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A pulsão genocida do vídeo do Governo Bolsonaro

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O Brasil amanheceu hoje debatendo o vídeo da nova campanha pública do Governo Federal, que defende a retomada de “normalidade” e o fim do isolamento social frente à pandemia COVID-19. A peça publicitária lançada nesta quinta-feira, dia 26 de março, primeiro na rede social do Senador Flávio Bolsonaro, foi produzida em caráter de emergência pela Isobar, agência de publicidade responsável pela área digital da SECOM (Secretaria de Comunicação da Presidência), potencialmente custando mais de 4 milhões de reais aos cofres públicos. O vídeo, concebido pelo “gabinete do ódio” da Presidência, foi aprovado – na ausência de Secretário Fabio Wajngarten, infectado pelo coronavírus –  pelo Vereador Carlos Bolsonaro, o filho “01”, e utiliza indevidamente fotografias obtidas em banco de imagem.

Por meio de pesquisa reversa de imagens na internet, foi possível identificar a origem de 11 das 18 fotografias utilizadas no vídeo. Todas elas estão disponíveis no banco de imagens Shutter Stock. Segundo os termos de licenciamento dessa empresa, a licença de uso padrão está sujeita a uma série de limitações, dentre elas: não ser veiculada em vídeos com alcance superior a 500 mil pessoas e custo maior que 10 mil dólares. Também está expressamente vedado o uso em materiais com qualquer conexão com política ou ponto de vista político.

Foram contatados dez fotógrafos autores dessas imagens, e um deles expressou desconforto em ver sua obra sendo usada no vídeo. Mesmo protegendo sua identidade, segue abaixo o seu relato:

“Realmente eu não tenho controle do material, as fotos estão hospedadas no site e o site vende aos clientes deles e não sei como é feita essa negociação. Há sim um descontrole e um uso indevido da imagem, digamos assim. Ela não foi propícia pra isso. É uma foto de arquivo, o propósito dessa imagem é pra ser usada em campanhas ou direcionamentos ou reportagens que, enfim, reflitam uma certa realidade. Não a invenção desse maluco que a gente diz que é presidente da gente. Mas eu não posso dizer ao site que não venda a foto, que não comercialize a foto. Eu não tenho controle da imagem, mas enfim, fico dividido. Estou vendo que há um mau uso do material que eu produzi.”

 

O uso indevido de fotografias de bancos de imagens pelo clã Bolsonaro tem precedente. Durante a campanha eleitoral de 2018, Eduardo Bolsonaro, o filho “03”, divulgou um vídeo, supostamente feito por um apoiador, no qual aparece a fotografia de uma mulher negra, depois identificada como uma enfermeira canadense que se manifestou a respeito. O que espanta, para além de ver uma campanha oficial do Governo Federal potencialmente infringir os termos de licenciamento de imagens, é o discurso frio, calculista e irresponsável da família Bolsonaro aplicado sobre os rostos e corpos de pessoas negras, cujas opiniões não foram ouvidas, cujos direitos de personalidade talvez tenham sido desrespeitados e cujas identidades não podem sequer ser creditadas.

Reprodução

Do ponto de vista semiótico e discursivo, são essas as pessoas que o Governo Federal quer ver retomarem o trabalho, furando o isolamento social: brasileiros negros e pobres, trabalhadores informais e subalternizados. Brasileiros esses que, caso infectados, justamente encontrarão as maiores dificuldades em obter atendimento médico, sobretudo se a curva do contágio não for achatada, conforme explicam inúmeras pesquisas científicas já publicadas. Razão pela qual esta campanha ganha aspectos “genocidários”, tal como bem observou Ciro Gomes, devendo ter sua veiculação em televisão imediatamente suspensa pela Justiça. O Ex-ministro, em suas redes sociais, disse: “Bolsonaro está preparando uma campanha publicitária para chamar o povo para voltar às ruas! É genocídio!”. E vamos explicar o porquê de Ciro estar certo.

Peça central da campanha pública governamental, este vídeo, divulgado no perfil de Flávio Bolsonaro, o filho “02”, vem acompanhado de logomarca do Governo Federal e de uma hashtag criada,  dois dias antes, pelo próprio Senador, como resposta à repercussão negativa do pronunciamento do Presidente, seu pai. A hashtag #obrasilnãopodeparar é instrumental na estratégia de comunicação digital oficial da SECOM – apesar de ter desaparecido o post do instagram do Governo Federal – e se provou eficaz na disseminação do vídeo, que rapidamente ganhou as manchetes dos principais veículos de comunicação e as redes sociais, furando a bolha bolsonarista, como também adentrou os grupos de whatsapp, já tendo potencialmente circulado entre milhões de brasileiros.

