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América Latina e Mundo

A posse da esperança de Andres Manuel Lopez Obrador no México

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A política é tempo. A frase dita pelo presidente eleito do México Andrés Manuel Lopez Obrador na entrevista após a confirmação da vitória em julho deste ano rememorava a caminhada não de uma campanha, mas de uma longa jornada de amadurecimento democrático e desejo de mudança expressado pelo povo que pela primeira vez coloca no poder um projeto popular e progressista a partir de 1 de dezembro, data do início do mandato de AMLO, como é chamado devido às iniciais de seu nome.

Depois de perder duas disputas presidenciais com fortes suspeitas de fraude, sobretudo em 2006, e percorrer as 2.446 cidades do país, o líder do partido Movimento de Renovação Nacional (Morena) assume ao lado do inédito gabinete paritário, com oito homens e oito mulheres conforme a composição ministerial anunciada ainda em 2017 pela coalizão Juntos Faremos História, integrada pelo Partido Encontro Social e Partido do Trabalho. No legislativo a novidade desponta pela pluralidade encarnada pela chegada de campesinos, indígenas, mulheres e jovens como a senadora  Citlalli Hernández Mora, senadora aos 28 anos pelo Morena, a segunda com menos idade da Câmara Alta.

“Tudo saiu melhor que o previsto, ganhamos da mentira, da fraude, do dinheiro. Teremos maioria no Senado e Câmara, vamos governar para todos, mas primeiro para os mais pobres. Temos alguns dos homens mais ricos do mundo e estados inteiros e populações muito carentes. O povo sempre quis mudança e agora teremos grandes discussões envolvendo a seguridade social e temas como a despenalização do aborto, da maconha. A expectativa é a mais alta da era moderna dentro do projeto no qual buscamos ampla unidade nacional” comenta. Atenta ao cenário latino, a parlamentar manifestou preocupação com o avanço da extremadireita no Brasil e fez questão de transmitir sua solidariedade ao ex-presidente Lula.

Para chegar à presidência com 30 milhões de votos e 53% da preferência na votação mais contundente alcançada por um presidenciável Obrador combinou movimentos de aproximação com setores do empresariado e da classe média adotando o tom da reconciliação ao mesmo tempo que  afastava-se o de partidos cujas cúpulas costumam atuar por interesses particulares. O “pasito a direita” de Obrador e o “pasito a esquerda” dos empresários junto da suavização do discurso renderam o apelido Amlove durante a campanha, apesar da retórica de medo de seus adversários que sugeriam uma grande depressão em caso de ascensão da esquerda.

Na outra ponta, atraiu parte majoritária do voto de castigo do eleitorado, que expressava “hartazgo” com o que muitos classificam de esgotamento com a ditadura de partido único e pela corrupção que caracterizou os últimos 70 anos da hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI), com a breve alternância do Partido Ação Nacional (PAN) , de práticas tão comuns que foram misturados no codinome PRIAN – PRI mais PAN pelos populares. A regionalização da campanha e a organização de uma estrutura territorial mostrou-se outro acerto ao reforçar as bases no centro e sudeste que tradicionalmente tendiam à esquerda e ampliar a presença no norte, próximo aos Estados Unidos e de posições majoritariamente conservadoras.

Nesse cenário de amplo alcance, a execução da agenda que pretende tirar da condição de  pobreza de metade dos 130 milhões de mexicanos segundo  o Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (Coneval) aponta para o que o presidente define como a quarta transformação com a chegada da justiça social. As anteriores são independência ante os  colonizadores espanhóis (1821), as reformas constitucionais de 1861 e a revolução que culminou na derrubada da ditadura de Porfírio Diaz em 1917 e na constituição vigente.

Para começar o cambio do modelo que produz poucos ricos e muitos pobres a urgência será por espalhar a rede de proteção aos idosos e pessoas portadoras de deficiência através do pagamento de pensões mensais de mil e duzentos pesos mexicanos, quase 250 reais, o dobro do que recebem atualmente. A mesma medida foi adotada com sucesso quando Obrador governou a Cidade do México , época em que inaugurou o Hospital de especialidades Belisário Dominguez e abriu a Universidade Autônoma, no início dos anos 2000.

