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Categoria: Feminismo

  • “Por todas elas”: o florescer da Primavera Feminista

    “Por todas elas”: o florescer da Primavera Feminista

    “Companheira me ajude, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. De mãos dadas e em uma só voz, centenas de mulheres se reuniram no vão livre do MASP, nesta quarta-feira (8), para dar início ao segundo ato “Por todas elas”, contra a cultura do estupro e o machismo que seguem latentes nas veias da sociedade brasileira. Uma legião de mulheres, das mais distintas idades e realidades sociais, saiu novamente às ruas para reforçar que a luta está apenas começando e que o silenciamento imposto pelo patriarcado não é mais uma opção.

    Em meio a uma tarde fria na cidade de São Paulo, mulheres se conheciam e reconheciam suas cicatrizes com apenas uma troca de olhares. Durante a concentração, Maria Paula enxergava as coisas de um ponto de vista diferente. “Como cadeirante, sofro muito preconceito em questão de padrões de beleza machistas. Eu percebi que eu sou bonita da forma que sou, porque cada mulher é bonita da sua forma e o feminismo mostra muito isso, a quebra dos padrões que são impostos pra gente.” Para a jornalista de 23 anos, o machismo prejudica principalmente a questão de autonomia da mulher. “Você deixa de ir numa rua que às vezes é mais deserta, com medo de chegar um cara e abordar você de uma forma mais agressiva, você tem medo de pegar um transporte público. No meu caso, tenho medo de pegar táxi sozinha e como eu não ando, tenho medo dele parar em uma rua deserta e me estuprar. Eu tenho medo de viver de muitas formas”.

    Há muito tempo o medo vem sendo um personagem onipresente na vida das mulheres, pautando quais roupas elas devem usar, que lugares devem frequentar e como devem se comportar. Por muitas vezes esse medo tem nome, rosto e divide o mesmo teto. Mas ele também pode vir através de um desconhecido que com apenas um comentário é capaz de despir, constranger e desassossegar. O feminismo traz consigo o antídoto: um frasco de coragem que consegue fazer ruir as estruturas da espiral do silêncio. Ele rompe o isolamento.

    “Comecei a falar sobre isso há pouco tempo, o feminismo abriu portas pra eu me sentir pronta e liberta. Por quatro anos da minha vida fui violentada por uma pessoa da minha família. Antes do feminismo eu não teria coragem jamais de falar isso pra alguém. Hoje sei que não importa a roupa eu vista, nada justifica. Estou aqui para que outras meninas tenham essa liberdade. Pra que se algum dia eu tiver uma filha mulher ela não tenha que andar com medo”, confessa Letícia dos Santos, de 18 anos. A jovem conta que o feminismo mudou a sua vida pelo fato de fazê-la acreditar em sua capacidade e por lhe dar a certeza de que é dona de si e de seu próprio destino.

    Sentada no chão, entre panelinhas de plástico e um cartaz escrito “Com mamãe feminista eu não cresço machista”, Ádila Kuahirú, 23, brincava com seu filho Adrian, de apenas três anos. A tocantinense descendente da tribo Javaé conta que foi a maternidade que abriu seus olhos para o feminismo. Se já é difícil para uma mulher ser respeitada, depois de se tornar mãe os desafios se intensificam ainda mais. Como mãe de menino, Ádila vive um processo diário de desconstrução. “Meu filho vê o pai e a mãe fazendo todos os afazeres da casa. Não limito ele com cores. Ele usa roupas rosa, tem copos rosa, tem bonecas e panelinhas. Não tento influenciar que meninos não choram ou que ele tem que ser forte só porque é menino. E não digo pra ele quando está com alguma garotinha que ele vai ser namoradinho dela ou que tem que ter algum interesse nela. Eles são só amigos”. Para ela, o feminismo é sinônimo de amor e acolhimento para todos os tipos de mulheres. “Só outra mãe feminista consegue entender a nossa luta e todo trabalho que a gente tem no dia a dia”.

