Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • Boaventura de Sousa Santos – A Cruel Pedagogia do Vírus

    Boaventura de Sousa Santos – A Cruel Pedagogia do Vírus

    Ler Boaventura dá certo alento, não porque doce, mas porque venta na mente, sem rodeios faz rodar ideias como sacam água da terra os moinhos de ar. Iniciamos aqui a republicação, em cinco capítulos e edições, das reflexões do pensador português, pois ventilar e compartilhar é preciso, como navegar.

     

     

    por Boaventura de Sousa Santos

     

     

     

     

     

     

    Capítulo 1

     

    Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar

     

    Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente que nos permitem conhecer ou relevar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?

    A normalidade da excepção. A actual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a década de 1980– à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro–, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim obsta a que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O objectivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo? Basicamente, são dois: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. Assim temos vivido nos últimos quarenta anos. Por isso, a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica periculosidade. Em muitos países, os serviços públicos de saúde estavam mais bem preparados para enfrentar a pandemia há dez ou vinte anos do que estão hoje.

    A elasticidade do social. Em cada época histórica, os modos de viver dominantes (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana. É verdade que eles se vão alterando paulatinamente, mas as mudanças passam quase sempre despercebidas. A irrupção de uma pandemia não se compagina com esta morosidade. Exige mudanças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos centros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se quer mas que só se pode obter por outros meios que não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível.

    A fragilidade do humano. A rigidez aparente das soluções sociais cria nas classes que tiram mais proveito delas um estranho sentimento de segurança. É certo que sobra sempre alguma insegurança, mas há meios e recursos para a minimizar, sejam eles os cuidados médicos, as apólices de seguro, os serviços de empresas de segurança, a terapia psicológica, as academias de ginástica. Este sentimento de segurança combina-se com o de arrogância e até de condenação para com todos aqueles que se sentem vitimizados pelas mesmas soluções sociais. O surto viral pulveriza este senso comum e evapora a segurança de um dia para o outro. Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim criase com ela uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia do termo pandemia diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?

    Os fins não justificam os meios. O abrandamento da actividade económica, sobretudo no maior e mais dinâmico país do mundo, tem óbvias consequências negativas. Mas tem, também, algumas consequências positivas. Por exemplo, a diminuição da poluição atmosférica. Um especialista da qualidade do ar da agência espacial dos EUA (NASA) afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição numa área tão vasta. Quererá isto dizer que no início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da destruição maciça de vida humana? Teremos perdido a imaginação preventiva e a capacidade política para a pôr em prática?

    É também conhecido que, para controlar eficazmente a pandemia, a China accionou métodos de repressão e de vigilância particularmente rigorosos. É cada vez mais evidente que as medidas foram eficazes. Acontece que a China, por muitos méritos que tenha, não tem o de ser um país democrático. É muito questionável que tais medidas pudessem ser accionadas ou accionadas com igual eficácia num país democrático. Quer isto dizer que a democracia carece de capacidade política para responder a emergências? Pelo contrário, The Economist mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas como as democracias estão cada vez mais vulneráveis às fake news, teremos de imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo.

    A guerra de que é feita a paz. O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nos media ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China. As más condições higiénicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimentares dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na origem do mal. Subliminarmente, o público mundial era alertado para o perigo de a China, hoje a segunda economia do mundo, vir a dominar o mundo. Se a China era incapaz de prevenir tamanho dano para a saúde mundial e, além disso, de o superar eficazmente, como confiar na tecnologia do futuro proposta pela China? Mas terá o vírus nascido na China? A verdade é que, segundo a Organização Mundial de Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. É, por isso, irresponsável que os meios oficiais do EUA falem do «vírus estrangeiro» ou mesmo do «coronavírus chinês», tanto mais que só em países com bons sistemas públicos de saúde (os EUA não são um deles) é possível fazer testes gratuitos e determinar com exactidão os tipos de influenza ocorridos nos últimos meses. Do que sabemos com certeza é que, muito para lá do coronavírus, há uma guerra comercial entre a China e os EUA, uma guerra sem quartel que, como tudo leva a crer, terá de terminar com um vencedor e um vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente neutralizar a liderança da China em quatro áreas: o fabrico de telemóveis, as telecomunicações de quinta geração (a inteligência artificial), os automóveis eléctricos e as energias renováveis.

