Jornalistas Livres

Categoria: Brasília

  • A palavra ao Acampamento Terra Livre

    A palavra ao Acampamento Terra Livre

    ‘Naquele tempo político (referindo-se a época da Constituinte de 1988) recebia a gente muito bem. Só ligava, marcava e ele recebia nós, agora hoje estão usando bomba lacrimogênea, pimenta spray para receber nós lá. Hoje, dia 26, era para ir 80 indígenas, foram só 60. Lá barraram e pediu pra entrar somente 20. Aí lá criaram outras pequenas confusões.’- Cacique Paulinho Paiaka, etnia Kaiapó.

    Mesmo em tempos turbulentos como o nosso, o Acampamento Terra Livre sobrevive, assim como seus participantes sobrevivem há quinhentos e dezessete anos de colonização. O acampamento de 2017 foi o maior que tiveram até agora: ‘Mais de quatro mil indígenas, cerca de 200 povos de todas as regiões do país, estiveram presentes(…) A estimativa inicial era que cerca de 1,6 mil viessem à capital federal.’ (APIB)

    Foram quatro dias de intensa atividade, nos quais resultaram no ‘fortalecimento do movimento nacional, envolvimento de vários povos que ainda não haviam participado das mobilizações, além de junto ao governo demonstrar que os povos indígenas permanecem vigilantes para defesa de seus direitos.’- Ângela Katxuiana, da etnia Katxuyana.

    Tanto a Ângela, de 34 anos, que trabalha na Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará – FEPIPA, e é conselheira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB e membro do Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI, quanto o cacique Paulinho, carregam em suas histórias a força e a tristeza da luta indígena.

    Primeiramente, Ângela representa a garra das guerreiras indígenas, que além de lutar pela terra também precisam lutar pela própria igualdade de representatividade entre os indígenas.

    A história do seu povo, ela me conta, remonta a ditadura militar, da qual também foram vítimas: em 1968 eles foram levados do seu território tradicional, na cabeceira do Rio Cachorro e Trombetas, no Pará, para o Parque Indígena Tumucumaque, onde a entrevistada nasceu e cresceu.

    A justificativa para o crime foi uma epidemia, ‘Mas sabemos que foram interesses, nessa região se instalaram grandes mineradoras. Passamos mais de 40 anos sofrendo na terra dos “outros”, tentando não perder nossa língua e cultura. Muitos de nossos velhos morreram de depressão nessa transferência, afinal não sabiam por qual motivo foram tirados de sua terra.’

    A partir de 1998 eles começaram a voltar em uma longa jornada para casa. Ela me conta que até hoje tem indígena voltando para sua terra, pois voltam aos poucos de carona.

    A demarcação de suas terras, ‘única forma de reparação de nossas perdas’, afirma, ainda não foi realizada.  Suas terras indígenas (TI) foram publicadas na DOU (Diário Oficial da União), assinadas pelo presidente da FUNAI, João Pedro. O RCID foi publicado no dia 22 de outubro de 2015, ou seja, ainda faltam mais quatro passos para a terra ser realmente considerada deles. O estudo e organização de todos os documentos começou em 2003.

    Atualmente estão abrindo aldeias nos locais das antigas aldeias: ‘Nossa aldeia chamada Pur’ho Mi¨ti¨ é exatamente na aldeia antiga dos nossos avós. É questão de retomada mesmo.’

    Uma luta de mais de quarenta anos por uma terra que já era deles. Essa é uma história que se repete entre os indígenas: a expulsão, o retorno, a luta constante para manter essa terra.

    Já Paulinho é formado em: ‘Guerra, igual capitão, general, marechal. Por quê? Por causa das lutas que ouvi dos velhos, sobre ter que mudar de um local para outro, ver outras florestas, outros rios, outros pássaros. Aí eu decidi: quando crescer quero ser igual vocês. Quando crescer vou lutar. Vou encarar esse mundo.’

    Ele me conta que se sentiu enganado várias vezes pelo homem branco, e que por isso passou anos sem ver nenhum deles, passou um bom tempo se dedicando exclusivamente as tradições indígenas.