“Tem quem acredita e quem acha que AMLO é um populista, a polarização existe. Sua gestão é elogiado pela construção do segundo piso do periférico, a melhora do centro e a atração de investimento ao passo que os críticos citam os videoescandâlos nos quais funcionários do governo são flagrados recebendo subornos, o que prejudicou muito sua imagem”, detalha Esau Alvear, publicitário mexicano morando em Brasília há quatro anos. “Existe muita esperança e se não der certo via ser um golpe muito forte para os mexicanos”, complementa.

À juventude, a ênfase será na concessão de bolsas em universidades e parcerias com empresas privadas para criação de vagas de primeiro emprego a fim de amenizar a falta de oportunidades dos que nem estudam nem trabalham, estimados em dois milhões e seiscentos mil jovens.  A contratação de profissionais para aturarem na reativação de hospitais no interior chamados de elefantes brancos pelo abandono e a valorização do salário mínimo são outras estratégias para geração de postos de trabalho, incluindo a viabilização de refinarias através da atuação da Petróleos Mexicanos (Pemex), empresa estatal de economia mista.

 No campo, a concentração agrária aumentou nas últimas décadas a partir da flexibilização do controle do estado sobre quase 50% das terras produtivas asseguradas ao setor social. Consequência da expansão da mecanização e do agronegócio a vulnerabilidade cresceu, motivo pelo qual as famílias das zonas rurais receberão seis mil pesos do governo federal e serão incentivadas a plantarem culturas que permitam o país atingir a autossuficiência alimentar evitando, entre outros itens, a importação de 30% do milho dos Estados Unidos, base de toda culinária mexicana. 

A politização de um povo

Amlo pretende comunicar-se diariamente com a população no que espera ser a transição da democracia representativa para a participativa. Foi assim quando esteve à frente da Cidade do México e pelas manhãs concedia coletivas para tratar da administração. Desse modo, busca contrapor a produção de informação  concentrada pelas gigantes Televisa e TV Azteca, similares à rede Globo na elaboração da linha editorial voltada a atender as elites e na influência que exercem sobre as maiorias – recentemente a atual gestão distribui televisores a milhões de cidadãos cujo único sinal será dos oligopólios da mídia.

O desenvolvimento da cidadania, afastada das decisões durante a permanência da direita, e reavivada com a eleição deste ano determinará as ações do governo. O mecanismo das consultas populares já definiu, por exemplo, o destino de grandes obras, com o cancelamento do aeroporto de Texcoco e economia 13 bilhões de dólares e a aprovação do Trem Maya, que prevê 500 quilômetros de via férrea passando por cinco estados do sudeste, uma das regiões mais carentes. Além disso, no meio do mandato de Amlo a população definirá se o novo presidente deve ou não permanecer no cargo, conforme previamente anunciado.

“Uma outra cara nasce do mexicano, acostumado a não reivindicar seus direitos desde a destruição da cultura milenar pelos colonizadores com reflexos até hoje na autoestima nacional. O México nunca esteve tão perto de implementar as mudanças com compromisso social e isso só se dará com a apropriação da sociedade de todo esse processo”, observa Marisa  Fatima Roman, doutora em Ciências Sociais e Políticas pela Universidade Autonoma do Estado do México e moradora de Toluca, cidade de expressivo ramo automobilístico e farmacêutico, lembrada também pela grande oferta hídrica e baixos impostos.

Dentre as próximas polêmicas a repercutirem na esfera pública e passarem pelo crivo popular irá perguntar-se acerca das investigações envolvendo possíveis desvios de ex-presidentes, incluindo o titular Peña Nieto e a criação da Guarda Nacional, plano oficial de reunir em uma grande corporação as forças policiais e armadas, tática que pode ensejar a excessiva militarização da polícia, de acordo com observadores do assunto. Da porta para dentro também surgem ressalvas a respeito da nomeação em ministérios como o da agricultura, que será ocupado por Víctor Villalobos, ligado à multinacional dos transgênicos Monsanto, colocando em questão a amplitude do pacto a ser negociado com segmentos influentes.