    A sociologia das ausências. Uma pandemia desta dimensão provoca justificadamente comoção mundial. Apesar de se justificar a dramatização, é bom ter sempre presente as sombras que a visibilidade vai criando. Por exemplo, os Médicos Sem Fronteiras estão a alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria), há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os internados não podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível. Como estas condições prevalecem igualmente na fronteira sul dos EUA, também aí está a América invisível. E as zonas de invisibilidade poderão multiplicar-se em muitas outras regiões do mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de nós. Talvez baste abrir a janela.

    *Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça.

     

  • Doria prorroga quarentena para dia 22 de abril

    Doria prorroga quarentena para dia 22 de abril

     

     

    22 de abril é o Dia da Terra, da fibra ótica e do Acordo de Paris.

     

     22 de abril, também, na história se afirma. Acharam o Brasil, e nele, pisaram os homens barbudos, fedidos, doentes.

    Joseph Mallord William Turne

    Em 2020, após 519 anos, há isolamento social entre milhões. Há desavenças, discórdia entre governantes. Padres, pajés e pastores, pais de santos, sacerdotes diversos em um mix de ideologias , pandemia e um cardápio para genocidas e oportunistas, decidem um futuro, num planeta convalescente.

    Tal Brasil, sopa de etnias e imigração, aguarda, interroga, espanta. O agente invisível solapa certezas, redefine princípios, interroga os santos e seus algozes.

    A poesia insiste, a arte não cala, os tontos querem imiscuir-se. 

    Em 1500, no descobrimento, já se sabia dos perigos do contágio. Bom mesmo seria terem ficado em casa.

     

  • Turnê geral do vácuo

    Turnê geral do vácuo

    Meu amigo francês, logo cedo, me enviou imagem de Paris, o largo do Louvre. 

     

    Com menos encanto, fico pensando na ausência dos corpos na praça pública, a mecânica dos corpos e no que se alterou. Reforma ou revolução?

    Turnê geral do vácuo – Vincent Kelner©

    Isolado, recluso, morando só, há radical mudança de ritmo, movimentos de rotação, como os antigos discos de vinil, de 78, 45 e 33 rotações por minuto.

     

    Descubro regras adequadas para meu corpo rígido agora, isolado, explicações antigas, leis óbvias entre uma vadiagem e outra; que compartilho aqui:

     

    “Corpos Rígidos é o conjunto de partículas agrupadas de forma que a distância entre as partes que constituem o corpo ou o sistema não sofram mudança, ou seja, essas partículas não se alteram para um referencial fixado no próprio corpo.

     

    O corpo rígido executa os movimentos de rotação, translação ou os dois de forma combinada.

     

     

    Rotação: a observação do movimento da força aplicada ao corpo, como um pião rodando.

     

    Translação: é o movimento provocado por forças externas que agem sobre o corpo rígido.

     

    Equilíbrio estático

    É uma definição baseada no repouso, ou seja, na relação de determinado referencial externo, quando nenhuma partícula que o constitui se move em relação a um dado referencial. Em relação a esse mesmo referencial, caso as partículas apresentem movimento, o corpo rígido estará então em Equilíbrio dinâmico.

     

    As situações de equilíbrio sempre dependerão do referencial adotado, isso porque o estudo de um equilíbrio depende do outro.

    Momento de uma força

    É a relação entre a força aplicada a um ponto, também chamado polo, com o produto dessa mesma força por uma distância, considerando a intensidade da força e sua linha de ação.

     

    Pode-se definir como: módulo do momento da força como o produto do módulo da força pela distância.

     

    Sua representação matemática é: M=+-F.d

     

     

    Onde:

    M = momento ou torque de uma força

    F = Força

    d = distância

     

    Observações importantes:

    • Momento de uma força é uma grandeza vetorial (apesar de a definição abordar apenas sua intensidade).
    • Sinal positivo (+) representa o momento em que a força tende a produzir rotação no sentido anti-horário em volta do polo.
    • Sinal negativo (-) é adotado quando a força tende a produzir rotação no sentido horário em volta do polo.

     

    Equilíbrio de Corpo Rígidos

    O equilíbrio nos corpos rígidos acontece quando duas situações forem satisfeitas:

     

    1. Quando a força resultante que atua sobre o corpo for nula;
    2. Quando a soma dos momentos das forças que atuam sobre o corpo em relação a qualquer ponto for nula.

     

    Centro de Gravidade do corpo rígido

    É o ponto de aplicação do peso no corpo. Acontece como se todo o corpo estivesse ali concentrado.

     

    Em corpos homogêneos, a massa é distribuída de forma uniforme, e desde que o campo gravitacional seja também uniforme, o peso também será.

