É interessante notar as reações das pessoas diante documentário da Netflix “Don’t Fuck With Cats: Hunting An Internet Killer”. Em princípio, elas parecem reagir à insensibilidade da Netflix ao exibir a matança de pobres gatinhos indefesos; além disso, algumas delas argumentam que, com essa série, a gigante do streaming aumentou a publicidade em torno de um criminoso cruel.
Talvez elas tenham razão, mas certamente existe um outro motivo para a rejeição da série e que permanece inconsciente todo o tempo: evitar o mal-estar causado pela descoberta da nossa profunda credulidade diante dos simulacros e simulações que perpassam as redes sociais. A série repete duas vezes uma frase que o criminoso escreveu na parede de seu quarto: “se você não gosta do reflexo, não se olhe no espelho! Eu não estou nem aí”. Se você não admite que crê piamente em mentiras e que jamais critica esse mundo de aparências – as redes sociais -, então evite o espelho.
A série começa de modo estranho: em dezembro de 2010, num post de Youtube, um desconhecido brinca com dois gatinhos em cima de uma cama para, em seguida, coloca-los em um saco plástico, acoplar um aspirador de pó numa abertura e fazer a sucção de todo o ar do saco. Os gatinhos morrem sufocados. Esse post sádico viraliza e desperta a indignação das pessoas que o assistiram e que reagiram prometendo punir o culpado.
Elas imediatamente criaram, no Facebook, o grupo Find the Vacuum Kitten Killer for Great Justice com 4000 inscritos, ao mesmo tempo em que um grupo de proteção animal oferecia um prêmio de 5000 dólares para quem identificasse o responsável pelo delito. Mas a série é muito mais do que um discurso do “politicamente correto” típico da classe média instruída de países ricos. Tanta preocupação tinha a ver com o temor de que o autor dos vídeos viesse a matar um ser humano
Mark Lewis é o diretor e roteirista desse documentário, dividido em três capítulos de 1 hora cada, sobre um psicopata digital, um sujeito narcisista e egocêntrico cuja principal aspiração era a fama a qualquer custo e que chegou ao homicídio em nome dessa pretensão. Lewis mostra que o criminoso conseguiu criar um elaborado mundo virtual, com muitos perfis falsos de seguidores, ao mesmo tempo em que, no mundo real, era praticamente um fantasma. Insinuava ser muito rico, um viajante constante pelas principais cidades do mundo; na realidade, ele sequer tinha cartões de crédito nem endereço certo e usava vários nomes falsos.
Don’t F**k With Cats: Hunting an Internet Killer | Official Trailer | Netflix
Como um garoto de programa aspirante a modelo, ele adotou, entre outros, o nome de Luka Magnotta, atribuindo-se nobre ascendência russa. Na verdade, como escreve Carter, ele padecia da Desordem Fronteiriça de Personalidade e da Desordem de Personalidade Histriônica, além de sofrer de esquizofrenia paranoide e de psicose (1). Pouco tempo depois, Magnotta, radicalizando os seus delírios, veio a matar e a esquartejar um jovem, tendo filmado tudo e postado no Youtube.
O filme de Lewis é um belo estudo semiótico dos simulacros e da simulação presentes nas redes sociais. Baudrillard já advertia que o simulacro é o ponto onde a cópia deixa de ser uma cópia para se tornar o Real (2). Referindo-se a uma fábula de Borges, Baudrillard afirmava que, com o simulacro, o mapa precede o território, ou seja, que os simuladores atuais tentam fazer coincidir o real, todo o real, com os seus modelos de simulação.
Assim, a diferença soberana entre o mapa e o território desaparece, toda a metafísica desaparece e já não existe o espelho do ser e das aparências. A imagem gerada pelo simulacro apenas conserva a forma de uma outra coisa inteiramente despida de sua substância ontológica originária (e que costumávamos chamar de “realidade”).
O simulacro se transforma em uma ilusão do real. A verdade e a fraude são os dois limites epistemológicos entre os quais oscilam a simulação e o simulacro. No lado da verdade, por exemplo, um simulador de voo é útil para treinar um piloto; do lado da fraude, a simular uma doença é útil para alguém que deseja faltar ao emprego ou à prova. Ainda segundo Baudrillard, dissimular é fingir que não ter o que se tem e simular é fingir ter o que não se tem. Umberto Eco escreveu que “aquilo que não serve para mentir tampouco serve para dizer a verdade” e acrescenta, ironicamente, que a semiótica é uma “teoria da mentira”, ou seja, que ela estuda não aquilo que faz sentido como a Física ou a Biologia, mas sim aquilo que parece fazer sentido (3). Para Luka Magnotta, bastava “parecer ser”!
Outro aspecto interessante da série é a sua forma narrativa, utilizando as entrevistas com os ativistas, a mãe de Luka, os advogados e os policiais. Lewis também mostrou o criativo trabalho dos detetives amadores do Facebook que, mesmo sem saber, seguiram o princípio de Locard, base das ciências forenses: “todo contato deixa vestígios”. O princípio afirma que o criminoso sempre deixa algo na cena do crime ou leva consigo algum rastro ou prova que sirva para indiciá-lo futuramente.
A partir das imagens do local dos crimes com vestígios reveladores e usando programas de reconhecimento facial (apesar de Luke tentar esconder o rosto), o grupo conseguiu chegar ao país, à cidade, ao endereço e à identidade do matador de gatinhos e homicida. Magnotta era um mestre da simulação! Nunca existiu o território cujo mapa ele desenhou minunciosamente. Com um nome falso, falsa profissão e perfis falsos de seguidores nas redes sociais, Luka Magnotta produziu um mapa sem território, ou melhor, um mapa na escala 1:1, no qual o “todo verdadeiro” se identifica com o “todo falso”.
Alexandre Costa é professor, doutor em filosofia e cinéfilo
REFERÊNCIAS:
BAUDRILLARD, Jean: Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
CARTER, Cara L.: Canadian Psycho – The True Story of Luka Magnotta, Toronto: RJ Parker P. I., 2015.
ECO, Umberto: Tratado de Semiótica General, Barcelona: Lumen, 2000.
Uma resposta
Bela análise, achei o documentário muito bem construído, uma crescente de informações e um final surpreendente.