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Categoria: crônica

  • Nossos índios e um país sem futuro

    Nossos índios e um país sem futuro

    O antropólogo Adelino Mendez, em rede, diz que “nossos índios” é expressão vazia, pois nunca o foram. Com um pouco de veneno e açúcar, chamamos crianças e idosos para se deliciarem até a morte, diz, sobre os Timbiras. Milhões morreram na sevícia, então passamos a chamá-los de nossos índios.

    As sociedades ameríndias vêm sendo devastadas desde 1492, quando, fala-se, Cristóvão Colombo aportou. Depois foi Pedro Álvares Cabral, aqui, em 1500, e seguiu-se a primeira missa. 

     

    Curumim não seria mais rei, falta fumo aos pajés desde de então, e as cunhãs já formaram nossa nação, tão diversa, magnífica, espúria, perversa. Mas seguimos na linha histórica, na beira das águas, semeando a barbárie, orgulhosos de um futuro que não apruma.

    Penso que só sabemos viver melhor assim, no esquecimento, íntimos falsos altares, nossas sombras mesmo. Nossos índios são nossos mortos, afirmava Edilson Martins, em 1978, a destruição sistemática, os últimos Passos da Cruz do aborígene brasileiro, como observara à época, Antônio Callado.

     

    Lago de nossa dor? Não, não existe amor no que não se vê, palácios de fidúcias invadem, labirinto, nossos caldeirões. Morre cacique, morre pajé, morrem cunhãs. 

     

    As águas são o manto, nossa prece, nosso luto.

     

    imagens por helio carlos mello©

  • As atividades do dia

    As atividades do dia

     

    Foi uma segunda-feira fértil, confesso, não posso negar minha mente oprimida no clarear daquela manhã. Senti uma luz indígena, suas insígnias marcando as nuvens de chuva esparsas no céu,  quando abri a porta. Uma gente que grita distante me resgatou pouca fé que tenho no país nesse momento. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) lançaria seu fórum legítimo pela vida, pois toda vida indígena importa.

     

    Digo assim, porque cedo fui à quitanda do bairro e, vi através da máscara, que a pitangueira, que antes  era só folha empoeirada, suja na falta de chuva, hoje era só flores. Me encabulei, mas foi dia de flor, miúdas, branquinhas. Pensei até ter errado a rua, não, era ela mesma, apenas a pitangueira que tinha sede, hoje farta, marejada, nevava.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Quando voltei para casa, liguei o rádio, na verdade o computador. Na frequência, link,  linha de frente tocava Criolo, cantava a responsa enquanto eu coava meu café.

    Segunda-feira foi um dia de flor de pitanga, após seca longa e noites de boa chuva no fim de semana. A metrópole assusta entre cunha, suas árvores, seus povos na mente.

    Me encabulei, mas foi dia de flor, miúdas, branquinhas. Lion man.

     

     

     

     

     

    “Em tempos de pandemia a luta e a solidariedade coletiva que reacendeu no mundo só será completa com os povos indígenas, pois a cura estará não apenas no princípio ativo, mas no ativar de nossos princípios humanos.“

     

     

     

     

     

    http://apib.info/2020/06/29/apib-lanc%cc%a7a-plano-de-enfrentamento-a-covid-19-emerge%cc%82ncia-indigena/

     

    imagens por helio carlos mello©

  • Quando partem as vovós do mundo

    Quando partem as vovós do mundo

    Vai se configurando um vazio, um vácuo na guarda dos conhecimentos arcaicos, os saberes ancestrais irão agora guardar-se em pequenas valas entre os povos indígenas, seus territórios no solo do Brasil. A terra indígena, todas as TIs, homologadas, demarcadas ou não reconhecidas, vão se cobrindo de luto.

     

    A morte das matriarcas indígenas nos enchem de tristeza, saudade de um tempo que cessa. Partiu Bekwyjkà Metuktire, esposa do líder  Ropni Metuktire, o renomado cacique Raoni. Seu coração cansou desse momento de receios e medos.

    Acervo Projeto Xingu/UNIFESP©

    Também vai vovó Rita Raposo Macuxi, senhora do barro e das linhas, na Terra Raposa Serra do Sol. Tantas histórias partem com elas, nos deixam mais pobres.

     

    Ficamos nós aqui, contando estrelas no céu, pequenos pontos, tão diversos. Piscam, piscam, trazem uma noite fria de inverno.

    por Enoque Raposo©
  • Do silêncio que ouve-se

    Do silêncio que ouve-se

    Agora vivemos tempos de insights, flashes que piscam invadindo a monotonia dos limites da pandemia. Gosto de escrever, me remontam prisões, àqueles, quem condenados ao ato, realizam, prescindem.

     

    Certa dia, vejam só, fiquei pensando nos espinhos, farpas e algozes, aqueles mais pequenos, que de tão pequenos que são, se perdem na carne, como faca, devoram na espreita; incomodam cada dia mais, um movimento dentro gente, digerem.

    Espinho pequeno é como grilo no quarto, qualquer ínfimo inseto que ao ouvido ameaça, desassossegam a alma, o sono, o espírito terno que não temos.

     

    Espinho é um silêncio estrondoso, não sai da entranhas, só sossega quando purga. Indisciplina, correr na rua, meninos mimados não podem reger a nação, diz a canção.