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    Apesar do movimento ter conquistado enorme repercussão com o advento das redes sociais, o feminismo ultrapassa gerações e transcende a teoria. Edva Aguilar, de 59 anos, nunca antes havia sentido a necessidade de se denominar feminista. Mas o momento atual a impulsionou a ir às ruas contra a cultura do estupro e pela vida das mulheres. “Eu enxergo o machismo em tudo. No rotina de uma família, por exemplo, a gente percebe que a menina tem mais obrigações que o menino dentro de casa, que a mulher é mais culpada por tudo, que ela é multitarefal. Tem que trabalhar fora, porque se ela não trabalha fora é vagabunda e quando chega em casa tem que trabalhar de novo.” A enfermeira lembra que na década de 60 houve um forte empoderamento de todas as minorias, mas que as coisas têm mudado. “Agora eu vejo muita coisa regredir, eu acho que à medida que sobem essas crenças pentecostais e esse excesso de religiosidade, a gente acaba perdendo muito em direitos.”

    Ela se refere à forte influência da bancada religiosa em políticas públicas que afetam diretamente a liberdade das mulheres. A nova Secretária Nacional de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes (PMDB), por exemplo, se pronunciou contra o aborto, mesmo em casos de estupro. A ex-deputada já foi a favor do aborto mas mudou radicalmente de opinião depois de, em suas próprias palavras, ter sido “curada” ao se converter. Para Edva, esse posicionamento é extremamente problemático principalmente para as mulheres pobres: “Quando a mulher tem dinheiro, ela vai lá no ginecologista e faz o procedimento de vácuo-aspiração e sai numa boa. Toma um sedativo como se tivesse feito uma endoscopia e se livra do problema. Agora, a mulher pobre não. Fazendo isso, eles só condenam as pobres.”

     Para Maria das Neves, diretora de jovens feministas da União da Juventude Socialista (UJS) e uma das organizadoras do ato desta quarta-feira, um governo ilegítimo não tem a menor condição de pautar os direitos das mulheres. “Nós não reconhecemos Fátima Pelaes como secretária das mulheres porque não reconhecemos o Temer como nosso presidente”, declara a militante. Maria acredita que esse é um momento de reação das mulheres, que se levantam em todo país contra a cultura do estupro, mas também em defesa da democracia e contra o golpe. “Quando o golpe avança, retrocedem os direitos das mulheres. Esse é um golpe machista, não apenas contra a presidenta Dilma, mas contra todos os direitos conquistados pelas mulheres brasileiras. Ele vem no sentido de voltar ao passado e colocar as mulheres de volta no tanque e não no lugar de empoderamento, na política e no mundo do trabalho com a igualdade salarial. Esse é o recado que as mulheres vêm dar nas ruas hoje: a primavera feminista seguirá florescendo”.

  • ENSAIO | Companheira me ajude que não posso andar só…

    ENSAIO | Companheira me ajude que não posso andar só…

    Espalhados pelo 2º ato Todas Por Elas, Jornalistas livres captam as expressões de uma revolução em curso.
    O ato se concentrou no vão do Masp e terminou na Praça Rooselvelt com performance inesquecível.

     

    Companheira me ajude,

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    que eu não posso andar só…

     Fotos (acima) Lula Bastos

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    Sem você eu ando bem,

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    Fotos (acima) Guilherme Santos

    mas com você ando melhor.

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    O fim do Ato na Praça Rossevelt.

    Fotos (acima) Lucas Martins

     

    Veja mais sobre o 2º ato

  • Emoção e resistência no 2º ato Por Todas Elas

    Emoção e resistência no 2º ato Por Todas Elas

    São Paulo, 8 de junho de 2016.

    Depoimentos de alguns participantes do 2º ato Por Todas Elas, que enfrentou temperaturas abaixo de 15ºC, com sensação térmica de 11ºC. A concentração foi no vão do Masp e terminou  na Praça Roosevelt.

    Ana Beatriz Moral Duarte

    ” Nesse dia 8 de junho, as mulheres foram às ruas novamente contra a cultura do estupro que está enraizada e presente em diversas coisas que são vistas como banais nos dias de hoje. A nossa luta é diária! Juntas somos muito mais fortes! Juntas contra a sociedade patriarcal!”

    Ana Beatriz Moral Duarte  Estudante, aprovada na PUC Goiás para o curso de direito.

     

     

    Silvia Murgel e Bruna Resende

    “Estamos aqui mais uma vez, pra cada dia mais nos fortalecer na luta contra a sociedade machista e patriarcal que mata mulheres todos os dias e de formas variadas e cruéis. A cultura do estupro, do assédio não pode ser considerada normal e nem aceitável, a sociedade que se cala diante desses fatos é cúmplice.”

