Fui criado por uma das maiores pessoas que conheci. Não falo aqui dos meus pais que tem óbvia parte neste processo, mas falo de um negro, homossexual, pai-de-santo e pobre que – na época do meu nascimento – ajudou meus pais e foi ajudado por eles.
Nós morávamos num bairro de classe média (alta, àquela altura) e ele passeava pela vizinhança causando um misto de revolta e indignação na população branca que se achava rica. Várias vezes, enquanto criança, presenciei ofensas e desrespeito à sua pessoa. Coisas que hoje, mais de 30 anos depois, seriam claramente enquadrados em crimes como racismo e homofobia.
Mas eram outros tempos. Tempos que alguns sentem saudade. Tanta que são capazes de jogar o país no limite do caos. Até o falecimento desta pessoa, no início do século XXI eu regularmente ia até a casa dele conversar, ouvir, aprender… E não me conformo até hoje de não ter feito mais por ele e por mim.
Ele me ensinou o conceito de “bixa da vez”. Quando alguma “colega” (como ele chamava) começava a despontar na mídia meus pais ficavam felizes. Aquela felicidade de branco heterossexual envolvido na luta contra o racismo e o preconceito. E diziam: “Olha aí, para dar na cara da sociedade!” E ele sabiamente dizia: “Esta aí é a bixa da vez”.
Um dia perguntei a ele o que era a “bixa da vez”. A resposta foi uma aula de sociologia, antropologia e história. De tempos em tempos a sociedade (branca, capitalista, heterossexual, patriarcal e etc.) escolhe alguém que seja das minorias violentadas para dar um “passeio lá por cima”. Normalmente envolve ganhar dinheiro, ficar famoso e fazer os que tem alguma vontade de uma sociedade mais justa acharem que “agora vai”. É a “bixa da vez”.
A bixa da vez tinha que ter três características, segundo ele: ela tinha que estar num num estrato aceitável para a população branca. Isto significava que não podia carregar as demandas por igualdade, mas apenas – quando muito – um grito, uma nesga de visibilidade para aqueles que são invisíveis. Ela precisava ser o mais “neutra” (apolítica) possível. Sem levantar nenhuma bandeira ou usar seu recém-ganho espaço para reivindicação. E ela tinha que paulatinamente deixar o grupo social de onde veio para continuar a ser aceita no mundo que estava sendo convidada.
O conceito de “bixa da vez” reunia, numa só ideia, a crítica ao “esquerdismo” de Lênin, os processos de culpa e expiação da psicanálise, o conceito de hegemonia de gramsci, e toda a teoria sobre os processos simbólicos de controle da violência social. Tudo, tudo isto numa só expressão: “A bixa da vez”.
Em pouco tempo a “bixa da vez” passava, os grupos sociais que parecia que ela representava continuavam nos mesmos lugares, o sonho das populações brancas com alguma noção de ética social era acalentado, mas ficava nisto. Logo surgia outra “bixa da vez”, e assim sucessivamente.
O conceito de “bixa da vez” no meu entendimento explica Maluf, Anitta, Pablo Vittar e o “empreendedorismo”, por exemplo. A “bixa da vez” não muda nada. Ela só é a bixa da vez, na realidade, se não mudar nada.
Se houver a mínima possibilidade de mudança os estamentos superiores barram e não deixam que ela apareça.
Como eu queria que as “bixas da vez”, todas elas, lutassem por democracia e inclusão em 2018, mas acho que estão, cada uma, mais preocupadas com suas contas bancárias. E é exatamente assim que o sistema se mantém.
Edit 1: É possível que, na sua primeira eleição, as elites brasileiras tivessem tirado Lula para “a bixa da vez”. Mas daí ele fez crescer o PIB como há muito não se via, tirou a população da pobreza e investiu em educação. Acho que ele enganou direitinho as elites e elas não perdoam.
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