Mulheres e aborto: nas entranhas do sistema de saúde uruguaio

O Uruguai legalizou a prática do aborto em 2012. Apesar disso, ainda há muitas críticas quanto à forma com que a legalização vem sendo aplicada. Para conhecer essa nova realidade,Jornalistas Livres entrevistaram ativistas e mulheres que precisaram recorrer à interrupção voluntária da gestação

A prática do aborto está legalizada em todo o Uruguai, tanto em serviços particulares, quanto em serviços públicos. A interrupção voluntária da gestação é feita em locais que oferecem serviços generalizados de ginecologia e obstetrícia. Alguns dos principais movimentos que lutaram pela legalização do aborto, contudo, ainda acreditam que muito há a se fazer para melhorar a situação das mulheres.

Alguns dos problemas que persistem:

1. Um sem-número de médicos ainda se recusam a indicar os medicamentos abortivos, alegando objeção de consciência;

2. Sobrevivem graves preconceitos na sociedade contra as mulheres que abortam;

3. Falta informação e acompanhamento do pós-aborto.

O principal tipo de procedimento realizado no país é o através do medicamento misoprostol, também chamado de Citotec. Originalmente, essa droga foi criada para ajudar no tratamento e prevenção de úlcera do estômago, mas logo se percebeu que induzia fortes contrações uterinas, daí seu uso como abortivo. Com a receita médica, é possível comprar o remédio em qualquer farmácia uruguaia. A ingestão dos dois comprimidos é feita em casa.

Azul Cordo, militante feminista da ONG Mysu, que luta pela promoção e defesa da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, considera que “o direito de decidir das mulheres enfrenta uma série de barreiras, já que o aborto só pode ser realizado depois de vencidas várias etapas.”

Letícia Musto, ativista do coletivo uruguaio ProDerechos, explica: Quando uma mulher decide abortar, vai a uma consulta e manifesta sua vontade de abortar. Ela então recebe todas as informações sobre o procedimento. A seguir, tem de se submeter a um exame de sangue para checar se ela está efetivamente grávida e se o óvulo não está alojado fora do útero. Segundo o protocolo, esse exame deveria ocorrer nas 24 horas seguintes à consulta. Munida de todas as informações e das confirmações, a mulher teria então 5 dias para pensar e refletir sobre sua decisão. O prazo para abortar encerrar-se-ia ao fim de 12 semanas de gestação nos casos comuns. Para estupros, o prazo é um pouco mais dilatado –14 semanas. Diagnósticos de malformação fetal ou risco de vida para a mãe autorizam o aborto a qualquer momento da gestação.

Uma vez confirmada a decisão da mulher pelo aborto, ela é obrigada a passar por um comitê formado por psicólogo, trabalhador social e ginecologista. Eles mais uma vez perguntam-lhe se ela quer continuar com o procedimento para conseguir os medicamentos

O médico também tem que explicar todos os riscos envolvidos no aborto, como o de perder o útero, e a mulher tem de assinar um consentimento formal de que, ainda assim, deseja fazer o aborto.

“Fizemos muito esforço para chegar a esta lei, mas ainda é muito difícil falar desse tema em cidades do interior. Na cidade de Salto, por exemplo, não

Sede da MYSU. Foto: Andrea Raina, Sado Colectivo.

existe nenhum médico que faça o aborto (100% dos ginecologistas dizem não poder fazer o procedimento por sua convicção moral)”, diz Tamara Gutierrez, do coletivo Mujeres en el Horno.

“Outro empecilho para a realização do aborto legalizado é a questão etária. As menores de idade também podem fazer o aborto, mas precisam de permissão de seus pais. Muitas vezes, elas temem a reação familiar e preferem recorrer à clandestinidade, apesar de os riscos de uma operação legalizada serem infinitamente menores”, afirma Azul Cordo.

