Entre as expectativas de finais de ano, a escolha das palavras que marcaram os 365 dias da nossa jornada configura tradição que mobiliza expressivo pedaço do planeta. Desta feita, a bola da vez ficou albergada nos campos do feminismo e do youthquake, (em tradução livre, terremoto jovem). Escolhidas respectivamente pelos dicionários Merriam-Webster e Oxford, há algo de instrutivo nessas duas expressões, que se mostram como poderosas ferramentas para nos guiar em nossa labuta neste 2018 que irrompe topetudo, nos desafiando até não poder mais.
O portal do Merriam-Webster arrolou alguns acontecimentos que favoreceram o aumento de 70% na busca pelo termo feminismo em 2017: a Marcha das Mulheres, em Washington, D.C., após a eleição de Donald Trump; a afirmação de Kellyanne Conway, diretora da campanha eleitoral de Trump, de que ela não se considera uma feminista no “sentido clássico”; a estreia do filme Mulher Maravilha, o lançamento da série O conto da Aia (que retrata uma distopia patriarcal em que mulheres são tratadas como reprodutoras), as denúncias de abuso sexual em Hollywood.
Já o Oxford flagrou as mudanças culturais, políticas ou sociais promovidas pelos jovens, assinalando que youthquake representa o poder da chamada geração millennial. A palavra, cunhada há quase 50 anos por Diana Vreeland, então diretora da revista Vogue, tem sido usada para descrever fenômenos que incluem o crescimento do apoio dos jovens ao Partido Trabalhista britânico e a eleição de líderes com 30 e poucos anos na França e na Nova Zelândia. Mas tem mais…
Ano novo, novas formas de imaginação
Olhe-se para onde se olhe, sabemos que o ano novo exigirá de cada um de nós energia para uma gestão do comum: nada nos autoriza a pensar ou a dizer que o avanço neoliberal em nossas plagas recuará; nada, absolutamente nada, nos permite afirmar que o debate enviesado sobre moral e bons costumes arrefecerá; nenhum rastro de sanidade nos leva a supor que as incertezas da operação Lava Jato serão benéficas para o país…
Saindo do nosso quintal, nenhuma avaliação nos anima a decretar o ocaso da direita na América Latina e da extrema-direita na Europa. Nem nos nossos melhores sonhos, avistamos uma solução definitiva para a crise na Venezuela. Enfim, podemos ter um 2018 tão cara de 2017. Mas também podemos conceber o mundo de outra forma.
Como pensar e propor alternativas para um cenário assaz nebuloso? De que maneira acreditar que a vida pode ser gestada de outra maneira? Como produzir um inventário capaz de reunir as múltiplas inteligências, as passagens, os gestos, os pensamentos que poderiam favorecer a saída deste estado caótico?
No pêndulo que pende para a ameaça, como apostar em uma mudança de movimento que se incline para a esperança?
A filósofa Hanna Arendt costumava dizer que é preciso treinar a imaginação para sair em visita. Estou com ela. Não basta apenas entender o Brasil e o mundo (tarefa por si só difícil), mas é preciso imaginá-los, sair em visita, construir novas utopias, novas formas de pensamento, novos modos de organização política. É preciso escutar os rumores e murmúrios da vida. O bom e velho Marx já anunciara, em 1848: “uma nova revolução só será possível na sequência de uma nova crise. Mas aquela é tão certa como esta”. Insisto: das ruínas e escombros, é preciso (voltar) a imaginar o Brasil.
A insurreição é feminista e jovem
A luta das mulheres e dos jovens no mundo é uma tenaz experiência para fazer da insurreição e da luta uma via inescapável para alcançarmos tal propósito, para que imaginemos o Brasil e o mundo com as lentes da esperança e da renovação. A escolha do feminismo e do youthquake pelos dicionários americano e inglês nos leva a puxar um novelo de longo alcance histórico, que não começa e tampouco encerra sua proeminência no 2017 que acaba de findar.