    Quando era um jovem de 18 anos, ele foi chamado para participar de um projeto do governo, a Transamazônica. Ninguém explicou direito o que realmente era o projeto, o que ia acontecer, e por isso se sentiu enganado.

    ‘Governo chamou índio para participar do projeto, e nós fomos inocentemente. Eu vi trator arrastar aldeia dos índios Zarará, pra fazer a estrada. Eu estava acampado na aldeia que foi abandonada por causa dos tratores. Depois disso fui para o mato com o pessoal da FUNAI, protegendo pião. Hoje me arrependo da minha participação. Fui andando de Marabá a Altamira, de Altamira a Itaituba, de Itaituba a Santarém. Foi aí que comecei a ver que homem branco usa tecnologia para destruir a floresta, a terra. Passei 5 anos fora da Aldeia Kaiapó’.

    Esse foi o primeiro momento em que sentiu decepcionado com o homem branco. O segundo, ele disse, foi quando dentro da própria FUNAI lhe prometeram estudo, mas não lhe deram. Depois desse acúmulo de decepções, passou um bom tempo em sua aldeia, sem contato com o homem branco.

    Mais tarde, ele conta, decidiu que era hora de ir lutar fora da aldeia: ‘Trouxe Kaiapó para lutar no Congresso, para dançar no Salão Verde, e nós ganhamos 487 votos a favor de índio. É essa lei que os políticos de hoje querem acabar, criando PEC 215. Acompanhamos toda votação, nós e Xicrim. Essa é nossa luta. ‘

    Depois, em 1989, lhe foi apresentado o projeto de construção de barragem lá em Altamira, que chamava de Kararaô: ‘Foi no dia 2 de fevereiro de 1989 que nós realizamos grande movimento contra a construção de barragem, e conseguimos barrar. Para barrar tive que fazer campanha na Europa pedindo apoio. ‘

    O encontro de Altamira depois ficou conhecido como o primeiro encontro das Nações Indígenas do Xingu, e lá foi elaborada a carta de Altamira, importante pelo seu teor unificador entre os povos indígenas.

    A mensagem que fica desse encontro, e que o Paulinho Paiaka gostaria que eu transmitisse, é a seguinte: ‘Se você se sente brasileiro, lembra que nós índios somos os primeiros responsáveis por essa terra. E devolve os direitos destruídos. ‘

    Nós somos brasileiros e temos sangue de índio: precisamos relembrar essa força para sairmos às ruas e lutarmos pelos direitos que estão nos tirando. Se eles lutam há 517 anos sem perder a esperança, nós também conseguiremos.

    Laís Vitória Cunha de Aguiar, para Jornalistas Livres, Brasília.

  • Mais um olho alvejado: PM atira em idoso em Brasília

    Na manhã desta sexta-feira, 28, na rodovia DF-140 em Brasília, próximo à divisa com o estado de Goiás, moradores foram covardemente atacados pela Tropa de Choque da PM (Patamo/DF). Um senhor foi alvejado no olho por uma bala de borracha, diante da barricada, quando resistia ao avanço da Tropa sobre o protesto da Greve Geral. (Assista o vídeo a seguir. Imagens fortes).

    Sangrando muito, foi socorrido pelos Bombeiros em uma óbvia desigualdade de forças. “A gente está pedindo paz, segurança”, fala um morador. “A gente paga o salário de vocês e vocês vêm aqui e machucam o cidadão!”, protestou. A região é muito carente.

    As trabalhadoras e trabalhadores queimavam pneus para fechar a rodovia em ambos os lados. A interdição durou mais de 4 horas. Ailton, um dos manifestantes, contou à repórter Juliana Castro que foi se manifestar por causa da situação de carência de serviços básicos na região onde vive. “Aproveitamos essa greve geral para pedir mais segurança, só essa semana foram quatro homicídios aqui na região”, explica Ailton.

