Dos antigos sabemos que o que se come é o que se pensa. Nem tão velhos assim comíamos comida original, quando palavra transgênico era fábula. Tudo tão rápido reverte, em nossos estômagos ainda se busca rumo e trama.
De tudo resta um pouco, nosso cheiro, um gosto, seus valores. Por mais que insista o mercado, ficamos indecisos ao saber do eterno das coisas e suas variantes sintéticas em outdoors e prateleiras. Saúde não é assunto de mercado ou planos de saúde ou suas vaidades. Precede moedas o fino saber de nossas células.
Atacaram com sal, açúcar e óleo. Ah, quantos sabores bons se perderam em martírio, mas resistem aqueles que em refúgio se nutrem, alimentação é tudo.
Nada crescemos na alma, dizem os índices, apenas os corpos inflaram-se no sal, açucares e óleos.
Seguem retos aqueles que em polvilho, farinha, caças, peixe e pimenta se põe. Essa vida é erva.
Se no horizonte há vida nova, em ponta de canoa seguem o leito. Não é agro, não é diet ou light, é terra e grão a vida sadia que insiste e se vigia e educa.
De tempos em tempos o homem se olha, sabe que é preciso mudar e seguir alerta, só os dasavisados insistem.
Diabetes é fogo que queima sem arder. O açúcar é cunha, o sal é a faca e o óleo é a espada. Após séculos de estufilhas e logros, a nova arma é o supermercado.
A barranca vermelha reluz ao crepúsculo que se anuncia, como carne na margem, morada de martins-pescadores e papagaios que, em furos na terra elevada, fazem seus ninhos. O Xingu vai juntando suas esposas ao longo de cada curva das águas e, galante, recolhe suas mulheres em diversos afluentes.
Nas águas douradas das tardes anda-se de bicicleta sobre seu manto, desafiando o grande abraço da serpente das fazendas em terras envolventes ao Parque Indígena.
O rio, pai solteiro das águas que no mar se casa, vai embalando as pretensões dos deuses, nossos mitos. Como entre os Orixás dos pretos, quando Erinlé transforma-se em rio e encontra Oxum, aqui é a cobra grande que fertiliza seus meandros e, tais peixes grandes, pulam de canto em canto, criando suas lagoas que acolhem as etnias em solos sagrados. As águas e as árvores, noivado que prima diversidade e mutualismo do fino convívio e fundamenta a tolerância.
Terras Indígenas, todos deveriam sê-las. Incompreensível furtar aos povos seu equilíbrio e tradições. O que resta de bom senso em meio ambiente insere-se entre os povos tradicionais e os que o zelam e os atribuem. Há muito, os grandes indigenistas nos deixaram e seus discípulos, alguns valentemente, ainda acalanta-nos, mas é necessária guarda, vejo bem. O Agro abraça.
Nada do que vejo entre as águas, nem os cachorros bravos das aldeias, seres sensatos naquilo que há de selvagem nos hábitos, nada comparável aos esquemas animais que nas cidades devoram os políticos e seus curruptores. Aqui o animal guarda e também vira alimento, nutre a vida.
Livre decassílabo, o Parque Indígena do Xingu, índio teorema em nossa psique, provoca medo do futuro que em nossa porta urbana bate. Lugar de pele ao sol, corpo nu em direito e constituição, em velocidade estonteante pousa, e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida, mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias, lembra baiano Caetano cantando.
Entre fortes mãos o nacional pesadelo dissipa áspera luz e vozes. Xingu insiste.
A motocicleta leva a mandioca da roça à casa para ser ralada e o polvilho dá o pão em folhas. Facilitar a vida é bom e os instrumentos são muitos ao cotidiano que insiste.
Recordo que chegávamos à beira, muitas seriam as horas sobre água lisa no motor cinquenta, cifra de tempo razoável ao percurso. Ir sempre surpreende as expectativas. Ir é verbo de movimento, aberto, contencioso que modifica a vida, pois nunca se volta o mesmo, seja qual for o motivo das partidas.
A cada minuto a terra acolhe, conhecimentos remotos desarmam preconceitos, quebram os parâmetros e impõem razões circulares. Nas cidades nos perdemos em vias, na Amazônia nos desconsolamos ao horizonte de falsas escolhas. Não temos nada entre a capital do país e as guerras do mundo. Evidencia-se quando estamos no mato, o frio consumo nos condena aqui.
Crianças brincam com flores de pequi. Mensagens daqui? Sei lá, o mundo andava tão confuso nas metrópoles de meu país, meses atrás até vi policiais com bombas atacarem os indígenas na capital, enquanto portavam flechas e arcos. Aqui o efeito moral das armas são imagens de brincadeiras com o ambiente e seus seres, desarmam qualquer reação que não seja a paz. O que nos ameaça entre os povos indígenas? Será a chuva que faz brotar e prescinde de financiamentos ou insumos?
Homens cobrem uma casa entre o universo mudo da aldeia, apenas trabalham em cooperação após legítimas trocas, sem bancos ou estatutos, apenas em entendimentos honestos para a vida em comunidade. Viver em vão não é espaço para povos tradicionais, de tudo se fia conduta e postura.
Futebol sem bola mostra-se incidente campanha dos Congressistas pela revisão dos territórios tradicionais, quando na aldeia nos pomos. Índio segue Romeu, de tal Julieta a Nação sempre pecou em suas falsas e espúrias necessidades de conquista do território e martírio de muitos. Ser indígena no Brasil é a honra estranha que carecemos, por mais que sopre o vento revanchista e machista desses ares de agora, em tempos de caça às bruxas. Eu te amo, sei bem, é expressão revolucionária em hora de ódio e preço.
