existe um controle dos nomes dos médicos com objeções de consciência. O resultado é que alguns são objetores no sistema público e fazem o processo no sistema particular”, informa Tamara Gutierrez, do coletivo Mujeres en el Horno

    Foto: Santiago Romero (Colectivo Chakana)

    Somente 8% da população uruguaia votou contra o aborto. Em 2007, uma mulher foi processada por abortar no Uruguai, e este foi um marco para a campanha que se chamou “Também sou cúmplice” (“También soy cumplice”), de grande importância para a legalização. Houve uma morte por aborto ilegal em 2013. Este foi o único óbito por aborto depois da lei, o que mostra que algumas mulheres ainda têm que recorrer ao circuito ilegal devido à burocracia do procedimento.

  • Somos todas clandestinas: Pela legalização e descriminalização do aborto no Brasil

    Somos todas clandestinas: Pela legalização e descriminalização do aborto no Brasil

    Contra as ofensivas reacionárias da atual conjuntura a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) realiza na fronteira Brasil — Argentina — Uruguai a IV Ação Internacional para pautar a luta pela legalização e descriminalização do aborto, pela vida das mulheres

    Hoje, 28 de setembro, é o dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto. No Brasil ainda temos uma legislação bastante conservadora e restritiva no que diz respeito ao aborto, o que acaba por colocar em risco a vida das mulheres, principalmente aquelas em situação de vulnerabilidade sócio-econômica que não podem pagar pelos procedimentos clandestinos.

    Em nosso país o aborto não é considerado crime em apenas três situações: quando o feto é anencéfalo, em caso de estupro e quando a gravidez oferece riscos de morte para a mulher. A primeira situação só foi legalizada em 2012, em uma ação do Supremo Tribunal Federal. As duas últimas estão em vigência desde 1940.

    Foto: Marcha Mundial das Mulheres

    Com isso, temos no Brasil um cenário que criminaliza a mulher que pratica o aborto e também qualquer pessoa que a auxilie neste processo direta ou indiretamente. Mesmo nos casos onde o aborto é legalizado, há inúmeros relatos de mulheres que, ao optarem pela interrupção da gestação, foram descriminadas e mal-tratadas no sistema de saúde.

    Eduardo Cunha, presidente da Camara de Deputados, não abandona sua declarada postura misógina. O PL 5069/2013, de sua autoria, foi reaberto. Este projeto de lei dificulta o acesso das mulheres ao aborto nas situações que ele já está legalizado. O projeto de lei também coloca em risco de criminalizarão as discussões e formações que intentem debater a legalização do aborto. Trata-se de um enorme retrocesso para as pequenas conquistas das mulheres no que diz respeito aos seus direitos e mais um passo na direção da criminalização dos movimentos sociais.

    Não bastasse, as mulheres sofreram nos últimos dias mais ataques aos seus direitos com a extinção da Secretaria de Políticas Para Mulheres (SPM), da Secretaria De Políticas De Promoção Da Igualdade Racial (SEPPIR) e aprovação pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados do Estatuto da Família (PL 6583/13) proposto pelo Deputado Anderson Ferreira (PR-PE) legitimando um retrocesso sem precedentes ao que definir a família como a união de um homem com uma mulher e seus filhos biológicos.

    Foto: Marcha Mundial das Mulheres

    Contra as ofensivas reacionárias da atual conjuntura a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) realiza na fronteira Brasil — Argentina — Uruguai a IV Ação Internacional para pautar a luta pela legalização e descriminalização do aborto, pela vida das mulheres. O movimento feminista entende que, é preciso educação sexual para prevenir a gravidez indesejada, acesso aos meios de contracepção para que a gravidez indesejada não ocorra e aborto seguro para que mulheres (principalmente as negras e moradoras da periferia) não morram. O aborto é uma questão de direito ao próprio corpo, de autonomia das mulheres e de saúde pública, não devendo ser, em nenhuma hipótese, vinculado a decisões religiosas ou judiciárias.


    Ana Carolina Barros Silva – Psicóloga, psicanalista, mestre em Educação (USP), militante da Marcha Mundial de Mulheres e do Levante Popular da Juventude.