    Silvia Murgel  Estudante de jornalismo 25 anos; Bruna resende  Estudante de arquitetura 18 anos

    Carolina Marano

    “A luta contra o machismo deve estar presente no dia a dia de todos. Só assim, nós mulheres conseguiremos andar na rua sem medo, com a roupa que quisermos e quando quisermos. A cultura machista e do estupro é inaceitável na sociedade dita modernizada em que vivemos hoje.”

    Carolina Marano Estudante, 18 anos.

    Victor Bugliani de Souza

     

     

    “Não sofro opressão como as mulheres mas compartilho da indignação pelo machismo ainda presente no seculo 21. Sou homem e apoio essa causa com todas as minhas forças… Porque as mulheres não deve ser vistas como um objeto de uso mas sim respeitada ate seu ultimo dia de vida.

    Victor Bugliani de Souza  Estudante, 19 anos.

     

     

    Maria Luisa Bannwart

    “Estou aqui por todas as mulheres que já sofreram a violência que o machismo, a misoginia e a sociedade patriarcal provoca. Eu luto por mim e por todas elas! Pra que nossos corpos sejam respeitados, pra que nós não sejamos mais invadidas não só de forma física, mas de todas as formas! O machismo mata, violenta e desumaniza as mulheres. E esses atos mostram que todas as mulheres não estão mais caladas. Agora não tem mais volta.”

    Maria Luisa Bannwart 18 anos, ultimo ano do colegial.

  • Por nós, só nós mesmas.

    Por nós, só nós mesmas.

    Eu não fui Beatriz, nem Luana, Rayzza, Eloá, Maria – nem da Penha, nem do Rosário, muito menos Madalena. Não fui Aurora, Etienne, nem Anas ou Luizas. Não ainda. Não hoje. Não nos últimos onze minutos. Sei que vou ser, quando os homens vierem por mim, porque eles virão. E quando os eles vierem, quando meu choro dolorido e angustiado não sair da garganta,vão me culpar.

    Vocês vão olhar pro meu passado e dirão: ela tava pedindo por isso. Ela dava pra qualquer um, pra vários. Fumava maconha, cheirava pó. Usava o short enfiado no rabo nos bailes de sexta a noite. Andava com marginal, com um bando de vagabundo, tudo comunista. Traiu o namorado. Era uma puta. Feminista, mal comida.

    Porque o meu corpo não nasceu pra ser meu, pra ter tesão, é objeto de desejo que não deseja. Helena de Troia. Geni, territórito do Estado – não tão laico assim.

    Fotografia por Max Vilela, feita 06/01/16, durante o ato Por Todas Elas - Belo Horizonte, MG.
    Fotografia por Max Vilela, feita dia 06/01/16, durante o ato Por Todas Elas – Belo Horizonte, MG.

    Se fosse moça direita não tinha acontecido.

    Porque moça direita não faz essas coisas, não exibe o corpo, não fica se oferecendo. Moça direita fala baixo, senta de perna cruzada e não retruca. Não fuma, não bebe, não trepa. Namora, fica noiva e casa. E segue a vida, sem retrucar, porque mulher que é mulher, não revida, segue calada e de contrato firmado. Daí depois de dona de casa, parabéns vai ser mãe! E tem que ficar feliz, é um presente de Deus. E tem que se dar o respeito. Bela recatada e do lar.

    E mesmo assim, os monstros vem. E quando vierem: Acabou. Você tava pedindo.

    Pedido que foi selado antes mesmo que a gente tivesse a mínima ideia de como as coisas funcionam no mundo, quando nos furam as orelhas e sentenciam: é uma menina. E nos ensinam que a culpa é nossa, e que garotos serão garotos.

    E a prece de minhas irmãs manda: Endureçam seus corações e aprendam a matar.

    Fotografia por Max Vilela, feita DIA 01/06 -no ato Por Todas Elas - Belo Horizonte, MG.
    Fotografia por Max Vilela, feita durante ato Por Todas Elas – Belo Horizonte.

    E eu me recuso a aceitar até o dia que 33 homens destroem uma menina, queimam viva uma irmã de luta, violentam e arrancam o coração de uma criança, espancam outra, e outra e mais outra. E os jornais noticiam: foi por ciúme, por amor demais, por um fim de relacionamento que não foi aceito. Eu conheço e sinto a dor delas. Conheço suas culpas, que não são suas, mas nos foram dadas desde Eva. É nosso pecado original que nos condena carregar as culpas alheias.
    Culpas que são de uma sociedade que não discute gêneros e sexualidades nas escolas, onde pornografia é pedagogia, em que estupradores ganham premios, fazem piadas com a nossa dor e seguem como se nada tivesse acontecido, enquanto permanecemos destruídas.

