Texto e fotos por João Bacellar, Estúdio IIIM, para os Jornalistas Livres
No século XVI, inicio da chegada sistemática europeia à América do Sul, estima-se que no atual território brasileiro havia cerca de cinco milhões de pessoas divididas em mais de mil culturas indígenas. No século XXI resta menos de um quinto desse contingente populacional; 750 mil pessoas. E as culturas originárias sul americanas no Brasil já não chegam a 180. Um desses resilientes povos é o Guarani M´bya.
Tekoa Pyau – Aldeia Nova, em guarani – é uma das 4 comunidades Guaranis M´Byas do Bairro do Jaraguá em São Paulo, capital.
As 135 Famílias residentes da aldeia fazem parte dos cerca de 725 guaranis que formam a comunidade total habitante do entorno da reserva ambiental do Pico do Jaraguá. Trata-se da segunda aldeia a ser formada no bairro e de um dos principais motores da expansão da comunidade indígena na região.
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Embora “tekoa” seja comumente traduzido como aldeia o termo possui conotação mais abrangente querendo dizer precisamente “o lugar, o território, onde se pratica o modo de vida guarani.” Tal conceito é importante para a compreensão da relação deste povo com seu lar.
Tekoa Pyau não é apenas uma ocupação ou assentamento; para seus habitantes trata-se de um local sagrado.
Alísio Tupã Mirim, Um dos primeiros moradores da aldeia ensina: “Onde vive nosso espírito, onde vive nosso Deus, não é longe. Ele está aqui. Todo minuto, todo momento. Pela conversa, pelo pensamento, pelo sol, pelo vento, pela chuva. É tudo “transporte” de Nhanderú”.
Segundo a lenda de criação guarani Nhanderú Papá, o Deus universal, com a ajuda de seus irmãos Peru Rimã e Xariã, em não existindo nada, nenhum material até então, construiu a terra, a fauna e flora e os povos humanos com a própria carne. Para os Guaranis a terra contém em si a essência de Deus, sua materialidade e, especificamente, a terra habitada por eles é a parte de Deus que lhes foi destinada. Para o Guarani não existe diferença entre religiões, consideram que aquilo que os juruás (não-índios) chamam de Deus ou Jesus e Nhanderú são a mesma entidade compreendida de modo diferente.
Dentro do código de ética guarani m´bya toda ação realizada com bondade e no melhor interesse da coletividade é a expressão do desejo e manifestação de Nhanderú Papá. A ocupação de um terreno abandonado numa região tradicional do antigo território guarani (o Pico do Jaraguá é uma histórica referência geográfica para esse povo) com o objetivo de utilizá-lo para a perpetuação de seus costumes faz todo o sentido e está em consonância com suas crenças mais enraizadas. Habitar essa área, portanto, vai muito além conseguir a posse jurídica oficial de alguns hectares.
Para uma das jovens lideranças, Vitor Karai Mirim, além da espiritualidade também existe a questão de transmissão cultural: “A terra de Tekoa Pyau é importante para nossas crianças, pro jovem, a gente precisa desse apoio do governo para poder manter a nossa cultura. Sem terra, sem demarcação, a gente não pode realizar nossa educação diferenciada. O povo guarani, tudo que a gente aprende, é com a terra. É mãe de todo mundo. Da terra a gente tira alimento pra fortalecer nosso corpo, da terra a gente tira água pra tomar, enquanto a gente vive estamos em cima da terra e quando a gente morre a terra é quem recebe nosso corpo”.
Patrícia Jaxuká, neta do cacique e pajé da Aldeia Nova, senhor José Fernandes Karai Poty, segue os passos do avô na luta pela demarcação e melhoria das condições de vida na aldeia; “Nossa situação aqui não é tão boa, a luta continua contra esse governo e esse ministro que tirou nossos direitos (…) nosso sonho, do nosso povo, é realizar a demarcação. Pra comunidade poder viver mais tranquila”.
Jaxuká refere-se a um imbróglio jurídico no qual a posse, via demarcação, do território das aldeias do Jaraguá está em xeque.
Quando seu avô Karai Poty chegou à região na década de 90 para visitar a tia Jandira Kerexú fundadora da comunidade de Tekoa Ytu, localizada logo a frente de Tekoa Pyau, com o objetivo de tratar seu pai enfermo, instalou-se, a princípio temporariamente, no terreno abandonado que viria a ser Tekoa Pyau.
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José Fernandes Karai Poty desde aquele tempo já era considerado um dos mais importantes pajés e curadores espirituais guaranis do Brasil, sua presença no Jaraguá estimulou a chegada de muitas famílias em busca de tratamento tradicional, aos poucos a morada improvisada de Karai Poty expandiu-se dando origem à Aldeia Nova. O pajé acredita ter recebido a orientação de Nhanderú Papa para fundar essa nova Tekoa.
