Hoje o México está de luto. Há um ano, durante a noite de 26 de setembro e a madrugada de 27, policiais federais e municipais de Iguala perseguiram e atacaram estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa. Deixaram um saldo macabro de pelo menos nove pessoas mortas
As tardes em Guadalajara eram sempre longas; o café da manhã era às 11h e o “almuerzo” ficava pra depois das duas. Moravam eu, Lulu, Cauan, Francieska e Laura na Kasa Mezquitan, a mais bonita do bairro. Paredes vermelhas, flores e folhas verdes pelo ambiente e uma arquitetura tradicionalmente mexicana. O sol batia forte perto do meio dia e, quando chovia, era preciso correr para não se molhar entre o caminho quarto-cozinha.
Não me recordo o dia da semana, quando cheguei em casa para a primeira refeição do dia e a dona da casa, Lulu, contou sem muitos detalhes sobre um desaparecimento de 43 estudantes em alguma cidade mexicana — até então desconhecida para mim.
“Como somem 43 estudantes e ninguém tem uma resposta?”, eu mal imaginava que essa pergunta estaria sem resposta até hoje, um ano depois do desaparecimento.
Nesse momento senti falta de uma televisão na casa que eu vivia. Queria muito ver como a televisão ia mostrar o caso. Mas eu só encontrei televisão, dias depois, na casa do Don Rami. Um lugar simples, caseiro e com o melhor taco com frijoles de Zapopan. Nem na casa dos amigos, nem na universidade, nem nos bares que eu frequentava eu encontrava tv — o que na verdade não me fez falta.
No outro dia todos só falavam dos estudantes. Eu nem bem tinha passado pelo portão do Centro de Artes, Arquitetura e Design da Universidade de Guadalajara, onde eu estudei durante 6 meses em 2014, quando uma colega de classe me perguntou se eu já estava sabendo do caso dos alunos da escola de Ayotiznapa, em Guerrero. Eu disse que sim, mas perguntei se ela não poderia me explicar de novo. Fiz isso várias vezes. Sempre dizia, “sim, eu vi que os estudantes desapareceram! Mas você sabe o que aconteceu?”.
Apesar de sites pelo mundo todo começarem a noticiar o desaparecimento dos estudantes, eu sentia como se ninguém quisesse falar em voz alta do motivo de tudo isso. Professores citavam, amigos indagavam, mas as conversas eram no canto dos corredores ou em voz baixa pela rua. Só era diferente nas manifestações.
A primeira que eu acompanhei — e uma das primeiras em Guadalajara — foi no dia 8 de outubro. A Lulu, dona da casa onde eu morava, recebeu o convite pelo Facebook e me avisou mesmo que com um certo receio, pois ela sabia que estrangeiros não podiam frequentar protestos. Vesti minha saia mexicana, soltei meu cabelo escuro e encaracolado, peguei minha câmera e fui. As alemãs que moravam comigo foram até o ponto da saída do protesto e decidiram voltar — realmente, se essa história de estrangeiro fosse levada a sério, era melhor elas não estarem por ali.
A rua estava tomada. Famílias, homens, mulheres, crianças e idosos cuparam a Calzada da Independencia no centro da cidade, uma das ruas mais movimentadas de Guadalajara. Os rostos dos estudantes também estavam ali, nas camisetas dos manifestantes, em forma de cartazes, pedidos de justiça e palavras de ordem (“vivos se los llevaron, vivos los queremos” e “ayotzinapa vive, la lucha sigue”). Conforme a noite ia caindo, milhares de velas refletiam os rostos de cada um que levava o seu copo iluminado.
Chegamos até a Plaza de la Liberación, onde todos deixaram suas velas e escutavam o que os líderes de movimentos falavam. A cena era como de um filme triste. Minutos de silêncio pelos estudantes, gritos pela aparição imediata, lágrimas que caíam entre gritos de justiça. Não era a primeira vez. Todos que estavam ali sabiam que não era um caso isolado.