    Poucos minutos depois depois, chegaram duas viaturas da PM Rural e tentaram negociar a saída dos moradores, mas estes se mantiveram irredutíveis

    Por volta de 10h da manhã, com uma fila de veículos que já chegava a quase 5 km de cada lado, a Tropa de Choque foi chamada e ao menos 6 viaturas chegaram ao local. Os policiais, imediatamente, correram para a frente da barreira e abriram fogo contra a população.

    Bombas de gás lacrimogênio e tiros de balas de borracha disparados, obrigaram todos a correr. No entanto, um senhor, Edmilson, que tentava pedir para que os policiais parassem de atirar, foi atingido no olho direito e caiu no chão.

    Mesmo assim os policiais continuaram atirando e só pararam quando alguns moradores se aproximaram gritando, pedindo para que parassem de atirar para socorrer o senhor.

    A ação desproporcional da PM revoltou os moradores. Um deles, gritava ao lado do corpo atingido do companheiro que a manifestação também é por eles (policiais).

    Veja a ação na íntegra:

  • A LIBERDADE DA CURA

    A LIBERDADE DA CURA

    Brasília está mais luminosa nessa manhã e uma brisa fresca parece envolver os que estão atentos.

    Algo lembra um quadro de Tarsila do Amaral em cena e cores, numa mistura dos Operários com Abaporu, uma escuta e expectativa. Se o Estado brasileiro é um homem que come gente, aqui na capital agora são dezenas de mulheres que trazem vida, dezenas de indígenas vindas de todas regiões do país e representando os 34 Conselhos Distritais de Saúde Indígena, para a primeira etapa da I Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas, iniciado no Memorial dos Povos Indígenas, neste domingo.

    É tempo de direcionamento e fortalecimento nas causas indígenas e com suas mulheres não seria diferente. Estamos em Brasília, onde ocorrem muitas doenças, diz o anfitrião do espaço onde acontece o evento, Álvaro Tukano, como uma provocação aos desafios desses tempos.

    “Antes só os homens saiam da aldeia e viajavam em representações. Agora a mulher está falando, estamos tomando nosso espaço. Agora é o momento de os homens nos ajudarem, carregar água, carregar mandioca. O rio saudável segue livre, e como essa água de rio temos que ir livres. Muitas vezes o rio muda seu curso, assim temos que seguir, entre curvas.” Iolanda Kauwonó Makuxi  

     A palavra inicial é cura e o objeto é a saúde. Garantir a participação das mulheres indígenas na Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, realização do Conselho Nacional de Saúde, prevista para agosto deste ano, e a representatividade e especificidade da saúde das mulheres indígenas é o foco. As representantes e suas etnias afirmam que não querem mais serem apenas convidadas a participar, que estão cansadas de cortesias e querem sim serem delegadas na conferência, terem direito a voto.

    O mundo mudou e nas aldeias o novo invade e o admirável se furta. O que se revela nas mãos decididas das mulheres e na voz firme é a segurança para a vida e antigos conhecimentos de cura. Sem as mulheres não existiria o mundo, afirmam elas. Quem seria mãe ou parteira de todos, indagam sempre. Sexo frágil é mentira de branco.

     

    Nesta primeira fase, representantes de cada um dos 34 Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) irão expor suas necessidades de saúde, além de discutir temas considerados prioritários para serem debatidos nas plenárias. A Conferência segue até o dia 27 de abril e contará com a participação das mulheres indígenas que vierem a Brasília para o Acampamento Terra Livre, inclusive com a realização dos debates no mesmo espaço do ATL, no Eixo Monumental.