Reprodução/ Instagram, perfil do Governo do Brasil

Diferentemente da campanha publicitária do Banco do Brasil, vetada pelo Presidente em 2019, as pessoas negras protagonistas do vídeo não estão no bar, na piscina, ou dançando, bem-vestidas, nas coberturas dos prédios ou nas boates chiques, exibindo subjetividade, personalidade e poder aquisitivo, afirmando, dentre outras coisas, pertencimento de classe e igualdade racial.

As pessoas negras, protagonistas da campanha da SECOM, são retratadas em situação de pobreza e vulnerabilidade: sendo atendidas por enfermeiras, deitadas em leitos de maca, ou apinhadas na sala de espera de hospitais. O vídeo também escolhe muito criteriosamente quais trabalhos são ocupados por negros: há um ambulante da praia, uma feirante, um professor da rede publica de ensino, funcionários de fábricas e garis da COMLURB, Companhia Municipal de Lixo Urbano do Rio de Janeiro.

Contrariando a recorrente falta de representatividade negra na publicidade, nesta peça de propaganda governamental em questão, afrodescendentes são maioria absoluta: das 18 fotografias usadas no vídeo, apenas 2 são de pessoas brancas. Uma senhora loira, cientista, manuseando um microscópio, e o homem, de costas, na imagem final, de cabelo liso e bandeira do brasil nas costas. Poderíamos até achar que essa última fotografia é uma referência ao próprio Bolsonaro, ou alguém à sua imagem e semelhança. Nada disso é mera coincidência.

Reprodução

O subliminar do discurso semiótico desse vídeo, cuja pulsão é genocida, opera nos referentes ausentes. Enquanto o vídeo trata de, em nome de um espírito patriótico, retomar a “normalidade” do trabalho, ele oculta quem diretamente se beneficia com essa retomada: empresários ricos, em geral brancos, que vêm fazendo pressão para a reabertura de seus comércios e indústrias. O vídeo também oculta quem, ao retomar o trabalho, assume maior risco de morte: as pessoas pobres, em geral negras neste país. Porém, esses referentes implícitos, genocidas, estão acessíveis por inferência. Ou seja, o vídeo não diz, expressa e explicitamente, para brasileiros negros voltarem às ruas porque este Governo quer que eles morram aos milhões. Mas esse texto está lá, no vídeo.

Isso se deve justamente ao acúmulo de discursos do clã Bolsonaro, principalmente do Presidente, que nutre no imaginário da população, especialmente do séquito bolsonarista, um discurso racista. Jair Messias Bolsonaro, quem em campanha eleitoral disse que quilombola, medido em arroba, “não serve nem pra procriar”, também disse, nesta semana, que pessoas vão morrer e que o brasileiro precisa ser estudado, “porque mergulha em esgoto e não pega nada”.

Esse senhor, ocupante do cargo máximo da nação, se dizendo preocupado com a economia do país e apostando, sem nenhum fundamento científico, que o impacto da pandemia COVID-19 será maior se o trabalhador informal não puder se alimentar, em vez de mover as estruturas do Estado para garantir renda básica para a população mais vulnerável e para a massa de trabalhadores autônomos e micro-empresários individuais – tal como aprovado na Câmara dos Deputados ontem – opta por descumprir as medidas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde e adotadas por praticamente todas as nações.

Portanto, considerando esse acúmulo de referentes contidos nos discursos pregressos de Bolsonaro, consegue-se ler o discurso subliminar do vídeo: “Morrerão, em quantidade, os negros e pobres. Os brancos, estarão protegidos e ungidos pela radiante e iluminada Pátria Amada”. Tratando-se de uma propaganda de governo, o impulso genocida do Presidente migra para uma política de Estado. Aí mora o perigo de se ver adotada uma política pública de extermínio de negros e pobres no Brasil.

Reprodução TV

Muitos pensarão que essa preocupação é histeria. Infelizmente, o genocídio enquanto política de Estado não se anuncia, nem se comprova.  O historiador armênio Marc Nichanian é categórico ao afirmar, em seu livro “A Perversão Historiográfica” (2009), que o genocídio não é um fato, porque é a própria destruição de toda a factualidade desse acontecimento. Os perpetradores de um genocídio se ocupam de mascarar, velar e apagar todos os vestígios que indicam e apontam para a existência mesma do fato. E a consequente ausência de prova documental faz emergirem narrativas, inclusive historiográficas, de cunho negacionista. Razão pela qual muitas pessoas, inclusive ditos historiadores, até os dias de hoje negam os crimes contra a Humanidade cometidos pela Ditadura Civil-Militar brasileira.

