Matem o que uma pessoa mais ama e valoriza, e o que resta é um cadáver ambulante

O reitor ainda jovem, quando atuava no movimento estudantil contra a Ditadura Militar. Foto: Celso Martins

Por Antonio Acioli Cancellier especial para os Jornalistas Livres:

“Decorridos 30 dias, sem nenhuma manifestação do Ministro da Justiça, fomos surpreendidos pela informação de que a referida delegada foi promovida à superintendente da PF em Sergipe. Surpresa, decepção e muita indignação, pois pelas normas do serviço público federal, servidores que estejam submetidos a sindicâncias ou processos administrativos disciplinares, nem férias podem gozar. E ela foi promovida… Estão gozando com a nossa cara, ou pior, com este gesto, o novo diretor da Polícia Federal está dando uma tapa na cara da sociedade”.

No DIA dois de dezembro lembramos, com pesar e saudades, a passagem de dois meses da morte do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o meu querido irmão Cau. Em 14 de setembro, os responsáveis pela operação OUVIDOS MOUCOS arrancaram Cau de sua cama. Levaram não um santo, não um herói, mas um homem digno, um professor respeitado, um jornalista competente, um estudioso do Direito, um jurista, pessoa cordial, sempre aberto ao diálogo.

Como um condenado foi conduzido a uma prisão de segurança máxima, permanecendo nu por cerca de duas horas na frente de outros prisioneiros, submetido à vexatória revista invasiva íntima, algemado nas pernas e mãos. Alguém conhece a súmula vinculante número 11 do Supremo Tribunal Federal? Vestiu o uniforme laranja e mandado para a cela; claro, sem esquecer as piadinhas óbvias.

Irmãos Cancellier, Acioli e Júlio, na formatura do reitor em Direito

Mas como réu condenado, foi tratado também pela imprensa, pois repercutiram e ampliaram uma informação falsa, divulgada pelo próprio Facebook e site oficial da Polícia Federal, que a operação investigava o desvio 80 milhões de reais do programa de Ensino à Distância na UFSC. Era mentira: Cau não foi acusado de desviar um centavo da UFSC, mas 80 milhões de reais são belas manchetes para alimentar a fúria justiceira de uma matilha impregnada de ódio, alimentada pelas manchetes da TV e replicada ad infinitum nas redes sociais.

Como jurista, Cancellier sabia muito bem que as acusações que pesavam contra ele não tinham consistência alguma. Ao mesmo tempo, imagino que em sua cabeça martelava a máxima de outro luminar, Rui Barbosa: “Justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada.” E como cidadão, acostumado ao dia a dia das operações midiáticas e espetaculosas, certamente imaginava que dificilmente poderia se livrar da mácula que lhe foi gravada na alma a ferro e fogo.

No dia 2 de outubro, se atirou do quarto andar de um shopping center de Florianópolis. Junto ao seu corpo destroçado, um bilhete: “MINHA MORTE FOI DECRETADA QUANDO FUI BANIDO DA UNIVERSIDADE!!!” Nove palavras que valem por um testamento. Nove palavras que sintetizam todos os manuais de psicologia: matem o que uma pessoa mais ama e valoriza, o que resta é um cadáver ambulante.

Nos devolveram um simulacro daquele grande homem que nos roubaram. Seus ossos estavam quebrados, o corpo estraçalhado, ensanguentado; mas não satisfeitos, os carrascos também o cobriram de excrementos, pois aos fascistas não basta a morte clínica, necessitam também cobrir o cadáver com as marcas de desonra. E os fascistas se travestem de democratas nas redes sociais, muitas vezes vestem togas, como disse o desembargador Lédio Rosa de Andrade. Mas também se escondem sob o manto de jornalistas honestos em veículos hipócritas, que vendem à sociedade a ideia que a corrupção deve ser banida, quando, na realidade, a eles só interessam defender os privilégios dos seus apaniguados.