     

     

     

  • Brasília 2016: quando 1964 se repete

    Brasília 2016: quando 1964 se repete

    Texto e fotos por Isis Medeiros, especial para os Jornalistas Livres

    Já faz alguns dias desde que chegamos de Brasília, mas só hoje percebi que a ficha tinha caído. Depois de acordar de um sono turbulento, eu me assustava com um barulho qualquer dentro do quarto e então senti dores por todo o corpo. Vivi os últimos dias como se fossem um só porque o sentimento é de como se aquele pesadelo de horror visto na última terça-feira (29), em Brasília, ainda não tivesse acabado – e sabemos que de fato  ele não acabou! É mais real do que imaginávamos, mas só me dei conta da dimensão daquela violência e o quanto a aprovação do Proposta de Emenda Constitucional 55 está sendo escondido pela mídia tradicional por seus velhos métodos, que insistem em mostrar somente os estragos físicos deixados naquele cenário, julgando os manifestantes como vândalos, responsáveis por toda violência. Bateram na tecla em mostrar para a população que os danos aos monumentos públicos foram os maiores estragos daquele dia, desconsiderando a pauta mais importante e escondendo a gravidade da aprovação da votação em primeiro turno do “pacote da desigualdade”, que vai congelar por 20 anos os investimentos sociais e  acentuar, gradualmente, a desigualdade social no país sem que as pessoas saibam a origem de tamanho retrocesso.

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    Enquanto lá de dentro do Congresso Nacional faziam coquetéis luxuosos, do lado de fora milhares de secundaristas, universitários, professores de inúmeras instituições de ensino, movimentos sociais, partidos políticos e outros grupos organizados de todo país, manifestavam contra a medida proposta. Estavam ali reunidos, em grande maioria, estudantes que ocuparam mais de mil escolas, universidades públicas e instituições de ensino em todo o Brasil. Grande parte desses espaços educativos ocupados nos últimos meses tiveram aulas convencionais suspensas e deram espaço à resistência de jovens cidadãos que forjaram dia a dia um novo cenário nunca visto antes na história do país. Alunos e professores saíram das salas de aulas e se abriram para a maior experiência de troca de saberes ao debater sobre a politica nacional, cultura, esporte, alimentação, lazer, questões ideológicas de gênero, além das opressões estruturais como racismo, machismo, lgbtfobias e, principalmente, sobre os novos rumos do ensino médio, com a MP 746 proposta pelo Ministério da Educação.

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    Passavam dias em convívio, experimentando formas de socialização e organização, como nunca feito antes. Os estudantes foram os únicos capazes de nacionalizar a pauta da educação, provocando o questionamento dentro e fora das salas de aula. No último dia 29, não foi diferente em Brasília. A votação da PEC 55 trouxe jovens de todo Brasil para acompanharem de perto os desdobramentos da votação da medida que coloca em risco direitos previstos pela Constituição de 1988. 

    A PEC proposta não atinge somente a educação pública e gratuita, mas também a saúde pública e todos os programas de incentivo à pesquisa, ciência e tecnologia, bem como políticas sociais criadas na gestão dos governos anteriores como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Pronatec, Fies, Prouni e mais adiante Previdência Social, também alvo de futuras reformas prejudiciais ao povo trabalhador.

    Já se sabia que barrar a aprovação de tal medida no atual cenário de golpe não seria fácil! Temer já demonstrou que não governa para o povo, mas prioriza a iniciativa privada, os grandes bancos e empresários. Muito tem se ouvido do atual governo e de seus aliados que “A Constituição não cabe no orçamento”. Usam esse argumento como pretexto para cortar do povo garantias de direitos básicos conquistados, agravando cada vez mais as desigualdades.

    Está aí o grande motivo de se intensificarem as lutas e disputas contra o atual governo, não eleito por voto popular. O que os estudantes logo compreenderam é que quando se mexe em direitos, as áreas da saúde e educação são as primeiras a sofrerem cortes. Essa instabilidade e ameaça levaram milhares de jovens, professores, profissionais de diversas áreas da educação à Brasília.

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    O dia começou animado com concentração em frente ao Ministério da Educação e lá elas e eles se prepararam durante todo o dia com bandeiras, camisetas, adesivos, ensaiavam músicas, batuques e performances artísticas, compartilhavam alimentos, gritavam palavras de ordem e cantavam marchinhas com a temática que denunciava a PEC e os retrocessos do governo ilegítimo.