Ao estimular o povo a quebrar o isolamento social, aumentando o risco de contaminação e os efeitos nocivos da pandemia, o Governo Federal implanta uma nem tão invisível estratégia de extermínio de negros e pobres. O discurso semiótico desta propaganda do Governo Federal deixa rastros e vestígios que conservam subliminarmente esse texto de pulsão genocida, que não existe enquanto prova documental, nem como fato. Mas existe, ainda assim. E tem poder de matar, mesmo assim.

Esse discurso genocida, só não enxerga quem não quer.

. . .

Artigo de Raquel Valadares, documentarista e pesquisadora de cinema, especial para os Jornalistas Livres

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1 Comment

1 Comments

  1. Thais Susana Canela da Silva

    28/03/20 at 4:40

    Ótimo texto. Ótima reflexão. De fato só não vê quem não quer e não entende quem só pensa em si.

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Nota da ABI – Bolsonaro mente na ONU e envergonha o Brasil

No seu discurso na manhã desta terça-feira na Assembléia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro contribuiu para que o Brasil caminhe para se tornar um pária internacional.

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No seu discurso na manhã desta terça-feira na Assembléia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro contribuiu para que o Brasil caminhe para se tornar um pária internacional.
Sem qualquer compromisso com a verdade, o presidente afirmou que seu governo pagou um auxílio emergencial no valor de mil dólares para 65 milhões de brasileiros carentes, durante a pandemia. O auxílio foi de 600 reais.
Bolsonaro mentiu
O presidente responsabilizou, ainda, índios e caboclos pelos incêndios na Amazônia e no Pantanal, que alcançam níveis nunca antes vistos no País. Todas as investigações, inclusive de órgãos oficiais, indicam que fazendeiros estão na origem das queimadas.
Como se vê, de novo Bolsonaro mentiu.
O presidente transferiu a responsabilidade para governadores e prefeitos pelos quase 140 mil mortos vítimas do coronavírus. Todo o país é testemunha de sua leviandade, ao classificar a pandemia de “gripezinha” e ir na contramão dos procedimentos defendidos pelas autoridades de Saúde.
Assim, mais uma vez Bolsonaro mentiu.
A ABI, com a autoridade de seus 112 anos de existência em defesa da democracia, dos direitos humanos e da soberania nacional, repudia esse comportamento que vem se tornando recorrente e conclama o povo brasileiro a não aceitar o verdadeiro retrocesso civilizatório que o governo está impondo ao País.
Paulo Jeronimo – Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

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Sem papas na língua. Juliano Medeiros no Dialogando de hoje

Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? Tudo isso e um pouco mais, sem papas na língua, como diz o Pastor Fábio. Vem!

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Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? No Programa Dialogando desse domingo (26/07), 18h, o Pastor Fábio recebe Juliano Medeiros, presidente do PSOL para um papo sobre eleições e aprendizados da pandemia que passa por uma das fases mais críticas do momento, onde prefeituras e governos de vários Estados do país programam reabertura de mais uma parcela considerável de setores, enquanto isso, a mídia normaliza as curvas ascendentes do número de infectados pelo Coronavírus.

Outra pergunta que precisa ser respondida é qual é o sentido das eleições serem realizadas ainda neste ano? Quais interesses políticos estão por detrás da próxima disputa eleitoral? Tudo isso e um pouco mais, sem papas na língua, como diz o Pastor Fábio. Vem!

Assista, compartilhe. comente e mande perguntas no Facebook.

Juliano Medeiros é um jovem dirigente político da esquerda brasileira e desde janeiro de 2018 ocupa a presidência do Partido Socialismo e Liberdade. Historiador e Mestre em História pela Universidade de Brasília, é Doutor em Ciências Políticas pela mesma instituição.

Co-autor e organizador de Um Mundo a Ganhar e Outros Ensaios (Multifoco, 2013), Um Partido Necessário – 10 anos do PSOL (Fundação Lauro Campos, 2015) e Cinco Mil Dias: o Brasil na era do lulismo (Boitempo, 2017), colabora com sites, jornais e revistas no Brasil e exterior.[2]

Em 2018 coordenou a campanha de Guilherme Boulos à Presidência da República pelo PSOL[3] e, no segundo turno, após decisão do partido, passou a integrar a coordenação da campanha de Fernando Haddad[4]. Desde a vitória de Jair Bolsonaro, participa do Fórum dos Presidentes de Partidos de Oposição[5].