Acioli, diante do cadáver do irmão: “Nos devolveram um simulacro daquele grande homem que nos roubaram” Foto: Pipo Quint Agecom/UFSC

No dia 31 de outubro, entregamos ao Ministro da Justiça uma representação solicitando a abertura de PROCEDIMENTO DE RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA, CIVIL E PENAL contra a delegada da Polícia Federal Érika Mialik Marena, responsável pela operação Ouvidos Moucos. Decorridos 30 dias, sem nenhuma manifestação do Ministro da Justiça, fomos surpreendidos pela informação que a referida delegada foi promovida à superintendente da PF em Sergipe. Surpresa, decepção e muita indignação, pois pelas normas do serviço público federal, servidores que estejam submetidos a sindicâncias ou processos administrativos disciplinares, nem férias podem gozar. E ela foi promovida… Estão gozando com a nossa cara, ou pior, com este gesto, o novo diretor da Polícia Federal está dando uma tapa na cara da sociedade.

O que nos conforta é o apoio e solidariedade que diversos segmentos da sociedade têm emprestado à família. Juristas, juízes, desembargadores, professores, alunos, servidores públicos, membros do Legislativo e alguns órgãos da imprensa que apoiam a família e nos incentivam nesta árdua caminhada em busca da Justiça.

Nos conforta saber que pessoas como a médica do trabalho Edna Maria Niero, depois de preencher o minucioso formulário do Sistema Nacional de Agravos de Notificação com os seus dados e as condições do óbito, a médica atestou que o nexo causal da morte do reitor é relacionado ao trabalho: “Não tive nenhuma dúvida”, afirma ela. “Quando foi violentamente alijado do local onde atuava no auge da sua gestão, o reitor foi também arrancado de sua própria vida”.

Edna Maria Niero: “Quando foi violentamente alijado do local onde atuava no auge da sua gestão, o reitor foi também arrancado de sua própria vida”

Segundo ela, as circunstâncias da morte do reitor tiveram imediata repercussão entre os profissionais que integram a área da saúde do trabalhador, entre médicos, psicólogos, enfermeiros, psiquiatras, assistentes sociais, antropólogos etc. “Nós discutimos o caso amplamente em congressos, reuniões e fóruns virtuais da área. Para o conjunto de técnicos não houve dúvidas de que se tratava de acidente do trabalho: “Em todo o Brasil ficou claríssimo para os profissionais da saúde do trabalhador: foi acidente do trabalho, um transtorno mental que levou ao óbito. A proibição de circular na universidade onde realizou a maior parte de sua trajetória de vida e a humilhação que sofreu levaram-no à decisão de acabar com o seu sofrimento.” Tirar o trabalho de alguém é, portanto, tirar a sua vida. E nós sabemos que a universidade era a vida do reitor”. (Reportagem completa em https://jornalistaslivres.org/2017/12/exclusivo-suicidio-do-reitor-cancellier-foi-notificado-como-acidente-do-trabalho-provocado-por-constrangimento-moral-insuportavel/)

No dia 31 de outubro, o Congresso Nacional se reuniu em sessão solene para homenagear a memória do Professor Cancellier.

Dentre as várias personalidades que fizeram uso da palavra naquela ocasião, calou fundo em nossos corações e mentes o brado da ex-senadora Ideli, do qual recorto o seguinte trecho: “E é desse corpo caído, do nosso querido Cau, do Reitor da nossa Universidade Federal de Santa Cataria, que ecoa o grito por justiça e por respeito ao Estado de direito para todos, para brancos e pretos, para homens e mulheres, para ricos e pobres. É esse corpo caído, essa vida que se joga, que exige que milhares, milhões de corpos se levantem. Que a vida se erga para barrar o Estado de exceção. Que se erga contra o avanço do fascismo e do autoritarismo. Que se erga pelo Estado de direito.

 

Cau presente, hoje e sempre!

 

 

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