Jornalistas Livres

Categoria: crônica

  • Provocação acerca do egoísmo

    Provocação acerca do egoísmo

    Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história. 

    Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.

    Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão* 

      “Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.

     Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.

     A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico  ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.

     Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.

     Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”

    in A vida não é útil – Companhia das Letras

    *  Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.

     *Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.

    *imagens por Helio Carlos Mello

  • Boi bombeiro, boi de piranha na terceira margem

    Boi bombeiro, boi de piranha na terceira margem

    Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.

    coração e pele de uma gente de origem

    A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.

    Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano. 

    Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.

    Baixo Xingu, Kawaiweté
    Crianças Kawaiweté, em
    feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.

    Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.

    Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.

    Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.

    Aldeia Capivara
    À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.

  • Raoni, da paz de origem, do guerreiro à ciência da vida

    Raoni, da paz de origem, do guerreiro à ciência da vida

    Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.

    Alto Xingu
    Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.

    Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.

    Cacique Raoni em sua juventude
    Raoni e sua juventude

    https://www.facebook.com/watch/live/?v=251647662554241&ref=watch_permalink

    Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.

    A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.

    live

    http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html

    *imagens por helio carlos mello

  • Amazônia, palavra sem fim

    Amazônia, palavra sem fim

    Eu era tão pequeno quando ouvi pela primeira vez a palavra Amazônia. Recordo meu pai grande lendo jornal impresso, bonitas fotografias. Contava eu cinco anos de idade, era 1969. Era tão grande a palavra que meu pai lia, Amazônia. Gostei pelo som, levava a língua ao céu da boca quando dizia, causava-me agrado.

    Palavras vastas são assim, entendi bem quando cresci.

    Envelheci hoje, tão curto é o tempo da memória e sua incidência, acidente, percurso. Fico vendo o gatilho do tempo, suas idiossincrasias, som de flauta, acordeon, violão. Nada define que verde é o futuro ou seu inferno, somos apenas um som qualquer, cidadãos num país confuso, entendo agora aos 56.   

    Quis entender a palavra, nunca esqueci. Fotografias impressas na primeira página, janelas do mundo, jornais de pai, revistas de mãe.

    Nada mudou muito, talvez seja esse o fio que me liga, em momento tão besta e espúrio sentimento, ser homem não basta. O futuro não chegou, é a mesma senda, nosso espírito rasteja em devastação, ainda.

    A raça humana e sua lágrima.

    País pobre o meu, mesmo sendo tão rico. O que trava esse rumo? Pergunta meu coração que avança mais de 50 anos. Somos o atraso mesmo entre a humanidade da razão?

    Presente do indicativo, meta, vazio que ocupa a mente.

  • A ancestralidade. Tupi, Tupi or not Tupi

    A ancestralidade. Tupi, Tupi or not Tupi

    Os caminhos que nos levam ao TePI, Teatro e os Povos Indígenas, a arte indígena contemporânea, o lugar do movimento, o grande campo do mundo dos povos indígenas, cruzamentos que nos encontram, lugares do corpo, partem da arte em ascensão.

    Não existe conhecimento que não atravesse os corpos, o corpo do mundo como os saberes da possibilidade de vida, os cruzamentos com o mundo indígena, marcado por violências, injustiças e supressões. 

    Grande debate se instaura em tempo de pandemia, um fio de seda se impõe na rede, do fim ao começo, a vanguarda de nossos gestos.

    a ancestralidade e o teatro de Zé Celso Martinez
    José Celso Martinez Corrêa e nossa ancestralidade

    Aquece, em nova trama, a estética dos povos originários. Alento em tempo de negacionismo, a terra é pindorama, palmeira, sabiá. Não passará aquele que nega.

    Repara o pensador Ailton Krenak : é claro que a história do teatro, a partir da intervenção do Zé Celso (ele contraria toda a rendição à essa linguagem da arte, à essa coisa do mercado) é o que mais se ressalta nessa obra, é de inspirar um tipo de narrativa, um tipo de expressão do corpo, de presença, onde o repúdio à todas essas formas de dominação, o colonialismo, toda essa coisa machista, o racismo. Todas essas marcas são repudiadas por aquilo que o teatro do Zé Celso promove, e a sua evocação de uma cultura milenar, de uma ancestralidade. Ele está mais na sua apropriação criativa de todo o discurso do teatro grego, da antiguidade.

    Teatro Oficina
    Teatro Oficina, São Paulo, 06/07/2016

    É a maneira que ele se põe, quase que como um ritual a evocar aqueles corpos que não existem mais, que não estão mais aqui, presentes entre nós. Eles estão em outro mundo. Eu acho que Zé Celso Martinez Corrêa, têm a grande importância de desestabilizar o território para que novas artes possam se instalar.

    Quer dizer, Zé Celso não tem vergonha.

    Alto Xingu
    Posto Leonardo Villas Bôas, Alto Xingu

    A maneira de a gente superar a ignorância e o obscurantismo é com luz. Então vamos iluminar os ambientes com conversas sem preconceitos, as conversas engasgadas e que a gente possa cantar para suspender o céu.

    por Ailton Krenak, em:

    imagens por helio carlos mello©

  • Quem paga o pato?

    Quem paga o pato?

    Enquanto o general solta fogo pelas ventas, afirmando que o mato se mata, se incendeia voluntariamente, dois indígenas se destacam na consciência da nação. Ailton Krenak e Sônia Guajajara mantêm acesa a chama, estima e préstimo de um país que quer ser feliz, verde, lugar de vida e de água.

    Lesa-pátria aquele que cala, insanos poderes que pregam desenvolvimento pela destruição do meio ambiente.  Por mais que doa, continua limpa a palavra na mensagem dos povos originários, o planeta corre riscos, a mãe terra. 


    https://jornalistaslivres.org/o-modo-de-funcionamento-da-humanidade-entrou-em-crise/

    Tantas são as ameaças, mas a primavera insiste e traz vida. A 62ª edição do Troféu Juca Pato 2020, homenageia Ailton Krenak como intelectual do ano. Também a voz da mulher indígena, Sônia Guajajara, ecoa pelo mundo, denunciam os riscos que transpassam os povos indígenas e seus lugares de direito.

    Pensar índio é pensar o planeta.

    https://www.ube.org.br/materias.php?cd_secao=58&codant=&friurl=-Vencedor-JUCA-PATO-2020-