“O movimento campesino terá um respiro para uma situação muito difícil, mas existe preocupação com as nomeações feitas para o setor e com as grandes obras que podem atingir pequenos produtores e comunidades indígenas”, alerta o pesquisador do centro federal Colégio da Fronteira Sul, especialista na área, Peter Rosset.

Há, de outra parte, consensos diante de rupturas sinalizadas contra altas esferas acumuladoras de privilégios, enquanto trabalhadores domésticos e camponeses permanecem à margem da lei. O fim do foro privilegiado, a venda do avião presidencial e o corte no salário da magistratura e do próprio Amlo estabelecerá a linha máxima de 107 mil pesos mensais aos altos funcionários públicos, pouco acima de 20 mil reais.

 Neoliberalismo na veia

Nunca os mexicanos pagaram tão caro pela eletricidade e pela gasolina – em torno de quatro reais o litro. A reforma energética que privatizou serviços aumentou tarifas pouco meses depois dos defensores da venda prometerem o barateamento dos custos e significou de rebote a perda da soberania em uma área sensível. A reforma trabalhista quitou direitos da classe trabalhadora, submetida a um dos mais baixos salários da região e exposta a níveis elevados de informalidade. Aos trabalhadores do ensino, a reforma educacional foi considerada a antesala à privatização do ensino, razão pela qual Obrador anunciou seu veto.

“Já enfrentei muitas reformas ao longo de27 anos no magistério e a última foi feita sem a participação dos professores. Agora há maior contato entre o governo eleito, o sindicato e as representações para reformular o projeto educativo aprofundando os debates. Precisamos  expandir o ensino técnico e as chances de capacitação em zonas rurais e industriais, por exemplo”, contextualiza a professora de Historia Juana Cerda,moradora de Sao Cristobal, no estado de Chiapas, sul do México, onde e possível almoçar por seis reais e encontra-se grande número de ambulantes nas ruas. Apesar de dados oficiais indicarem o menor desemprego da história, mais da metade dos trabalhadores encontra-se na informalidade.

Ao mergulho no neoliberalismo combinou-se a explosão da violência retratando a síntese da presidência de Peña Nieto, incapaz de reverter o domínio do narcotráfico em diversas localidades e a normalização  dos assassinato políticos em  todo o território. O desaparecimento de 43 estudantes de Ayotizinapa segue um drama para os mexicanos quatro anos após o ocorrido e uma infeliz marca dos últimos seis anos, os mais violentos perante os  122 mil homicídios registrados, incluindo grave índice de feminicídios.

“A cidadania preferiu a mudança pois não via avanços nas administrações passadas. Há um dever da classe política para responder a falta de segurança, emprego, saúde e crescimento econômico”, reconhece o deputado Xavier Zuniga, eleito pelo PAN, partido que deve liderar o bloco oposicionista ao ser o segundo maior partido do congresso.

Dos problemas postos aos que surgem, o tradicional corredor migratório representado pelo México viu-se pressionado com a chegada da caravanas migratória originadas da centroamérica. O apoio de prefeituras e da população tem auxiliado os milhares de migrantes, em que pese manifestações de xenofobia, sobretudo após AMLO falar em receber os estrangeiros que desejem permanecer e buscar colocação no mercado interno, postura contrastada com a violência adotada pelos EUA em relação ao tema – a crise de fronteiras e o acordo de livre comércio exigirá negociações de ambos os países nos próximos meses na longa lista de tensões junto a Trump, o qual não estará presente na posse deste sábado.

Em meio às autoridades mundiais confirmadas para o evento de Nicolas Maduro, preside da Venezuela a Mike Pence, vice-presidente dos EUA, a grande novidade estará reservada ao que poderá representar a estréia do povo no centro do poder. Poucos dias antes da votação que consagrou sua vitória, Obrador lotou o estádio Azteca em um potente ato de campanha diante de cem mil pessoas, agora com o jogo começando a expectativa é de manter a efervescência das multidões mexicanas. Quatro dias após a posse presidencial, em 5 de dezembro, Claudia Sheinbaum (Morena) será a primeira mulher eleita a assumir a Cidade do México numa prévia da intensa agenda política que deve mobilizar o país pelos próximo dias, meses e anos.

“Publicado originalmente em carta capital”

 

 

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Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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