     

    Isolamento é como cunha assim, ínfima, incidente como é o sertão, imenso vazio da medula, reta, ereta.

    De fato a peste impõe. 0 melhor lugar mesmo deve ser o mato, muita vida entre poucas pessoas. Agora desmata, queima, incendeia, fazem tardes negras na metrópole.

     

    Raiz de árvore, tal ciranda dos fatos recentes, me acarretam luminoso entendimento dos indígenas que seguem, em isolamento voluntário, fugindo do contágio, do pisar, passo, onde só os afoitos se atrevem. A cadência da situação alerta, revela.

    Fique em casa. Recordo a vontade de potência que a filosofia pensara entre longos bigodes. Enfim, coisas da terra redonda que não cabem agora neste relevo plano de uma crônica, mas sei que, no entanto e intento, se move numa Terra curva, tal como os ovos ou uma bola de golfe,  a lua mesmo, ou bolhas de sabão. 

     

    Até a pedra move-se, sei, delicado fluxo, mesmo reine agora a permanência da fúria, banida de seu devido lugar.

     

    Coisas de força e proposição. Tudo dá rap, kwaryp, atômico maracatu.  

  • A queda dos bárbaros e falsos heróis

    A queda dos bárbaros e falsos heróis

    Estátua. 

     

    Monumento.

     

    Palavras duras, pedra ou metal. Fazer ficar em pé a memória é o movimento desses objetos que, de tempos em tempos, são detonados, afogados, derrubados. Recordo-me de um Buda lindo, esculpido na pedra, implodido nas montanhas do oriente, muitos anos atrás, assim como as relíquias do Iraque e da Síria, destruição terrível do ofício de algum artista. 

     

    Recordo-me também, em certo dia, com Ailton Krenak, no Parque Trianon, em São Paulo,  numa entrevista sobre a lama que invadira o Rio Doce, o rio que no início desse governo definiu para a nação como seria a cor desse momento , quando vi um olhar tão triste, de Ailton, para uma escultura do bandeirante Anhanguera , estátua poderosa nos gestos, em granito branco, na calçada da Avenida Paulista.

    Anhanguera e Ailton Krenak
    O pensador indígena Ailton Krenak observa a estátua do algoz Anhanguera, na Avenida Paulista / helio carlos mello

    Anhanguera significa diabo velho, gênio manhoso e velhaco. Bartolomeu Bueno da Silva, homem forte com certeza, encontrou ouro no Rio Vermelho, e  sei que se os indígenas o denominaram como diabo, não foi porque ele era um homem educado. Aliás, educação nunca importou muito aos monumentos, mesmo que seus traços sejam a arte de grande artista.

     

    A humanidade ergue e destrói coisas belas, entre o trânsito dos homens quer perpetuar sua verdade, um dia atrás do outro. Eis que, de repente vira pó, volta a se misturar ao vento.

  • Do céu  sem estrelas  na noite escura do genocídio

    Do céu sem estrelas na noite escura do genocídio

     

    O gesto de sufocamento, o retirar o ar de alguém, tal cortar a luz e a água de quem não honra as contas de sua morada, uma baioneta que fura os olhos da gente, de repente. A cena numa cidade americana, o joelho sobre um pescoço negro e mãos brancas que empunham a arma, é o mesmo gesto que cala o índio, que sufoca, atira e mata.

     

    Todo o mal que a cena traz une os jovens, preto, branco, latino, asiático?  Genocídio, epistemicídio, tudo que desencanta a vida e a palavra. Desiste em mim o pessimismo de crer que o mundo chega ao fim. Em plena pandemia e sob joelhos, aflora dos equívocos uma flor de cinco pétalas, como os continentes numa terra redonda, os povos todos dizem um basta.

     

    Há algo terrível, indecente, que persiste no Brasil, a terra que quer ser uma grande nação, a morte de seus povos. Vidas indígenas importam? 

     

     

    Nos trazem novos lutos a todo momento, insiste turvo destino, teimosia, indecências do racismo. Matam os inocentes, dão porte às armas para aqueles que já nasceram armados na alma, na carência de mando, àqueles que não estimam o fenômeno da vida, momento sagrado e fugaz de cada um em si.

     

    Por isso creio num Deus, aquele que deixa viver. Resistência é a sombra dos aflitos sobre as praias dos milionários. Estamos entre o sertão da razão, entre o grito dos mulambos, entre o nevoeiro das mentiras.

     

    Oro, rezo todos os dias, acendo velas e incenso, abro as cartas. Pedem reconhecimento e fim da violência, o fim da eugenia. Canto com Pedro Casaldáliga, na abertura da Missa da Terra sem Males: 

     

    Em nome do Pai de todos os Povos,

    Maíra de tudo, excelso Tupã.

    Em nome do Filho,

    que a todos os homens nos faz ser irmãos.

    No sangue mesclado com todos os sangues.

    Em nome da Aliança da Libertação.

    Em nome da Luz de toda Cultura.

    Em nome do Amor que está em todo amor.

    Em nome da Terra-sem-males,

    perdida no lucro,

    ganhada na dor,

    em nome da Morte vencida,

    em nome da Vida,

    cantamos, Senhor!