Navega a canoa de tronco, em equilíbrio para os seus. Equilibra, flutua, conduz e farta.
Se um índio passa de repente entre paus, vestido nu para o dia da falta e em festa, não se assuste, é forte, é límpido, é honra. Quem foi que disse que ser moderno é ser mercado?
Há fogo na aldeia, grandes pratos de cerâmica e grelhas de ferro e arame se aquecem à chama dos paus, para o preparo do beiju e moqueamento do farto peixe vindo da lagoa mágica Ipavu. Na tradição dos índios Kamayurá, no Alto Xingu, entre tantas outras etnias aqui localizadas, suas diversas grandes lagoas significam mitos e antigas histórias em cosmogênese entre seus seres fantásticos, espetaculares nelas residentes e em ritos de passagem ilustram toda eficácia simbólica da rica mitologia indígena.
Minnie Mouse passeia no paraíso, enquanto crianças inventam um mundo, sem atropelos no descobrimento diário das possibilidades.
Há trânsito de crianças às margens e leves praias de areia se estendem, onde lavadeiras e seus panos e panelas, entre pequenos barcos aguardam vindas e partidas, num rush de atividades que prosseguem da alvorada ao crepúsculo. É momento de fartura entre muitos, pois o peixe e o polvilho rendem ao trabalho de todos boa safra, diferente do ano passado, quando diversas comunidades se precarisaram na oferta dos alimentos tradicionais da roça em virtude de forte e prolongada estiagem, e constantes incêndios em todo o Estado do Mato Grosso.
Mulher Kamayurá limpa os tucunarés nas águas da Lagoa Ipavu, local sagrado em suas gêneses e protegido por sucuris e seres mitológicos.
Na aldeia agora também se iniciam os ensaios para o Kuarup que se aproxima, ritual de choro e libertação de seus mortos, entes queridos. Esse ano, especialmente, entre outros, as etnias Kamayurá e Kalapalo e diversos grupos de convidados, homenagearão o médico Roberto Geraldo Baruzzi, um dos pioneiros, especialista em saúde indígena, que, no Parque Indígena do Xingu, implantou um programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina, há 53 anos atuando entre muitos povos. Dr. Roberto Baruzzi faleceu no ano passado, e seus amigos indígenas se despendem desse período de luto, entre outros entes, com grande e diversa festa ritualística.
Jovens Kamayurá iniciam período de treinos da luta Huka-Huka, para o Kuarup, luta tradicional na região do Alto Xingu.
Os dias na aldeia prosseguem assim, entre zelo e preciosidades, sem nada a fazer em tarde onde tudo acontece em seu lugar. Eu em certo início de tarde estava a banhar na lagoa e após lavar algumas roupas, nadava solitário e não sei se era pela visão da margem serena que pensava em verso do poetinha Vinícius e em fidelidade cantarolava:
de tudo ao meu amor serei atento, antes e com tal zelo, e sempre, e tanto, que mesmo em face do maior encanto dele se encante mais meu pensamento.
Mulheres desciam com seus filhos pequenos para as roupas lavarem também, mas de repente passaram a gritar para eu sair da água, voltar, pois a cobra grande elas estavam vendo. Eu prontamente atendi e me estimulei com o alvoroço repentino e inusitado. Da margem vi com elas os movimentos na água que em borbulhas agitava a lagoa serena. Sucuri é dona da lagoa e há de se tomar cuidado, aprendi bem, e zelar pelo seu mundo também, as águas profundas. Fui com alguns jovens após o inusitado fato, buscar ver a tal sucuri, fazer barulho na água para espantá-la, mas nada vimos.
Enfim Cobra Grande repousa e guarda. Kamayurá persiste.
Meus companheiros valentes e em aventura inusitada, buscávamos em vão a sucuri, dona da lagoa, e que nos retirou momentaneamente das águas e seus prazeres.
Como numa tarde meio bye bye brasil, sinto um país envergonhado. Novos casais trazem seus filhos nos braços e os pequenos estão curiosos. Há tantos jovens no Largo e seus bermudões, bonés e uma cara morena entre piercings, tatuagens e dreads. Os cinquentões também são muitos, e os cabelos grisalhos estão em nós, ainda crentes na democracia, sem se importar muito se bandeiras são verdes ou vermelhas.
A cara do presidente está à venda, estampada em tapetes para limpar os pés, pendurados na praça. Triste fim para a imagem de um político, Temer, pano de chão à venda na praça pública. Há uma paz geral e muitos apenas aguardam a tarde fria de sol passar em suas vidas; dez mil ou cem mil em multidão não muda muito o sentimento de espera de todos. Nem tanta alegria ou empolgação vejo na multidão.
São muitos e de poucas bandeiras, querem unir o país escondendo nossas divergências, se unem em música e cerveja na praça, gente bonita e libertária, metropolitana, um país que não cabe no Largo.
São Paulo não tem praia, nem Copacabana, nem dessas outras coisas tem. Tem antenas, temos muitas, e cá vemos coisa linda, ao vivo, no Rio. Rio de Janeiro.
De repente eles, eles na rede, os artistas, os vegetarianos, a música em nós. É Mano, é Milton, é Caetano, é uma gente.
Foi bonita a festa, as Diretas Já desvela a praia, a onda, mistura as cores novamente. É verde, é vermelho, é amarelo, preto, cafuso.
A nossa cara, diretas já, rap do bom, para todo povo refletir: mais saúde e educação cantam eles. Rio, agora, cidade livre, a luta pelo progresso. Queremos diretas já.
São Paulo não tem praia, e nem quer pagar o pato, por mais que insistam.
Insiste Caetano Veloso que um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante.
Cremos que sim.
Que leva a vida como um rio e desce para o mar, São Paulo não tem praia, tem rede.