    Culpas de uma sociedade onde homens que agridem suas companheiras são representantes políticos, em que meu direito de escolha não é respeitado. Uma sociedade que romantiza estupro na TV. Que tem um aparato policial despreparado que desacredita as vítimas e as assediam, relativizam seus traumas.

    Uma sociedade que se recusa a acreditar que estupradores são homens sãos, na plenitude de suas faculdades, e por isso os chama de doentes, uma classe, um tipo totalmente direferente.

    São homens como meu pai, avô, namorado, primos, amigos e professores. Não tem estrelinha na testa, seta de neon, aviso de mantenha a distância. Uma sociedade que diz que meu medo de homens é irracional, é exagerado – como fazer um escândalo, revidar, ousar ter uma voz. Uma sociedade que acredita que é só denunciar e tudo bem, pronto acabou. Vida que segue. Sociedade que aplaude Woody Allen, Marlon Brando, Bill Cosby e vira a cara pra Keshas, Ambers, Marilyns, Beatrizes, Luanas, Rayzzas.

    A culpa não é minha. Nem do meu short, do meu batom vermelho ou da minha sexualidade.
    Não é de Eva, de Maria, Beatriz, Rayzza, nem de Luana e de Eloá também não.
    Não é de nenhuma de nós.
    E é inacreditável que em 2016 a gente ainda tenha que explicar isso.

    Endureçam seus corações e defendam suas irmãs.
    Pois por nós, só nós mesmas.

    Fotografia por Max Vilela, feita 01/06/16, no ato Por Todas Elas - Belo Horizonte, MG.
    Fotografia por Max Vilela, feita 01/06/16, durante o ato Por Todas Elas – Belo Horizonte, MG.
  • “O Brasil está ao lado dos países mais retrógrados em relação a luta histórica das mulheres”, ex-ministro da Saúde José Temporão

    “O Brasil está ao lado dos países mais retrógrados em relação a luta histórica das mulheres”, ex-ministro da Saúde José Temporão

    O médico sanitarista José Gomes Temporão foi ministro da Saúde de 2007 a 2010 e diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Entre os governos do PT, foi o que mais tempo ficou à frente da pasta. Na chamada Nova República apenas José Serra se manteve tanto tempo no cargo. Durante o governo de Lula, o ex-ministro comprou brigas com os conservadores ao defender, por exemplo, que o aborto, é assunto para ser tratado por mulheres e dentro do âmbito da saúde pública.

    Hoje, Temporão é diretor executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), da Unasul.  O médico conversou com os Jornalistas Livres sobre o papel do Instituto para o desenvolvimento de uma estratégia de saúde comum à América do Sul e o risco que atual congresso representa para os avanços conquistados nos últimos anos.

    teporaoJornalistas Livres – Atualmente o senhor é diretor executivo do Isags. Qual o papel do Instituto para a América do Sul?

    Temporão – O ISAGS é uma organização internacional, pública, intergovernamental diretamente vinculado ao Conselho de Ministros da Saúde da UNASUL. É resultado do processo político de integração da América do Sul e tem por objetivo se constituir em um centro de altos estudos e debates de políticas para o desenvolvimento de lideranças e de recursos humanos estratégicos em saúde, buscando fortalecer a governança em saúde dos países da América do Sul e contribuir  para articular a atuação regional e a saúde global.

    JL – Em 2011 o senhor se filiou ao PSB. Os parlamentares deste partido votaram maciçamente a favor do processo de impeachment da presidenta Dilma Russeff. O atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, em seu primeiro dia de trabalho, soltou uma carta atacando o diretor da Unasul por questionar o processo em curso no Brasil. Como o senhor se posiciona sobre o impeachment de Dilma?

    Temporão – Eu me desfiliei do PSB acompanhando a posição de outros companheiros como o Roberto Amaral e entendo esse processo como uma grave ruptura da ordem democrática me colocando ao lado daqueles que defendem o mandato da presidente Dilma e questionam os argumentos utilizados para afastá-la da presidência da república.

