Por Rosane Borges*, especial para os Jornalistas Livres
Nem pompa, nem circunstância
A aurora de 2019 vem acompanhada de um novo(?) governo no Brasil que em sua tenra idade já exibe as rugas de um projeto arcaico que nos devolve para um passado que não passa. Carregando a faixa presidencial desde 28 de outubro, Jair Messias Bolsonaro sacramentou durante a posse o que vinha anunciando exaustivamente e cumprindo parcialmente.
A cerimônia deste 1º de janeiro não fugiu um milímetro do roteiro que embasou a campanha e, pelo que se viu, servirá de farol para o espetáculo de horrores que, a cada cena, antecipa os desdobramentos do próximo ato.
A “solenidade” da posse pode ser vista como um balão de ensaio do que nos aguarda nos próximos anos. Alguns lances dos discursos oficiais, sem atenuações semânticas, anunciam e põem em prática um programa de governo árido, pra dizer o mínimo. Nomeemos alguns deles:
- “fim do politicamente correto” (ou seja, estão liberadas todas as formas discursivas e práticas de destituição dos grupos não hegemônicos);
- “o Brasil retomará os fundamentos da tradição judaico-cristã” (em outras palavras: o Estado laico, que sempre respirou por aparelhos, foi extinto);
- “o direito à legítima defesa” (em bom português: o desarmamento, o clima de faroeste, é apresentado como a principal política de segurança pública num país que diminuiu consideravelmente os índices de mortalidade graças, entre outras coisas, ao controle de armas, ainda que os números permaneçam exorbitantes);
- “combate do gigantismo estatal” (trocando em miúdos: a velha frase “menos estado e mais mercado” desregulamenta práticas e acordos que davam um mínimo de decência para a dinâmica predatória do capitalismo);
- “restabelecimento dos ‘padrões éticos e morais’ e da inversão de valores” (o presidente assinou MP em que retira a população LGBT das diretrizes dos direitos humanos). E para “restabelecer a ordem neste pais”, prometeu ainda “libertar” o Brasil “do socialismo.” (sic).
Derivam dessas orientações, nada republicanas, tampouco democráticas, a extinção do Ministério da Cultura, a retirada da Funai e do Incra da demarcação das terras indígenas e quilombolas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura (leia-se, ruralistas), aprovação do salário mínimo com valor inferior ao aprovado pelo Congresso), etc., etc., etc., medidas que empurram os vulneráveis e as áreas fundamentais para o desenvolvimento do país, como cultura e educação, para um limbo de incerteza jurídica e real.
A forma do acontecimento, novamente ela, o inusual, a quebra de protocolo, nos ensina muito mais que o conteúdo. Insisto: ao reacionarismo nos costumes e ao neoliberalismo na economia, correspondem uma decadência estética. Como esquecer da carona que Carlos Bolsonaro, o “Filho”, pegou no Rolls Royce presidencial, instalado como se guarda-costas fosse? Como não lastimar o discurso em libras da primeira dama, Michele, que se ofereceu a múltiplas interpretações? Impossível não sorrir e se assustar com o discurso sonoramente amplificado do vice Hamilton Mourão, como se tivesse dando ordens para a tropa. É possível fazer ouvidos moucos ao discurso do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo? E a vergonha alheia da ministra Damares com o rosa, o azul e outros que tais?
Incontornavelmente, alguns paralelos já foram estabelecidos. O espectro da expressão fascista se projetou nas sombras do discurso que fermentou os ânimos da assistência (“Esta é a nossa bandeira, que jamais será vermelha, só será vermelha se for do nosso sangue derramado para a manter verde e amarela”). O jornal português Público, sob a pena de Ana Sá Lopes, vê o vulto de Salazar no discurso oficial de Bolsonaro:
Para nós, portugueses, assistir ontem aos discursos de Bolsonaro trouxe reminiscências dos discursos de um homem que saiu do poder em 1968, embora isso tivesse acontecido por doença: Oliveira Salazar. Bolsonaro traz agora para ideologia oficial do Brasil tudo aquilo que foi a cartilha da ditadura portuguesa, o mesmo ódio às “ideologias”, a religião como parte do Estado, a defesa dos valores das famílias ultraconservadoras, o mesmo horror aos “vermelhos”. (…). A democracia brasileira é demasiadamente jovem, mas também as democracias jovens podem morrer.