Entretanto, a visibilidade que se deu ao caso dos estudantes se deve, principalmente, ao fato de não terem sido dois, seis ou 15 desaparecidos. Foram 43! No México, desde 2006, mais de 22 mil casos de pessoas desaparecidas foram registradas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), sem contar os que não foram denunciados.
Depois do dia 26 de setembro, pelo menos duas vezes por mês as ruas de Guadalajara eram tomadas por alguma ação por Ayotzinapa. Ninguém aceitava o que estava acontecendo e, muito menos, as respostas oficiais do governo. Alguns dos primeiros boatos foram de que os ônibus dos estudantes que seguiam em direção à cidade de Iguala foram barrados, numa tentativa de evitar uma manifestação durante o comício de Maria Los Angeles Pineda, mulher do ex-prefeito da cidade.
Porém, a versão oficial do Governo diz que os jovens foram pegos por policiais corruptos e entregues à facção “Guerreros Unidos”, que mataram e queimaram os estudantes em um lixão, acreditando que eles fossem membros de uma facção rival, “Los Rojos”.
E, mais recentemente, no relatório finalizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), se comprovou a impossibilidade da queima dos jovens nesse lixão, pois, entre outros motivos, não existem restos mortais e tampouco qualquer resquício que evidencie a versão oficial. Uma outra versão soltada pela imprensa seria de que drogas foram colocadas em um dos ônibus, o que teria sido o motivo para serem parados. Mas nada justifica o que ocorreu.
Entretanto…
Lembro de quando fui tomar um chocolate — não tomo café — com um jornalista que conheci nas marchas. Ele sempre estava lá, com sua caneta e caderno escuro, olhava para mim com um olhar curioso e nós nunca nos falávamos. Até que certo dia, por ter conhecido o fotógrafo que trabalhava com ele, nos falamos, e, desde então, as marchas se tornaram mais divertidas.
E além disso, foi ele quem me ajudou a compreender que o verdadeiro motivo do ataque aos estudantes é o medo. As Escolas Normalistas no México foram criadas em 1926. A estrutura é simples, os alunos são internos e dividem seus quartos e refeitórios. A Escola de Ayotzinapa, que teve Lucio Cabañas — revolucionário e fundador do grupo armado Partido dos Pobres, que lutava contra despejos forçados e a desigualdade principalmente de camponeses — como aluno e professor, assim como diversas outras escolas rurais do país, tem a fama de “formar guerrilheiros”.
As escolas foram criadas para formar professores que pudessem atuar como líderes comunitários nas áreas mais precárias do país. Quase todos os alunos são de famílias indígenas, camponesas ou moradoras de bairros pobres.
Fabian Soares Lopes, estudante da Escola Rural Normal de Ayotzinapa, com o qual pude conversar numa manifestação em Guadalajara, confessa, em voz baixa e me permitindo fotografa-lo apenas sem mostrar o rosto — “não quero ser o 44” — como é degradante o estado da escola. “A estrutura e as salas estão em péssimas condições. Às vezes, nem o colchão onde dormimos serve, está bem destruído”.
Após uma mudança do governo mexicano em relação às regras do financiamento escolar, as escolas têm que sobreviver quase que totalmente de doações arrecadadas pelos próprios estudantes. Das 36 escolas rurais formadas no início do século passado no México, hoje só existem 17. Casos de mortes e desaparecimentos são comuns ao longo do tempo de existência das Escolas.
Em Ayotzinapa, dois alunos foram assassinatos em 2011. Os seus estudantes têm uma presença importante na vida política e pública no estado de Guerrero, participam em manifestações e possuem relações com organizações civis, polícias comunitárias, professores e camponeses. Além de terem realizado diversos posicionamentos públicos e políticos sobre assassinatos de ativistas e prisões de líderes da região, em um constante protesto contra o modelo econômico do país.
Guerrero
Antes de eu voltar pro Brasil, saiu uma edição especial da Revista Proceso sobre o caso dos estudantes. Um emaranhado de reportagens sobre o caso que já haviam saído na revista junto com novas descobertas. Lembro que eram meus últimos dias no México e eu estava naquela pressa para conseguir encontrar uma lembrancinha para meus amigos mais próximos, quando passei por uma banca e vi “Una historia de corrupción, barbarie e impunidad”.