    JL – Durante sua gestão como Ministro da Saúde no governo Lula, o senhor teve posições polemicas sobre a questão do aborto, defendendo que este era um assunto para ser tratado por mulheres e dentro do âmbito da saúde pública. Senadores chegaram a usar esta matéria para dizer que o PT é contra a família. Passados alguns anos que avaliação o senhor tem das medidas tomadas quando era ministro? O senhor vê algum avanço neste tema no Brasil e na América Latina?

    Temporão –  Com exceção da decisão do STF que incluiu entre os motivos legais para a interrupção voluntária da gravidez a anencefalia, não há muito a comemorar. A exceção é o Uruguai que aprovou uma lei mais liberal sobre o tema. Neste momento forças extremamente conservadoras ameaçam no Congresso Nacional grave retrocesso na atual legislação propondo restringir, se não impedir, o que hoje consta na legislação brasileira sobre o tema. O Brasil hoje está ao lado dos países mais retrógrados do mundo em relação a esta luta histórica das mulheres brasileiras.

    JL – Os médicos sanitaristas historicamente estiveram à frente da criação e defesa do SUS. Como o senhor enxerga o SUS nos dias de hoje? O SUS é capaz de garantir ao cidadão o direito constitucional de acesso à saúde?

    Temporão –  O processo que levou à criação do SUS tem raízes nas lutas contra a ditadura militar e expressa um processo histórico por direitos e cidadania em nosso país. Nesse período de mais de duas décadas de implantação do SUS houve expressivos avanços em termos de ampliação do acesso e de estruturação de políticas e programas que hoje garantem atenção integral à saúde a cerca de 75% da população brasileira. E isso deve ser reconhecido. Por outro lado existem contradições e fragilidades que impedem que essa reforma se estabeleça em toda sua plenitude. Entre elas estão o subfinanciamento, o estímulo ao mercado privado através de subsídios e renúncias fiscais, o modelo de atenção ainda muito centrado na atenção hospitalar e o modelo de gestão hoje pulverizado entre gestão pública, terceirizações, OSS [Organizações Sociais de Saúde], criando um modelo fragmentado que impacta negativamente a eficiência e a qualidade dos serviços.

    JL – O atual ministro da Saúde considera que não é possível sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. O que o senhor pensa sobre isso? É possível garantir saúde Universal para todos?

    Temporão – O SUS e seus princípios pétreos- universalidade, integralidade, gratuidade e democracia- conformam um processo civilizatório que deve ser defendido por todos que compreendem a saúde como um direito de cidadania e dever do estado. A defesa do SUS é a defesa do direito à vida plena e com qualidade para todos. Defendê-lo radicalmente é um compromisso com a democracia e o desenvolvimento nacional.

     

     

  • O jornalismo e os padrões machistas

    O jornalismo e os padrões machistas

    Por Joana Brasileiro | Jornalistas Livres

    Redação de um grande jornal (São Paulo-Brasil) no final do século 20…

    Era um ambiente machista e racista. A minoria de mulheres se esquivava constantemente de todo tipo de assédio, pressões e opressões oportunistas.

    Eu entrara naquela ambiente, com as “fraldas ainda molhadas”, recém-saída do colegial, após fazer um cursos técnico. Como sempre me sentira um patinho feio, nos primeiros dias, quando eu entrava na redação, circulando pelo corredor central que ao lado continha as editorias, me sentia olhada de cima abaixo, por todas e todos…

    Se isso era profundamente intimidador por um lado, por outro fazia com que eu experimentasse uma sensação de sucesso, de admiração. Sentia-me atraente.

    A editoria de arte era um lugar à parte —acho que em todo lugar é. Onde todos os loucos mais maravilhosos emprestam sua arte a um compressor industrial de letrinhas. Acho que, neste mesmo patamar, só mesmo a editoria de fotografia….

    O fato é que existia este clima sexual no ar, e os valores eram confusos, pseudo-modernos, convivendo com padrões dos mais arcaicos. Um “pitelzinho” como eu, boba de tudo, era uma presa fácil. Só que não. Em uma semana, arrumei um namorado, diagramador como eu, para evitar o fenômeno “mulher solteira é sempre desfrutável”.

    Para quê! O rapaz foi perseguido por um dos meus chefes, que não aceitava que a “turma dele” não tivesse desfrutado a “carne fresca”.

    Eu e ele aguentamos por um ano e meio, mais ou menos, pressões do tipo mudar a escala de trabalho, e todo tipo de sacanagens, até que ele pediu demissão.