Reorganização do sistema político: por uma ação conjunta de “fora”
Apesar dos pesares, é possível estabelecer parâmetros para construir um mínimo de civilidade. Que as democracias agonizam em várias partes do mundo, disso ninguém mais duvida. Esta parece ser a preocupação que vem tirando o sono de analistas ao redor do mundo, a exemplo dos professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do best seller “Como as democracias morrem?” e do espanhol Manuel Castells com o livro “Ruptura: a crise da democracia liberal”. “Como a democracia chega ao fim”, de David Runciman, completa o trio das obras que estão vendendo mais que cerveja no carnaval. A prescrição do remédio para a ascensão do autoritarismo tornou-se invariável: a necessidade premente da criação de frentes democráticas.
Segundo o filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp, para além da criação de uma frente democrática é preciso, no caso brasileiro, que “as forças políticas que não estão alinhadas ao governo de Bolsonaro repactuem concomitantemente as regras da democracia brasileira. Para o filósofo, “o impeachment de Dilma Rousseff ainda não acabou, uma vez que o sistema político não se reorganizou desde então e a eleição de Bolsonaro não foi de renovação, mas de destruição. E ele [Bolsonaro] precisa do colapso pra se manter no poder”.
Nobre diz ainda que o impeachment deflagrou uma guerra que teve início, mas que até o presente momento não chegou ao fim, a não ser que se reestabilize o sistema político. Lembra o professor que o impeachment de Collor não terminou em dezembro de 1992, mas sim em março de 1994, quando foi lançado o plano real, que era, ao mesmo tempo, um programa de estabilização econômica e política: “se no Governo Itamar você podia reorganizar o sistema de dentro do Governo, com Bolsonaro o desafio é muito maior, porque você tem que reorganizar de fora”.
A estabilização política não aconteceu com a ascensão de Temer que, ao invés de repetir o gesto de Itamar Franco, destinou-se a ser José Sarney, deixando uma extensa avenida para o aprofundamento do colapso, que foi e está sendo explorado por Bolsonaro. Nesse cenário caótico, Nobre adverte que precisamos distinguir as ameaças que irrompem do governo em exercício das que são provenientes da base da sociedade, que se sente autorizada, pela ambiência governamental, a dizer e a fazer coisas antes consideradas inadmissíveis, pelo menos na esfera pública, protegida por um manto de conforto.
Não estamos sós: o mundo em desalinho
Verdade seja dita: desestabilização política, descrença nos partidos tradicionais, desalento com as instituições, desaceleração econômica, insensatez democrática, guerras comerciais não são exclusividade nossa, mas fazem parte de uma tendência que se inclina para o centro do turbilhão. O mundo anda em desalinho e nada nos autoriza a afirmar que em 2019 o céu será de brigadeiro. Todos os elementos estão aí para que a nossa estranha temporalidade seja movida por pura nitroglicerina.
Os eventos caminham juntos e misturados, desenhando um ambiente tóxico em que incerteza, insegurança e medo converteram-se nas principais cifras que mobilizam ações de governos e cidadãos. Vejamos: ao invés de cooperação, os EUA optaram por uma política agressiva para manter supremacia; a China toda desenvolta procura se reequilibrar face a um processo de desaceleração econômica, mantendo reequilíbrio geopolítico global; a Rússia procura, o quanto pode, evitar um declínio acelerado, a despeito das investidas de Vladimir Putin; a União Europeia tenta, a todo custo, se curar de feridas narcísicas que ameaçam sua existência; o Oriente Médio se vê espreitado pelo signo da renovação, com Índia e Indonésia atentas às eleições em que escolherão seus presidentes.