El gobierno sabía, Complicidades y mentiras, Los que no existen, Heridas nacional… O estado de Guerrero é tomado pelo narcotráfico, sendo algumas regiões proibida a entrada de representantes do governo. O secretário de comissões legislativas de Assuntos Indígenas, Agraria e Turismo afirma que diante da incapacidade do governo do estado para enfrentar a violência, “criaram-se polícias comunitárias em diversas cidades”. E foram os integrantes desses grupos, que se desenvolveram na União dos Povos e Organizações do Estado de Guerrero (UPOEG), que descobriram fossas com corpos enterrados durante a busca pelos estudantes.
Os representantes estudantis da escola de Ayotzinapa também compartilham da opinião de que não existe apenas um culpado. “Não culpamos o narcotráfico, porque eles e o governo são a mesma coisa”.
Marchas e Protestos
Devido principalmente à falta de respostas, uma caravana com os familiares dos estudantes desaparecidos, o Comitê Estudantil de Ayotzinapa e as organizações de direitos humanos que estão acompanhando o caso, passaram, em novembro de 2014, pelas principais cidades do país buscando repassar a verdadeira informação sobre o caso. Guadalajara foi uma delas.
Era uma terça-feira de sol, como geralmente eram as tardes por lá. Os pais chegariam perto das 14h e o encontro seria na Universidade de Guadalajara (UDG). Antes, uma coletiva de imprensa. Depois, um momento para pais e estudantes compartilharem os fatos.
Foi difícil segurar as lágrimas. O ônibus chegou perto do horário marcado e, pouco a pouco, a tristeza tomou cara, braços e pernas. Já não eram mais os estudantes lá de Guerrero desaparecidos. Era como se aqueles, estampados nas camisetas de cada família, estivessem ali. Era por eles que mães e pais criaram forças para andar pelo país e passar a verdadeira história de Ayotzinapa. Eram pais que transformaram suas lágrimas em voz.
“Nos fazem mais fortes quando vemos que todos vocês estão junto com a gente e querem que tudo isso se resolva. Nossa prioridade agora é que nossos filhos regressem com vida”, afirma J., pai de um dos estudantes.
No fim do dia a caravana seguia para a Cidade do México, para se encontrar com as outras caravanas espalhadas pelo país, na grande marcha nacional no dia 20 de novembro do ano passado.
Um ano
Hoje, 26 de setembro, as ruas do México vão estar tomadas em busca de uma resposta concreta pelo caso, que ainda não tem uma versão que se possa confirmar ou tão pouco compreender.
Até agora, três corpos foram identificados e um dos ativistas responsáveis pela investigação do crime, integrante da polícia comunitária de Guerrero, foi encontrado morto com um tiro na cabeça dentro de um táxi. Toda as provas estão sendo anuladas, escondidas ou modificadas.
E a razão disso é simples: Ayotzinapa foi um crime de estado. O que reflete numa crise intensa do sistema de justiça mexicano, que já conta com uma violação permanente dos direitos humanos.É muito importante que falemos sobre o que ocorreu. Principalmente em um país como o México, onde na última década foram registrados 1183 agressões a jornalistas que documentam movimentos sociais, além de 130 mortos e 38 desaparecidos, não podemos ficar calados.
É preciso que todos saibam o que acontece na nossa América Latina. Nenhuma mãe precisa passar pelo sofrimento de vestir uma camiseta com o rosto de seu filho desaparecido. “Nin uno más”!
A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.
Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes.
A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial
A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.
“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.
Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán—, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.
O novo ciclo
A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.
O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.
Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.
A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.
Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.
Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)
Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.
Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.
Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.
Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.
Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019,pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.
Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.
Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.
Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).
A LEI ATUAL
Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.
A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos. O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.
Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.
Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.
Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.
Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.
Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.
Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.
Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.
DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES Buenos Aires, 18 de outubro de 2020
Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia. Viva a Bolívia! Evo Morales