    O detalhe é que a editora de arte era uma mulher, mas tão submetida e oprimida ao esquema quando tantas outras. Dois meses antes de eu este namorado terminarmos, numa festa, meio bêbado, esse meu chefe resolveu “aceitar” nosso resistente relacionamento, e deu sua “bênção”. São obsessões possíveis dentro de um ambiente insalubre, pautado por padrões machistas, quando até podiámos dizer também escravagistas, em que o chefe acha que vai determinar com que fica a funcionária gostosa.

    Era bem difícil não se atrapalhar com tudo aquilo, porque o normal era um colega chegar perto de você e fazer qualquer tipo de comentário baixo, mesmo que aparentemente “elogioso”, sobre a sua roupa, ou mesmo apenas emitir um “chiado” característico, e soltar um “Tá gostosa, hein?”, dependendo do nível de intimidade, que muitas vezes não precisava ser muito, não.

    E a gente nem nomeava isso como assédio, porque meio que fazia parte; a gente não ia mudar isso. Então, a gente fazia que gostava, e às vezes até gostava mesmo. Mas isso não importa, porque o fato é que, na cultura machista, dentro de um ambiente de trabalho, as lógicas estão impostas de maneira tão atávica, que você pode ser violentada, simbolicamente ou não, e se sentir a eterna culpada.

    Minha mãe me contou que numa outra redação, de uma grande revista de circulação nacional, na década de 80, era comum que uma mulher solteira fosse chamada de “presunto”. Era normal…

    Fora que éramos pessoas confinadas, num mínimo de 8 horas por dia, mas com um volume médio de 5 horas extras a mais, pelo menos uma vez por semana. Resumindo, trabalhávamos muito, e este espaço de trabalho ocupava muito do espaço afetivo e da vida pessoal. Era natural que a vida pessoal e sexual se confundisse com as das pessoas do convívio da redação.

    Os anos 90 trouxeram as grandes revoluções tecnológicas, a entrada das paginadoras em larga escala, dos macintosh, e a cada semestre tínhamos que nos adaptar a modos e operações diferentes. Neste cenário, a minha função, diagramador, era uma das mais oprimidas —o prognóstico é que nem existiria mais.

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    Durante um período de aproximadamente um ano, fiquei na função de paste-up eletrônico. Montávamos o jornal, parte por parte de cada matéria (títulos, texto, fotos, legendas), de cada página, e era um trabalho bem mecânico e estressante. Nessa época, eu ficava, junto com um colega meu, no corredor das paginadoras. Ele era o rei do assédio. Aquele corredor na entrada da redação, por onde passavam todas as pessoas, com a companhia deste colega, mais parecia a porta de uma obra. E ele era mestre, brincava com todas as mulheres que passassem, e acho que para algumas era até bem divertido.

    Hoje me dou conta, sob a perspectiva de uma mudança de paradigma, como era escroto, e uso esta palavra para definir, porque acho-a sonoramente muito potente e é “coincidentemente” uma parte pendente do órgão masculino (;D). Mas, a palavra melhor seria, “inconveniente”, pois estabelecia uma relação dúbia e opressora que relativizava assédio e sedução, que é o ponto aonde eu quero chegar.

    Diante destas relações machistas, a premissa é que o homem PODE assediar. E a mulher que se vire. Como fazíamos? Brincávamos com isso, aceitando com um certo nível de sedução e resposta positiva, como se pudéssemos contornar sem transformar tudo numa briga. Porque, senão, íamos brigar 24 horas por dia, e com certeza não teríamos a razão. Afinal, a premissa é que a mulher provoca, seja porque aceita uma investida, seja porque não aceita. Era mais fácil “aceitar” e deixar a coisa rolar até um certo ponto… sem dar muita bola. Passávamos batido mesmo, ou nos divertíamos com isso. O que fazer?

    Neste cenário, lembro de um editor, que enquanto eu diagramava ficava com a mão na minha perna. Era uma cena absurda na verdade, porque ele não iria além disso, mas afinal eu estava de minissaia, ou me insinuando, e para a cartilha de homem, que ele tinha que seguir, “uma gostosa de minissaia pede uma mão em sua perna”.

    A atitude durou um tempo. Depois de muito relutar, denunciei o canalha à minha chefe, que relativizou, seguindo a atitude-padrão sobre a qual precisamos refletir muito ainda. E eu fui obrigada a parar de diagramar o caderno de jovens, que na época era o meu maior prazer. Hoje, ele é assessor de um político de esquerda, que admiro bastante.