E tem mais: na América Latina, teremos, em extremos opostos, os presidentes dos dois gigantes da região, Bolsonaro e Obrador, o que vem chamando atenção do planeta. Na África, a Nigéria (o país mais populoso do continente) e o Congo (segundo maior em superfície) enfrentarão o pleito eleitoral cercado de expectativas, embora sejam quase impossíveis projeções alvissareiras.
Olhe-se para onde se olhe o nacionalismo atravessa de ponta a ponta as estratégias de reação da maioria desses países. Duelos entre globalistas versus nacionalistas estão em alta na política global. Um rápido giro pelo mundo nos permitirá observar como as batalhas gravitam na órbita destes dois polos: elas serão a tônica da votação do novo Parlamento Europeu, considerada como um verdadeiro censo ideológico pancontinental. Na China, o governo apela internamente para o controle da população nesta fase de desaceleração econômica; na Índia também o viés nacionalista é adotado como plataforma por Narenda Modi para a recondução no cargo. O Brexit se tornou um pesadelo que teve no nacionalismo o fundamento para a insanidade da qual os britânicos se arrependem, depois da volta à lucidez.
É preciso estar atento e forte
Se, como insistia o geógrafo Milton Santos, “é preciso pensar globalmente e agir localmente”, de que maneira podemos evitar que a nossa jovem democracia pereça de envelhecimento precoce? Quais as vias alternativas para que a cidadania e a pluralidade retornem como bandeiras importantes para a sobrevivência de um país que se quer civilizado? De que maneira almejar a vida num tempo em que a rede de proteção e direitos foi totalmente desmantelada e onde morte e destruição tornaram-se indutoras de mudanças em prol dos interesses do capitalismo de crise?
Retomando Marcos Nobre, é preciso disposição para reorganizarmos a vida política desde fora da institucionalidade, para criarmos estratégias de conexão e interação com outras pessoas em redes, sem restrição. Sabemos da dificuldade da criação e fortalecimento dessas redes, mas sabemos igualmente que povos historicamente discriminados no Brasil foram hábeis em antever as tragédias que começam ceifando vidas que são empurradas à margem. Os mais atingidos nesse primeiro estágio do desmonte têm expertise para protagonizar qualquer iniciativa de reorganização da política que tem na composição de uma frente democrática os princípios que envolvem a todas(os) na manufatura de um projeto comum.
Costuma-se dizer que “os clarões fulgurantes de uma série de acontecimentos e casos extremos deixa muita gente cega”. O que parece ocorrer em nossas terras. Relembro Walter Benjamin, citado por mim em outro artigo, “Como foi possível o que é?” publicado aqui, nesta Carta depois da vitória no segundo turno: “nas circunstâncias ordinárias, a maior parte das pessoas acaba por ver, mas quando já é demasiado tarde, quando já se tornou impossível não ver e quando isso não serve mais a nada”.
Contra a cegueira, que parece generalizada, urge reaprender com os fenômenos de vidência. Lembrei naquele mesmo artigo que sob esse ponto de vista os feminismos negros se tornaram fenômenos de vidência: “parte da sociedade via o que ela continha de intolerável e via também a possibilidade de algo diferente”.
O filme Bird Box tornou-se metáfora para sintetizar os nossos dias. Entre a coragem e esperança guerreira de Sandra Bullock ainda prefiro a altivez de Rosa Parks, que ousou de olhos bem abertos reescrever a história com a coragem de quem via (e sentia) cotidianamente o intolerável e resolveu não mais ser parte disso.
São das vítimas, dos excluídos, dos terrivelmente outros que essa frente democrática poderá ganhar legitimidade para que a resistência, tão propalada em nossos dias, efetivamente o seja. Quem sabe, com a frente democrática, ao invés de proclamarmos um desalentado “bem-vindo ao deserto do real”, nos seja permitido ressoar um bem-vindo à vida, à cidadania e aos diversos modos de existência. Confabulemos!
*Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).