Durante mais de uma década Juliano Medeiros foi dirigente da corrente interna Ação Popular Socialista – Corrente Comunista do PSOL. Em Junho de 2019, a APS-CC se fundiu com o Coletivo Rosa Zumbi e mais oito coletivos regionais para fundar a Primavera Socialista, atualmente maior tendência do PSOL, da qual Juliano também é dirigente.[6]

Fábio Bezerril Cardoso é Pastor, cientista social, ativista social e Cofundador & Coordenador da Escola Comum e atualmente apresenta o Programa Dialogando, todos os domingos, às 18h. É um dos pastores progressistas que têm lutado pela defesa dos povos periféricos e costuma não ter papas na língua para falar sobre a realidade desses lugares. A produção é de Katia Passos, com arte de Sato do Brasil.

Conheça mais sobre a atuação do Pastor Fábio https://www.facebook.com/fabio.bezerrilhttps://www.facebook.com/fabio.bezerril

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Hilário Ab Reta Awe Predzaw e a história de um povo, historicamente, moído pelo ódio ou indiferença

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Por Diane Valdez, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, militante do Movimento de Meninos(as) de Rua e Comitê de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno

 

 

Hilário Ab Reta Awe Predzaw, 43 anos, morador da Aldeia Xavante N. S. de Guadalupe, em Barra do Garças, Mato Grosso, morreu na madrugada de 18 de junho de 2020, vítima do descaso governamental que permitiu a chegada do Coronavírus em sua comunidade. Era aluno do 5º período do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Sua tia morreu há pouco mais de uma semana vítima do mesmo descaso, a mãe e seus dois irmãos, seguem contaminado pelo vírus, assim como outros Xavantes e outras pessoas de etnias indígenas de todo o Brasil.

Hilário entrou na UFG, pelo sistema de cota para indígenas, no ano de 2018. Chegou com o já conhecido atraso histórico de acesso dos povos originários no ensino superior, ainda que a UFG seja uma das universidades públicas que tem buscado cumprir com o direito de povos indígenas ao ensino universal, o acesso e a permanência ainda sofrem de fragilidade.

A trajetória de Hilário, na UFG, não se limitou às dificuldades ocasionadas pela pobreza, como muitos de nossas/os alunas/os enfrentam. A academia era um outro mundo, distante de sua comunidade, não só em quilômetros, como também em movimentos culturais, sociais e políticos. Talvez essa distância, o fazia um aluno reservado e observador, sem abrir mão da seriedade e interesse pelo conhecimento.

Era umas das lideranças de seu povo, portanto, sabia da responsabilidade que assumia frente a comunidade, ele seria um professor, um educador de seu chão, de sua gente. Hilário trabalhava em uma escola, com o formato de um Tatu Bola, na sua aldeia, trabalhava na área de serviços gerais, em breve voltaria como Professor!

No primeiro ano de curso, Hilário, na desconfiança de seu silêncio indígena, que não significava submissão, tentava se inserir no mundo acadêmico. Veio um tempo, que largou tudo e voltou para a aldeia, não por opção dele, mas por opção deste desgoverno que é incansável na destruição de direitos dos povos originários.

O Ministério da Educação e Cultura, suspendeu todas as bolsas de permanência para a população indígena e quilombola. Um grupo de alunas e professoras se juntaram, arrecadaram dinheiro e o trouxeram de volta para a Faculdade. Foi feita uma mobilização de docentes e discentes sensibilizados e a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFG, cumprindo seu importante papel, disponibilizou uma bolsa e outros auxílios emergenciais.

Nessa ocasião, quando perguntado sobre o porquê de não falar nada dos problemas para colegas, e voltar para sua comunidade, Hilário disse que achava que ninguém sentiria falta dele.

No segundo ano, trouxe seu curumim para estudar em Goiânia, começou a trabalhar como intérprete na escola, acompanhando seu filho na dificuldade com a lingua. Era visível seu orgulho de exercer a função de intérprete. Lutou e enfrentou as diferenças que separavam as culturas e, como muitos, guerreou como seus ancestrais, para não perder seu lugar de legítima conquista.

No início da Pandemia, que começou junto com o semestre letivo, Hilário resistiu em voltar para sua comunidade, tinha medo das aulas retornarem e ele não estar presente na Faculdade, isso aponta o lugar que a UFG ocupava em sua vida. Quando percebeu que seu povo não estava acreditando na letalidade do vírus, retornou para alertar todos sobre o perigo. A UFG, cumprindo seu papel de instituição pública, providenciou o transporte para seu retorno no Mato Grosso.