    Corria tudo bem e animado, uma alegria natural da juventude. Do Museu ao Congresso, as organizações gritavam juntas por uma única causa: “Barrem essa PEC ou paramos o Brasil!” Não se sabe ao certo o número de manifestantes que marchavam juntos, mas o que se viu foi o preenchimento rápido e colorido de todo o gramado em frente ao Congresso Nacional.

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    E, por poucos minutos, permanecemos ali diante dos inúmeros cordões policiais da Força Nacional, que já cercavam todos os espaços de acesso à Casa.

    Dezenas deles cercavam os prédios, já preparados para atacar à qualquer sinal de afronta. Vi aquela cena toda se formando de cima do gramado e me preenchi por uns segundos de orgulho por ver a juventude, que há anos não se envolvia em questões políticas, unida por um motivo tão importante, definidora dos próximos 20 anos.

    Pensei no quanto aquele movimento poderia ser ainda maior se a maioria da população que terá seus direitos arrancados estivessem conscientes dessa ameaça.

    Não teria espaço naquela cidade para comportar tanta gente contra essa aprovação. Foi nesse momento que me despertei para o primeiro estrondo, e outro e mais um… Até que vi um carro da TV Record tombado longo em frente ao espelho d’agua.

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    A Polícia disparava bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. As pessoas corriam desesperadas de um lado para o outro, gritando assustadas e sem rumo, em busca de refúgio onde pudessem escapar das bombas e dos tiros que eram disparados por todos os lados. Eu não acreditava no que via. Essa não foi a primeira, nem segunda, nem milésima manifestação em que eu faço cobertura fotográfica na rua, mas sem dúvidas foi a mais rápida até o início da repressão policial. A multidão corria, as mães arrastavam os filhos pequenos tentando protegê-los enquanto várias pessoas ficavam para trás sem conseguir correr e sair dali. Outros caíam pelo chão quase asfixiados com o gás e eram carregados por outros que prestavam socorro e tentavam acordá-los. Grupos que não se afastaram da zona principal de atuação dos policiais cercavam a área e distraiam o efetivo para que não avançassem mais sobre os manifestantes.

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    Utilizavam então cones de trânsito, placas, paus, grades e tudo que encontravam pela frente para criarem barricadas de proteção aos atingidos que se encontravam feridos e sem consciência pelo gramado. Quem passava inocentemente pelo local também era abordado, agredido e preso de forma violenta pela polícia. Vi naquele momento cenas inesquecíveis de solidariedade e atenção entre as pessoas, principalmente os mais jovens que socorriam crianças, idosos e mulheres. Muitos colocavam a vida em risco na tarefa de resgatar nos próprios ombros os que encontravam desacordados pelo gramado passando mal com o efeito dos gases, dos estilhaços e do descontrole psicológico de uma grande parte que corria atordoada com a explosão das bombas.

    Definitivamente, não havia espaço para o diálogo e negociação e isso foi algo também inédito diante de tudo que já vi. Em quase todos os atos em que estive fotografando, inclusive os que tiveram ação truculenta da polícia, houve diálogo para cessar a ação e recuo dos manifestantes, sempre acordada entre comandante da Polícia e dirigentes das organizações e movimento sociais. Dessa vez não houve. O que vimos foi uma ação desmedida, irracional e extremamente truculenta da Polícia contra todos aqueles que, minutos atrás, lutavam juntos por direitos, inclusive o de manifestar democraticamente.

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    Acima de nossas cabeças, três helicópteros sobrevoavam com um barulho ensurdecedor. De todos os lados policiais cercavam o pátio de guerra e, a frente, viam-se o Congresso e os Ministérios cobertos por uma fumaça preta. Por onde eu corria para me esconder encontrava grupos de pessoas assustadas chorando, uma correria sem fim.

    Não vi ambulâncias, não encontrei nenhum parlamentar vindo dialogar com a Polícia para cessar aquela barbaridade, nem mesmo vi alguém vindo prestar socorro às vítimas, além dos próprios jovens e professores que iam recolhendo os alunos que encontravam pelo caminho.

