“Por sobre as nossas lindas terras, loiro imigrante andou”: pelo hino oficial de Santa Cruz do Sul, cidade-polo do Vale do Rio Pardo (RS), coração da fumicultura brasileira, já é possível identificar a exacerbação do “germanismo”, termo criado por historiadores para definir a imposição cultural alemã a outras etnias da região.
E a cultura germânica é exaltada por uma indústria que se instalou na região: a do tabaco que, não à toa, enaltece a ascendência alemã como símbolo de disciplina e organização. Não é incomum escutar dos “guias” regionais apontamentos sobre “as diferenças” entre as plantações de folhas de fumo dos “loiros” e do “resto”. De um lado, o capricho é sinônimo de Alemanha. De outro, fica o trabalho daqueles que muitos representantes das empresas chamam de “caboclada”.
“O investimento pesado da indústria em reforçar a hegemonia alemã para garantir o rótulo de melhores produtores de tabaco do mundo resultou em racismo”, comentam João Peres e Moriti Neto, autores do livro-reportagem Roucos e Sufocados: a indústria do cigarro está viva, e matando, que foi lançado no final de agosto pela Editora Elefante.
A situação descrita pelos jornalistas é traduzida pelo Deutschtum, palavra alemã que sintetiza o conceito de “germanismo” como uma ideologia que se refere à conservação das características culturais, sociais, raciais e dos grupos formados por indivíduos de origem germânica. O historiador gaúcho Mateus Silva Skolaude, num trecho do artigo História, identidade e representação social: o caso da comunidade afrodescendente de Santa Cruz do Sul, explica:
“No caso de Santa Cruz do Sul, a década de 1970 é paradigmática no sentido de afirmar a identidade germânica. O município apresenta grandes transformações sociais, políticas e econômicas ocasionadas por um intenso processo de urbanização, acompanhado pelo crescimento demográfico, decorrência do grande fluxo de migrantes vindos de municípios vizinhos e do interior do município, motivados pela perspectiva de trabalho no setor fumageiro, que se encontrava em plena ascensão econômica. Algumas estratégias foram articuladas pelo poder público municipal para a invenção de uma tradição germânica para a cidade”, argumenta Skolaude, santa-cruzense de nascença.
É nesse cenário que as maiores transnacionais de cigarros instalaram sedes no pequeno município, de 773 quilômetros de área e 127 mil habitantes, considerado a “capital mundial do fumo” e o polo aglutinaddor que faz do Brasil o maior exportador de tabaco processado do planeta e vice-campeão mundial em produção da folha, atrás apenas da China.
Fundada em 6 de dezembro de 1877, a cidade fica a 155 quilômetros da capital gaúcha, Porto Alegre, e é um dos principais núcleos da colonização alemã em solo brasileiro. A combinação entre a prevalência da cultura germânica e a presença da indústria fumageira (como é chamado o oligopólio das transnacionais do cigarro na região) concede outro título ao local: além de “capital mundial do fumo”, Santa Cruz aparece como “campeã” de mortes. Está na lista do Mapa da Violência no Brasil, publicado com base em dados do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM), entre as líderes do ranking de suicídios no país.
Para que se tenha uma breve ideia, são 30 as pessoas que se suicidam diariamente no Brasil – 10.950 mil anualmente – o que supera os números diários de vítimas fatais de alguns tipos de câncer. O Rio Grande do Sul, apesar de abrigar somente 14% da população brasileira, é cenário de 23% dos casos anuais (2.518,5), com 10,7 suicídios a cada 100 mil habitantes, o dobro da média nacional (de 5,4), sendo o Vale do Rio Pardo um dos pontos mais alarmantes.
Em 2014, o Mapa já apontava que, das 20 cidades de maior índice, 11 são gaúchas. Entre elas, três estão na região das fumageiras: Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires e Encruzilhada do Sul.
Órgãos municipais também acompanham a situação. E a confirmam. Venâncio, município habitado por 65 mil pessoas, a 30 quilômetros de Santa Cruz, chegou a ser classificado como a “capital mundial do suicídio”, devido a um surto em 1996, quando 37 casos por 100 mil habitantes ocorreram (60% em área rural).