     

    Já em corpos não homogêneos ou de forma irregular, o centro de gravidade só é encontrado pendurando pontos do próprio corpo e, onde houver o cruzamento entre os pontos, ali estará o centro de gravidade.” ( Talita A. Anjos)

     

     

    https://brasilescola.uol.com.br/fisica/corpos-rigidos.htm

  • Das tentações e preces

    Das tentações e preces

     

    Vejo o Papa na tv, logo após o almoço, na sexta-feira, mas é entardecer no Vaticano. Há um silêncio profundo ferindo a imensidão da Praça São Pedro, demoro a entender a situação, pouco devoto que sou. É tão intensa a cena muda que me atenho. É a pandemia, logo me envolvo no coro sublime, agente invisível vozes cantam, tais anjos e querubins, arquitetura épica deserta de multidão.

     

    “Há semanas, parece que a tarde caiu. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador… Nos vimos amedrontados e perdidos.”

     

     

     

     

     

    É a homilia. 

     

    A pregação desses dias, o para ou não para dos homens, o vírus escancara nossas dívidas. Nossa concentração de renda e o disparate da má distribuição de lucidez entre os donos do poder evidenciam as incongruências da peste.

    Manifestante em frente à Prefeitura de São José de Rio Preto, durante buzinaço na cidade, pede reabertura do comércio.

     

    Ao mesmo tempo em que Francisco ora, tão distante, e as nações reforçam que a solidão é boa medida agora, aqui sei que alguns oram inverso, querem as multidões.

     

    Dá uma tristeza essa sexta-feira, tanta dissonância entre a razão e bom senso dos seres.

     

    https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/220809945645510/

     

    Imagens por Vaticano News, DL News e Vasily Surikov (1872)

     

    https://riopreto.dlnews.com.br/noticias?id=23998/buzinaco-em-rio-preto-pede-reabertura-do-comercio;-prefeitura-diz-que-segue-oms

  • Danos e donos da noite

    Danos e donos da noite

    É uma noite fresca de sábado, ouve-se o vento batendo nas árvores, pois os carros dormem todos, receosos da peste.

     

    A cidade envolve meus passos numa insegurança difícil de compreender, pois milhares de vezes andei nessas ruas; algo invisível vai na sombra sob a luz dos postes e dos seus transeuntes.

     

     

     

    Vejo novos objetos na calçada, a máscara, novo detrito a ingressar em nossos entulhos. Ouço cada passo que dou, como se fosse seguido por mim mesmo. Será que todos estão a assistir último capítulo de novela ou campeonato que desconheço, me alerta tal silêncio!

     

    Creio que não, há certa mudez no tom do medo dos homens nesse momento.

     

     

    O segurança e o garçon trocam ideias entre as mesas vazias, cerram as portas entre moradores de ruas e os motoboys nas farmácias têm o domínio da noite.

    No ponto final do ônibus e sua linha, ninguém espera, apenas Marielle, que não se sabe quem mandou matar, espera paciente a redução dos juros, solução que não apruma.

     

     

    https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/257990038549541/

  • O canto do Tuim

    O canto do Tuim

     

    Morreu Tuim, o velho nobre Kaiabi, Kawaiwete, artesão de cestos, remos e arcos, de fina pedagogia na condução de seu povo e contato com o mundo dos brancos.

    Imagem da deslocação e permanência Kaiabi, persistência Kawaiwete.

    Em certo momento de  boa fome, cansado de rio, encontrei o sorriso largo de Tuim, em 2003, na aldeia Samaúma, à beira do baixo Xingu, acompanhando médico amigo em vigilância à saúde indígena da área.  Tuim ofereceu uma perna tenra de porco assado em seu jiral, defumado na fumaça de pau caído na mata. Nunca esquecerei aquela carne de porco do mato, o apreço e seu sorriso largo. 

    Tuim, tão cortês conosco e com os seus, conduziu seu povo pelas terras do Xingu, no momento da diáspora Kaiabi, contava ele.

    Do óbito sei que finda o convívio, partilhas, mas há algo que persiste na partida de pessoas assim, mesmo que triste, uma sabedoria que não cede à morte.

     

    Onde cabe a poesia em hora assim?

     

    Fico pensando no acerto de contas, como fez Thiago de Mello e Manoel de Barros, os guardadores de águas.

     

    Quero escrever, não escrevo; recordo, abro antigos papéis.

     

     

     

    recorte de o Guardador de Águas, de Manoel de Barros