A minúscula área de 1,7 hectares que forma Tekoa Ytu, a menor reserva indígena do Brasil, foi doada e regulamentada. Ela é habitada pelos guaranis desde a década de 60. Em 86 o Incra e a Funai reconheceram as aldeias do Jaraguá como terras indígenas (TIs). A demarcação do 1,7 hectares de Tekoa Ytu foi homologada em 87.
Com o crescimento demográfico e criação de novas tekoas os guaranis passaram a pleitear a demarcação de 512 hectares, espaço suficiente para preservarem seu modo de vida e garantirem a ocupação das famílias já instaladas.
Em 2015 a Portaria Declaratória 581 do Ministério da Justiça (MJ) aceitou o reconhecimento dos 512 hectares como ocupação tradicional indígena. No entanto, já sob o comando do governo de exceção de Michel Temer, a portaria 683 do MJ, de Agosto de 2017, anula a 581.
Além dessas dificuldades, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) apresentou denúncia sobre, entre outras acusações, uso de entorpecentes e abuso infantil nas TIs do Jaraguá. Tudo isso num contexto onde o governador tucano Geraldo Alckmin sancionou, em 2016, projeto de concessão para a iniciativa privada de 25 parques estaduais, incluindo o do Jaraguá, que permitiriam desde a exploração de serviços como o ecoturismo até corte de madeira e extração de subprodutos florestais.
Até onde a denúncia do MPSP é motivada por espírito público ou por pressão econômica, dado o timing da ação, é no mínimo uma questão a se considerar. O que, entretanto, não é passível de especulação, mas realidade é a dura situação dos moradores da Aldeia Nova.
Imprensados entre duas rodovias, sem uma área suficientemente abrangente para levar seu modo de vida tradicional baseado em pequenos roçados familiares para subsistência e utilização da mata virgem na obtenção de remédios tradicionais, caça, pesca e materiais de construção e manufatura, os m´byas do Jaraguá vivem numa espécie de limbo; nem moradores comuns de uma típica periferia brasileira, nem indígenas que podem exercer plenamente sua cultura.
Ébrio, com o rosto machucado, causando visível desconforto nos demais membros adultos da aldeia (e diversão entre os curumins) Levi Tupã Mirim resume de maneira simples, porém contundente e verdadeira, um lado triste da vida em Tekoa Pyau; “Eu gostaria que o governo visse o que estamos passando… Tem dia que a gente come, tem dia que a gente não come”.
Dependendo basicamente da venda de artesanato, que gera pouquíssimos recursos, e alguma assistência governamental mínima, tal como ajuda de ongs ou doações particulares, a situação econômica é desesperadora. Os problemas sanitários são gravíssimos; falta saneamento básico e coleta efetiva de resíduos. Problemas que associados ao grande número de animais soltos (galinhas, cachorros, gatos) geram zoonoses e doenças relacionadas à insalubridade. Parasitas de todos os tipos castigam os moradores.
A necessidade cotidiana de renda impulsiona os artesãos a não realizarem apenas os trabalhos tradicionais guaranis, dessa forma padrões de artesanato de outros grupos étnicos considerados mais vendáveis ou mesmo sem qualquer tipo de relação com a arte indígena são confeccionados, o que, obviamente, contribui para a diluição da cultura original.
Embora despendam um grande esforço para manter sua língua e seus costumes, a interação com o entorno é difícil. Os guaranis, expostos a todos os problemas típicos das periferias paulistanas, resistem como podem aos assédios juruás: à aculturação, ao alcoolismo (povos indígenas são, por fatores genéticos, intolerantes ao álcool), ao consumismo e à tentação, principalmente entre os jovens, de simplesmente abandonar seu modo de vida por um subemprego qualquer.
Sua resistência é impressionante, historicamente a nação guarani é uma das mais bem-sucedidas em termos de adaptação à invasão europeia, porém precisam – e muito – de toda a ajuda disponível e a se mobilizar para conseguirem a justa e sonhada demarcação definitiva.
Para além da justiça de se reestabelecer direitos de um povo historicamente perseguido e roubado em seus domínios, pessoas oprimidas em seu modo de vida e escravizadas em seus corpos, para além da questão humanitária em aliviar as provações pelas quais passam neste momento, defender a demarcação e a preservação da cultura guarani m´bya é ser inteligente e humilde o suficiente para compreender o quanto seu modo de vida, suas relações interpessoais e formas de convívio harmônico consigo próprios, com outros povos e com a natureza tem a contribuir como ensinamento para o modo de vida dos juruás – os não-índios – tão desarmônicos entre si, belicosos e destruidores do meio natural.
A luta guarani é a luta de todos nós; a garantia de direitos legítimos, estabelecidos, justos e eticamente intocáveis.