Em maio, informou para duas amigas, que sua comunidade precisava de cobertores, pois fazia muito frio, e seu povo estava adoecendo. Elas mobilizaram, imediatamente, uma Vakinha On Line, onde arrecadou-se pouco mais de três mil reais, no entanto, como o total da arrecadação demora para ser liberado, emprestaram dinheiro e compraram os cobertores de forma mais hábil, enviando-os dia seguinte.

Os sintomas que atingia a comunidade, febre, falta de ar etc. já indicavam que era Coronavírus, no entanto, isso não foi motivo de interesse governamental, que poderia ter evitado o alastramento do vírus.

Ao apresentar os sintomas da doença, Hilário mostrou-se resistente em ir para o hospital, tinha dificuldade de aceitar o tratamento “dos brancos”. Acreditava nos rituais de seu povo, no tratamento natural que conhecia há tempos. Por outro lado, a histórica resistência dele, fazia todo sentido, pois sabemos como os povos indígenas são tratados neste país tão indígena que não se reconhece como indígena. Foi convencido a ir para o hospital e, na última conversa com as amigas em chamada por vídeo, estava muito escuro, e a família arrumou uma lanterna para as meninas verem o rosto dele, que disse para elas, em lágrimas, que estava somente suado, quando perguntado se estava com medo, disse que sim, que estava com muito medo…

A ida para o hospital foi acompanhado de longe pelas amigas, falavam sempre com a Assistente Social que afirmava que Hilário estava se recuperando, que receberia alta a qualquer momento. Nessa madrugada, ao pedirem informações sobre o amigo no hospital, alguém disse que alguém havia morrido, mas não sabia o nome. O nome de mais um número morto é Hilário Ab Reta Awe Predzaw, que deixou a mulher, filhos e todo seu povo Xavante.

O acesso dos povos indígenas ao ensino superior é recente, no entanto, é marcado por extrema coragem e resistência, pois o mundo acadêmico não é de todo um espaço acolhedor. Ainda que a dureza prevaleça na universidade, Hilário encontrou solidariedade e amizade na Faculdade de Educação, ainda que não seja uma solidariedade coletiva, foi construído uma rede de apoio, tanto de alunas/os, como também de docentes, isso pode ter aliviado sua dura estrada longe de seu chão.

Hilário não morreu porque “chegou a hora dele”, morreu por não ter o direito de ser mais um indígena, digno de necessários cuidados. Hilário, era um homem parte do “povo indígena”, um povo invisibilizado, injustiçado, espezinhado, humilhado e, odiado por este desgoverno.

Um povo com suas terras ameaçadas e roubadas pelo latifúndio, mortos por pistoleiros do agronegócio, ironizado e menosprezado por representantes deste desgoverno, ignorado por gente nativa que se acha descendente de europeus, machucados por todos que acham que universidade não é lugar de indígenas.

Não sei falar de fé, nem de ‘destino’, nem de coragem para aliviar o cansaço de um tempo incansavelmente dolorido. Ironicamente, para não dizer, funestamente, o tal ministro da educação, que afirmou odiar a expressão “povos indígenas”, ampliando seu descaso com a educação, revogou hoje [H OJ E], (19/06) a portaria assinada pelo ex-ministro de educação, Aluísio Mercadante, que estabelecia a política de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação. Hilário, estaria fora da pós-graduação, se dependesse deste ser desumano.

Quando lanternas começaram a iluminar caminhos de direitos para esta população, no interior de nossas universidades públicas, ainda que timidamente, um furacão de perversidade em formato de governo, dá pontapés e pisa, moendo, as possibilidades de justiça. Feito bandeirantes, grupos genocidas a frente das decisões da nação, estimulam a morte em todos os formatos. Deixar que o coronavírus atue, sem controle, é a proposta de morte atual para os povos originários.

Como Hilário, temos medo, muito medo, mas agarremos as lanternas, e assumimos nosso lugar na defesa dos povos indígenas, não os condenando a escuridão, como muitos fazem.

Hilário Ab Reta Awe Predzaw presente!

Este texto foi escrito com informações coletadas com as alunas, companheiras de Hilário, da turma do quinto período de Pedagogia da Faculdade de Educação/UFG, Dorany Mendes Rosa e Raysa Carvalho.

A elas e a toda turma, meu carinho e solidariedade.

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