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    Ao mesmo tempo, a Polícia avançava em direção aos manifestantes que esperavam de longe alguma notícia e formas de sair daquela zona. Já estávamos há quase um quilômetro fugindo daquele ataque incessante e covarde e eles ainda cercavam a passagem para que ninguém pudesse passar em direção ao Congresso. As bombas não paravam de estourar por todos os lados. Listas e listas circulavam nas mãos de diversas pessoas à procura dos desaparecidos e foi aí que começaram a ir até delegacias e hospitais à procura deles.

    Até quando vamos esperar uma tragédia maior acontecer para que o povo seja ouvido?

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    Brasília virou um cenário de um Brasil que eu só tive oportunidade de conhecer através dos livros de história e fotografias que resgatam tempos de ditadura e censura militar.

    Ao ver diante dos meus próprios olhos aquele cenário de guerra se materializando, ficavam passando na cabeça, o tempo todo, filmes de um passado não tão distante, com cenas de repressão e tortura, que já assisti anos atrás, mas que a cada dia se fazem mais presente.

    O que restavam ali eram estilhaços de bombas por todos os lados, um cenário em chamas, tudo cinza, morto! E toda falta de cor daquelas paredes do cenário monumental projetado por Niemeyer deu lugar à indignação das frases de denúncias e revoltas desenhadas nas paredes, uma denúncia pelo desejo de um povo que não aceita mais o silêncio diante da perda de direitos e liberdade.

    Falta pouco menos de um mês para que a PEC 55 seja então aprovada pelo Senado. Há alguns que acreditam que já está dado o fim, mas pra essa nova juventude que se formou, essa história de luta está só começando.

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  • A covardia da polícia e a inocência dos estudantes

    A covardia da polícia e a inocência dos estudantes

    Como toda manifestação estudantil, a de ontem não foi diferente. Tudo começou como esperado, muitas palavras de ordem, muita alegria característica da juventude e uma grande inocência em barrar a PEC da Desigualdade no Senado com pouco mais de 20 mil pessoas. Todos gritando pela mesma causa: Fora Temer e contra a PEC 55. Na manifestação, não havia os famosos coxinhas com seus charutos, prosecco, filé mignon, nem empregadas empurrando o carrinho de bebê ou fazendo selfies com a polícia. São jovens politizados que nos últimos anos tiveram acesso a educação de melhor qualidade e hoje sabem dos seus direitos e o que querem. Não vieram a Brasília, depois de passar vários dias dentro de um ônibus, dormir em barraca, para brincar de fazer manifestação. Eles são o futuro do Brasil. Entendem o que o governo golpista está promovendo em nosso país. São valentes e mostraram que a luta só está começando.

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    Ontem foi um dia de protesto na Esplanada. Começou no MEC pela manhã e à tarde o grande ato que acabou com a violência desmedida da polícia. Cada grupo de estudantes que chegava ao Museu da República, local da concentração, era recebido com alegria. Reuniam-se em rodas e preparavam-se entoando jograis e ensaiando intervenções. Um grito de guerra contra o governo Temer estava em cada um deles. Eram grupos de diversas regiões, diferentes sotaques eram ouvidos.

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    Até a saída da caminhada, havia uma divergência sobre como seria a marcha até o Congresso Nacional — talvez essa falta de unidade tenha contribuído para que os verdadeiros vândalos se infiltrassem e, por fim, para a dispersão do ato diante da truculência policial. Uma manifestação sem ninguém coordenando abre uma porta para os baderneiros da hora.

    Para entender o que aconteceu, o bom jornalismo precisa fazer as perguntas que não querem calar. Aí vão elas:

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    12 PERGUNTAS QUE NÃO QUEREM CALAR

    1. Quem são esses baderneiros que chegaram a jogar coquetel molotov na polícia a menos de 30 metros e não foram reprimidos?

     

     

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    2. Algum estudante conhece pelo menos um que participou do quebra-quebra?

     

     

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    3. Por que a polícia não fez a revista de sempre, como acontece em todas as manifestações dos movimentos sociais?