  • Transição rumo à liberdade

    Transição rumo à liberdade

    Beleza mulheres com cabelos crespos e cacheados abandonam a química em busca da sua identidade

    Alisamento, chapinha e escova progressiva viraram febre entre as brasileiras nos últimos anos. A promessa é que esses produtos são ótimas soluções para diminuir o volume, domar os cabelos crespos e esticar as madeixas. Mas quem disse que cabelo alto é um problema? Essa é a pergunta que muitas mulheres fazem quando resolvem abandonar a química e deixar o cabelo natural.

    Esse processo, conhecido como “transição capilar”, geralmente é difícil e pode demorar anos. Mas vai além de uma transformação no cabelo. É um momento de autoconhecimento, autoaceitação e empoderamento.

    Foto: Isis Medeiros

    Para Paula Silva, foi uma busca por sua identidade. Ela começou a usar química no cabelo aos 7 anos e hoje conta que nunca gostou de alisar. “O procedimento é um sofrimento e é muito caro. Além disso, nos deixa reféns, pois não temos a liberdade de ir ao clube ou tomar um banho de chuva”, comenta a estudante.

    Depois de duas tentativas, sua última transição durou dez meses até quando cortou o cabelo bem curtinho, o que é chamado de “big chop” (corte grande, em inglês). “Senti que aquele momento seria um divisor de águas na minha vida. Estava deixando de ser uma mulher de baixa autoestima, infeliz e cabisbaixa para ser uma mulher linda, feliz e com autonomia para enfrentar as adversidades de cabeça erguida e cabelo também”, afirma Paula.

    A recepcionista Ana Carolina de Souza alisou o cabelo pela primeira vez aos 18 e, por oito anos seguidos, não ficava sem chapinha. “Houve época em que passava prancha no cabelo quase toda noite, de tanto que tinha medo de uma raiz anelada. Com o passar do tempo, vi meu cabelo sem vida, não podia fazer coisas simples sem a preocupação de chegar em casa e pranchar o cabelo”, lembra.

    Foto: Isis Medeiros

    Após nove meses, Ana Carolina também se rendeu ao big chop para cortar toda a química que ainda restava. “Cortei os 50 cm de cabelo esticado e opaco com uma única tesourada. Olhei-me no espelho com o cabelo curtinho e pensei: ‘nossa, essa sou eu?!’ Então eu via os cachinhos tímidos, que só após o corte ganharam forma e liberdade, e isso já me bastava para continuar a dormir feliz com óleo de coco na cabeça”, diz.

    Rompimento com a dependência

    Lorena Lemos usou alisantes por 14 anos, desde que tinha 12 anos. Ela conta que tinha problemas com o volume do seu cabelo e, por isso, usava muitos grampos para prendê-lo. “Não saía se não tivesse feito escova e prancha e uma raiz alta significava choro, crises de raiva. Além disso, o fato de passar uma hora, uma hora e meia no salão aos fins de semana começou a me incomodar profundamente, ao pensar que poderia estar fazendo outra coisa”, conta a professora.

    A inspiração para a mudança veio quando sua mãe perdeu todo o cabelo — que também tinha química — no tratamento contra o câncer de mama. Junto com o cabelo novo de sua mãe, cresceu também a coragem para fazer o big chop. “Meu cabelo passava do ombro e quando cortei, ele ficou com quatro dedos de comprimento. Foi um processo complexo, na primeira semana tive dificuldade de olhar no espelho, mas ao mesmo tempo me sentia feliz de conseguir romper com um ciclo de dependência”, afirma

    Foto: Isis Medeiros

    Cabelo solto também é resistência

    Além de terem passado pela transição capilar, Paula, Ana Carolina e Lorena têm mais uma coisa em comum. Para elas, alisantes nunca mais. Seus cabelões resgatam ancestralidade, são energia de vida e de luta.

    “Hoje sou livre e essa liberdade transparece sendo resistência através do meu cabelo. Faço dele a minha marca, a minha autonomia, a marca da luta de negros e negras que resistiram e lutaram, minha referência aos meus antepassados, a história de quem eu sou e de onde vim”, afirma Lorena.

    Dicas para a transição

    A cabelereira e trancista Daniele Assis dá dicas para quem quiser fazer a transição capilar. Para a profissional, o big chop não é obrigatório, mas o “primeiro passo é cortar, pode ser aos poucos, mas tem que tratar o cabelo. Para isso, os salões oferecem várias hidratações, mas também tem aqueles métodos caseiros e naturais”.

    Para aquelas que ainda não se encorajaram, Daniele diz que as tranças são uma ótima opção. “As tranças ajudam na transição, porque mantêm o cabelo arrumado”, afirma.