S.M., 29, fez um aborto ilegal, antes de a lei ser aprovada. Ela pediu para não ser identificada:

“Foi quando eu tinha 23 anos. Eu tinha um parceiro e o que passou foi que a camisinha rasgou, eu fui à farmácia para tomar a pílula do dia seguinte, e ela não funcionou. Quando vi que estava grávida, pensei em tirar, mas também estava insegura — o aborto me parecia algo horrível, era como se minha vida fosse ser completamente mudada. Meu parceiro não me deu um apoio, não disse nem sim e nem não. Em uma clínica particular, quando fui ver se estava grávida, a médica me disse tudo o que tinha fazer para abortar, mas fiquei com medo. Então falei com mulheres de todas as idades, minhas tias, minhas avós, minha mãe, e todas já tinham feito um aborto em alguma idade. Nesse momento não havia nenhuma clínica, nem clandestina, e o único jeito de conseguir um aborto era comprar os remédios, tomá-los, ir ao posto de saúde e mentir. Como era tão sombrio e fora do legal, me parecia horrível. Falei com um senhor que me contou como teria que fazer e fiz, levei uma semana para decidir tomar, com o remédio na minha casa, e aí o fiz. Depois fui ao médico, não sabia que poderia mentir tranquilamente, e menti. Foi difícil, não sabia que poderia tomar um calmante, não sabia que ia doer como uma dor de barriga muito forte, e começou a sangrar muito. Fiz uma ecografia intravaginal no hospital e continuei a mentir, dizendo que não fiz um aborto, no outro dia eu também sangrei. Na verdade o que me custou foi tomar a decisão, porque eu não queria ser mãe e não queria que ele fosse o pai, e havia todo um preconceito, mas hoje é uma coisa tranquila.”

J.R., 32 fez um aborto legal, depois de a lei ser aprovada. Ela pediu para não ser identificada:

“Eu tinha um filho de 2 anos, fiquei grávida e desde o primeiro momento soube que não queria ser mãe naquela hora. Estava muito feliz sendo mãe de meu filho, queria fazer outras coisas na minha vida e sabia o que implicaria ser mãe de dois filhos. A lei tinha sido recém-aprovada e sancionada, e eu fui para o centro de saúde. Primeiro, chamei uma moça da recepção e a perguntei quem poderia fazer este tipo de consulta, e não souberam me dizer nada, nem onde tinha que ir, o que tinha que dizer, e não é porque quero esconder, mas queria me preservar e não queria perguntar para as conhecidas. Não fui com meu ginecologista de sempre, fui com o primeiro que apareceu. Contei a ele e ele me disse ‘tá, tudo bem’. Em seguida, me deu as indicações. A enfermeira também me tratou super-bem. Às vezes, me passava uma dúvida porque os bebês são divinos e eu já tivera um, que era uma coisa preciosa. Mas eu também sabia o quão difícil era amar, sustentar e criar dois filhos. Meu marido me acompanhou desde o primeiro dia na decisão — ele é o pai do meu primeiro filho. Eu estava nervosa antes da confirmação da gravidez e ele me acalmou bastante. Eu disse que não queria, ele disse que não podia dizer que não queria, mas que também não achava que era o momento para ter outro filho. Uma coisa ruim foi que eu escutei o coração do bebê durante o ultrassom e eles não podem nos mostrar a imagem do feto e nem nos deixar escutar nada. Foi um erro da equipe, e foi doloroso porque havia pouco eu tinha vivido isso com meu primeiro filho em um momento lindo. Uma coisa que me aliviou é que me disseram que o feto tinha uma má-formação. Isso me tranquilizou, não era a hora. Deram-me a medicação e foi difícil essa parte. Eu tive um filho de cesária e não sabia que as contrações uterinas doíam tanto. Eu não sabia o que era uma contração. Sinto que me faltou informação.”

Outro ponto importante a ser ressaltado é a questão da moralidade, que é fortemente realçada pelos meios de comunicação, que falam do tema sob o viés do arrependimento, da família e da vida…

“Existem alguns ginecologistas que se declararam objetores de consciência, ou seja, que se dizem impossibilitados por suas convicções morais, de ministrar os medicamentos abortivos. Isso acontece muito no interior do país. O problema é que o mesmo médico pode se declarar objetor de consciência e logo em seguida se ‘des’- declarar. Isso é um problema porque não existe um controle dos nomes dos médicos com objeções de consciência. O resultado é que alguns são objetores no sistema público e fazem o processo no sistema particular”, informa Tamara Gutierrez, do coletivo Mujeres en el Horno

Foto: Santiago Romero (Colectivo Chakana)

Somente 8% da população uruguaia votou contra o aborto. Em 2007, uma mulher foi processada por abortar no Uruguai, e este foi um marco para a campanha que se chamou “Também sou cúmplice” (“También soy cumplice”), de grande importância para a legalização. Houve uma morte por aborto ilegal em 2013. Este foi o único óbito por aborto depois da lei, o que mostra que algumas mulheres ainda têm que recorrer ao circuito ilegal devido à burocracia do procedimento.

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