     

    4. Por que a polícia não proibiu carros estacionados na Esplanada, como sempre faz quando vai haver uma grande manifestação?

     

     

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    5. Por que a polícia não prendeu os agitadores que começaram a baderna virando um carro de uma emissora?

     

     

    6. Por que só tinha um carro de imprensa onde todos os dias ficam parados vários de todas emissoras?

     

     

    7. Por que a polícia não saiu batendo nos vândalos como sempre faz e só resolveu jogar bomba de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e de efeito moral nos estudantes?

     

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    8. Por que a polícia não saiu dando cacetadas em todos, como gosta de fazer mesmo quando não tem motivo?

    9. Por que a polícia avançava jogando bombas, ameaçava com a cavalaria e recuava, quando os estudantes corriam?

     

    10. Por que os policiais deixavam os baderneiros construírem barricadas com placas de sinalização, lixo e o que encontravam e não reprimiam?

     

     

    11. Por que deixaram colocar fogo em um carro Audi de mais de R$ 200 mil e não fizeram nada, já que estavam a menos de 40 metros?

     

    12. Quanto o governo golpista gastou ontem com todas as bombas que foram lançadas?

     

     

     

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    Quando estávamos nos preparativos da Copa do Mundo no Brasil em 2013, o Exército fez uma demonstração de como agiriam em caso de manifestação violenta contra o evento. Tudo foi armado em uma área de setor policial sul em Brasília. Quando chegamos para cobrir a “manifestação”, fiquei de cara como os atores que seriam os personagens contra a Copa, pareciam com os baderneiros de ontem. Como eles agiam, como se vestiam, como se comportavam, provocando a Polícia. Na apresentação do Exército, todos sabiam que não seriam reprimidos e fizeram a cena muito bem.

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    Ontem, quando fotografava os arruaceiros infiltrados, lembrei dos soldados da “manifestação-teatro” de antes da Copa. A “cena” foi a mesma, eles provocavam a PM, que jogava bomba, ameaçava com a cavalaria e recuava. Depois, começava tudo de novo, barricadas, bombas, reação dos baderneiros e corre-corre. O “gran finale” foi a polícia dispersando todos, principalmente quando anoiteceu, depois de ter vários motivos provocados pelos ”manifestantes”.

    Ontem, não foi diferente.

    Antes de começar a caminhada, um mascarado foi preso com acusação de porte de arma branca. A polícia mostrou seu troféu, um canivete, segundo eles, do manifestante. Será que era manifestante mesmo ou um infiltrado?

    O roteiro seguiu como o de sempre –caminhada e chegada no gramado do Congresso. Quando os últimos participantes chegavam no gramado em frente ao Congresso, a baderna começou, alguns viraram o carro da TV Record, a poucos metros da polícia. A polícia não reprimiu os baderneiros como sempre faz. Em vez disso, começou a jogar bombas para todos os lados, com o propósito claro de provocar tumulto e correria. Parecia uma ação coordenada. Veja no filme que no começo da caminhada todos estão com o rosto descoberto e só os baderneiros têm as faces cobertas.

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    Veio na memória o bardenaço de 84, no governo José Sarney, quando rolou um quebra-quebra muito parecido com o de ontem. Era a época da redemocratização e os militares ainda não queriam largar por completo o poder. A imprensa não era golpista e fazia jornalismo. No dia seguinte ao badernaço, toda a mídia começou uma guerra contra os baderneiros e foram atrás na tentativa de identificar todos eles pelas fotos. Só um pobre funcionário dos Correios, que foi fotografado jogando uma pedra em uma loja no setor comercial sul em Brasília foi identificado. Todos os outros, ninguém conhecia. Depois, ficamos sabendo que eram militares (P2) de outros Estados. Ontem, a ordem era avançar, como o comandante da operação dizia para os deputados que tentaram parar a ação truculenta e não conseguiram. Só resta uma certeza, sem a permissão do governador ou do Palácio do Planalto, a polícia não teria feito o que fez.

    Vamos voltar para rua –é a única saída.