    Com o tempo, a mulherada já estava mais à frente das editorias, e dos cargos de chefia, e esse empoderamento foi modificando bem o ritmo das relações. Mesmo que pairasse sobre as mulheres “desfrutáveis” —normalmente as não-casadas— a premissa de que tinham “dado” (feito sexo) para alguém, possivelmente para o diretor de redação. Sim, porque, na maioria das vezes, a hipótese de que a competência feminina vem antes da vagina, é implausível no ambiente machista, e principalmente as outras mulheres “desfrutáveis” ou não, eram as primeiras a defender tal tese.

    Mas os “anus” 90 foram também cheio de libertações, e o fator gay saindo com mais “força do armário”, despolarizou um pouco relações, mas a estrutura dialética se manteve a mesma. Porque em contrapartida veio a onda do politicamente correto, que pretendia restabelecer estas regras sociais e culturais, desconsiderando ou, a meu ver, jogando para baixo do tapete, questões nevrálgicas, introjetadas nas relações.

    Porque de certa maneira, independentemente de como fomos criados —e a tese da criação é uma outra faceta da cultura machista, já que a culpa recai novamente sobre a mulher-mãe—, introjetamos que as relações se dão pelo viés do discursso da “sacanagem”, e aceitamos isso como base para nos entendermos diante dos desafios. Diante deste discurso, a mulher será sempre um alvo fácil, culpada, santa, puta ou a outra.

    Como não há uma premissa de igualdade, podemos então cair no “revanchismo”, e aí voltamos a ter culpa. Como quando se diz que há um racismo do negro contra o branco, e aí queremos apagar 500 anos de opressão, que não são apenas uma questão de comportamento da sociedade, mas também é uma premissa da política de Estado, que permanece. Não podemos enfrentar essas questões fingindo que elsa não existiram.

    No ambiente da mesma redação, tendo incorporado este padrão, reconheço que me tornei, em alguns momentos, portadora do mesmo nível de machismo que quero combater e denunciar. Para aquele mesmo amigo, do corredor das paginadoras, que todo dia sussurrava no meu ouvido, um dia eu cheguei e falei: “Então tá. Vamos transar? Quando? Eu quero!” Aí, ele amarelou e não foi ao encontro. Eu podia ter ficado na satisfação da vitória moral, mas, não contente, denunciei sua “fraqueza” masculina diante dos colegas. Um dia, num bar, humilhei: “Ah! Cão que ladra, não morde.”

    As “carnes novas” que entravam na redação (podiam ser homens ou mulheres) e a premissa do assédio na justificativa da conquista permaneciam, mas, agora, muitos homens passavam a ser assediados, e na lógica machista, admirados e invejados, por todos os outros, sem que perdessem sua credibilidade. O mesmo não ocorre para mulher, que “se der ao desfrute”, ainda no século 20, pode ficar “mal falada”.

    Num outro momento, já no final da década, eu estava num cargo de chefia, e quando aplicava um teste para contratação de alguns designers, aproveitei o tema do caderno especial sobre a história da alimentação, que começávamos a elaborar, para dizer que todos os candidatos deveriam se submeter ao teste da farinha… Para quem não conhece, o tal teste da farinha baseava-se na música “Doze anos”, cantada por Chico Buarque e Moreira da Silva, que contava que os jovens meninos sentavam na farinha para ver se deixavam marcas das suas pregas. Pesado… isso. Hoje penso o quanto.

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    Mas era apenas uma brincadeira, justificativa que é a outra faceta do discurso que envolve todo tipo de opressão, preconceito e injúria. Hoje sei que posso ser bem violenta com este nível de brincadeira, e posso atravessar com facilidade o limite do respeito e da compreensão do outro. Acho que é porque me acostumei a responder assim, a brincar assim, a estar neste nível de diálogo, porque isso “era” o normal, não apenas nas redações.

    Se faço esta autocrítica e reflexão, é porque percebo o quanto temos que lutar, e gritar e chacoalhar esta sociedade para que cada simples signo de opressão, possa ser combatido, e por que o volume dos nossos gritos tem que ser ainda mais alto. É que estamos diante da possibilidade de um retrocesso cultural e político, que pode nos levar para a idade média. E as relativizações, distorções, manipulações midiáticas, e o ressurgimento dos monstros e valores da ultra-direita têm tudo a ver com esse retrocesso.