Ao puxarmos esse novelo de longo alcance histórico, encontraremos diversos focos em que a luta feminista, individual ou coletiva, se insurge, imaginando e construindo outro mundo. Desses focos irradiam: a coragem de uma Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida em São Luís do Maranhão, que escreve em 1859 o primeiro romance brasileiro, Úrsula, em “gesto inédito em todo o território da lusofonia, como nos informa o pesquisador Eduardo de Assis Duarte. Maria Firmina é a primeira mulher a escrever no hemisfério Sul; a genialidade da africana Phillis Wheatley, que funda, em 1773, a escrita feminina negra na língua inglesa, ainda na condição de escravizada, com o livro Poems on various subjects; a bravura da afro-caribenha Mary Prince, nascida e escravizada nas Bermudas, escreve em Londres, após escapar do cativeiro, o livro The History of Mary Prince; a firmeza de uma Nísia Floresta, reconhecida como uma das pioneiras do feminismo no Brasil, que condena a escravidão, toma a defesa dos indígenas.
Dessa lista infinita, não podemos esquecer do protagonismo das mulheres na luta contra a escravidão, das quilombolas, das Dandaras, das Aqualtunes, das Terezas de Benguelas, das líderes indígenas, das mulheres do campo, que até hoje resistem bravamente; da resistência granítica das Yalorixás – guardiães das culturas subalternizadas, vilipendiadas. Inolvidável também o papel das mulheres engajadas na confrontação da exploração capitalista no final do século XIX e início do XX; a participação decisiva que tiveram nos momentos de ruptura, nas revoluções, tal como se sabe da Revolução Russa, para destacar um exemplo.
Incentiva-nos a força diamantina do gesto de Rosa Parks, que se recusou a levantar do espaço reservado para brancos nos EUA segregacionista, abrindo espaço para as reivindicações pelos direitos civis. Deve-se sempre pôr em destaque o avanço das conquistas do feminismo no século XX, considerado o movimento social mais exitoso de nosso tempo pelas mudanças de cenário em diversos âmbitos, em várias partes do mundo
Não podemos subestimar as conquistas dos feminismos negros que, ao apontarem o laço indissolúvel entre gênero, raça e classe, reposicionaram o debate sobre exclusão, pobreza e desigualdade numa chave imprescindível para dimensionarmos o que significa realmente a exploração capitalista. Sem nenhum exagero, adveio das mulheres negras um documento produzido, em 2015, por ocasião da “Marcha pelo Bem Viver e contra o Racismo” que nos leva a imaginar um outro Brasil, a alimentar as utopias, ao mesmo tempo em que aponta os limites e malogros da Política em curso.
Da insurreição dos jovens, igualmente, são várias as lições que podemos tirar para começar este novo ano com impulso renovado. A história nos mostra como a juventude se colocou, ao longo do tempo, na vanguarda de várias lutas ao redor do mundo, enfrentando o sistema com o preço de sua própria vida. Das pautas específicas relacionadas às demandas juvenis, alargaram seu escopo de reivindicação, alcançando as estruturas mais profundas.
O famoso Maio de 68 na França (não esqueçamos: a década de 60 do século XX foi um clarão na história da humanidade), as manifestações nos EUA na mesma década, a força da juventude brasileira contra a ditadura, as vozes contra a colonização em África, os movimentos de rua contra o aumento das passagens de ônibus em várias quadras da nossa história, a deposição de presidentes aqui e em vários lugares, as renovações das utopias, a persistência da juventude negra em querer viver…
Toda essa herança poderá, inclusive, ser acionada neste momento para alimentar outros sonhos de uma parcela da juventude que espantosamente cerra fileiras para cultuar MBLs da vida, Bolsonaros… e, por isso, se torna menos sonhadora e mais raivosa. A organização das frentes populares de esquerda com ações articuladas para este ano é um alento, posto que sinalizam que podemos virar o jogo e refundar a Política com o combustível do inconformismo.
Se, de fato, 2018 não será para o fracos, é preciso que nos espelhemos nesses exemplos que fizeram o mundo muito melhor. Das mulheres e dos jovens, desses que sonharam, imaginaram, ousaram, é preciso ter a coragem necessária para honrarmos o que fizeram por nós. A propósito, a famosa frase do maio de 68, uma bela expressão da utopia da juventude, um mantra para mim, serve-nos de enunciado indispensável para o início de ano:
Sejamos realistas, peçamos o impossível: Um feliz 2018!
*Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).