Estranhos números em uma região que, de longe, é vista como próspera. Santa Cruz, por exemplo, carrega boas marcas econômicas. É o quinto colocado entre os municípios rio-grandenses no que se refere ao Produto Interno Bruto (PIB), chegando ao montante de R$ 7,8 bilhões produzidos em 2017, com renda per capita média mensal de R$ 1.036,87, valor maior do que as médias do Brasil e Rio Grande do Sul, R$ 793 e R$ 959, respectivamente.
As corporações do fumo proclamam-se como responsáveis por esse “desenvolvimento”, mas nada falam sobre o envolvimento do cultivo de tabaco com as mortes e as tentativas de suicídio.
“Os fatos, dados e pesquisas que conectam a relação com os suicídios são diversos e não pautam a mídia tradicional. Tentamos descortinar os motivos dessa tragédia disfarçada. Decidimos realizar uma abordagem sistematizada, que começamos em 2015, sobre a formação da rede estratégica da indústria do tabaco no Brasil, bem como da formação discursiva que coloca na arena do debate público atores diversos que fazem a defesa das empresas para que as próprias não necessitem usar vozes diretas. O Brasil tem uma situação sui generis. O grande número de famílias produtoras garante às empresas uma mobilização forte contra a agenda regulatória e em benefício da eleição de parlamentares ligados diretamente ao cigarro”, contam os autores.
Foram quase quatro anos em que os repórteres se envolveram com extensa pesquisa, incluindo leituras de livros e de muitos textos, desde reportagens, passando por pesquisas acadêmicas de diversos níveis, até documentos legislativos e decisões judiciais. E, claro, pé na lama. Estiveram três vezes ao interior do Rio Grande do Sul e uma no Paraná para conversar com produtores, políticos, comerciantes, funcionários das grandes empresas, sindicalistas, técnicos do setor de saúde, membros de universidades, líderes de organizações da sociedade civil, empresários do setor tabagista, advogados e juízes.
“Há muito o que dizer sobre o êxito da indústria do tabaco em causar confusão em torno de fatos Irrefutáveis, como os óbvios problemas de saúde causados pelo cigarro aos fumantes, mas, também, as questões de graves enfermidades geradas aos plantadores das folhas de tabaco, 150 mil famílias na região Sul do país e mais outras no Nordeste. E essa situação só se mantém graças ao lobby que envolve políticos de vários níveis e figurões do Poder Judiciário, inclusive que passaram pelo STF (Supremo Tribunal Federal). O livro busca desvendar essa rede”, concluem os autores.
João Peres é autor de Corumbiara, caso enterrado (Elefante, 2015), livro-reportagem que esteve entre os finalistas do Prêmio Jabuti em 2016 e foi agraciado com o segundo lugar no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo em 2015. Foi editor e repórter da Rede Brasil Atual entre abril de 2009 e novembro de 2014, após ter passado pelas redações das rádios Jovem Pan AM e BandNews FM. É tradutor do livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, de Tom Slee (Elefante, 2017). Nos últimos anos tem se dedicado a investigar o setor privado. É um dos fundadores do site O joio e o trigo, especializado em política alimentar.
Moriti Neto é jornalista, com passagens pelo site Rede Brasil Atual, pelas revistas Fórum e Caros Amigos, e pelo blog Nota de Rodapé. Também colaborou com jornais e sites do interior paulista. Recebeu o primeiro e o segundo lugar no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo em 2014 e 2015, e o Prêmio Anamatra de Direitos Humanos em 2016, por reportagens produzidas para a Agência Pública. Como professor, coordenou o jornal Matéria-Prima, do curso de jornalismo da Unifaat, que em 2013 recebeu quatro menções no Prêmio Yara de Comunicação. É um dos fundadores do site O joio e o trigo, especializado em política alimentar.
Serviço:
ROUCOS E SUFOCADOS
R$ 45,00
FRETE GRÁTIS!
Roucos e sufocados: a indústria do cigarro está viva, e matando
Autores: João Peres & Moriti Neto
Capa: Ana Carolina Soman
Diagramação: Bianca Oliveira
Projeto gráfico: Bianca Oliveira
Editora Elefante
Lançamento: agosto 2018
Páginas: 308
ISBN: 78-85-93115-16-5
Dimensões: 14 x 21 cm