PRENÚNCIO DO FASCISMO: “Já era a manifestação do projeto de morte no qual as elites brasileiras irresponsáveis estão lançando o país agora” (jurista Lédio Rosa)
“A memória é subversiva porque é capaz de renovar a esperança e evitar que ressurjam páginas viradas da nossa história (Padre Vilson Groh)
Por Moacir Loth e Raquel Wandelli
Indignação e dor contra o abuso de poder que matou o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo marcaram o ato realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, no dia do primeiro aniversário do seu desaparecimento. Cau, como era conhecido, cometeu suicídio no dia 2 de outubro de 2017, como resposta às humilhações e torturas sofridas durante a Operação Ouvidos Moucos, levada a cabo pela Justiça Federal, Ministério Público e Polícia Federal, atendendo a argumentos forjados pelo então corregedor da própria universidade. Um ano depois, um processo de 800 páginas não encontrou uma prova sequer que justificasse a prisão, a violação dos direitos constitucionais e muito menos a proibição do acesso à universidade que dirigia por voto direto da comunidade universitária. Na homenagem política e religiosa, oito discursos emocionaram estudantes, professores, técnicos administrativos e pessoas da comunidade que lotaram o Templo Ecumênico da UFSC.
A injustiça e o abuso de poder serviram como fio condutor para as manifestações. O microfone foi usado para defender a verdade, o respeito ao Estado Democrático e de Direito, a liberdade de expressão diante da ameaça vivida pelo Brasil com a ascensão de um candidato fascista, também sustentada no ódio cego e nas mentiras oficiais que destruíram a reputação do reitor. Antes dos discursos, a apresentação do Madrigal e Orquestra de Câmara da UFSC abriram com o Lamento Sertanejo, que já se tornou um emblema da saga do reitor suicidado.
Padre Vilson Groh lembrou o sermão do Papa sobre “os tempos difíceis”, em referência às ondas conservadoras que vêm eclodindo perigosamente no mundo. Acentuou a importância de não perdermos a memória dos que tombaram no caminho da história pela democracia e pela justiça social. “As pessoas precisam se alimentar dessa memória, que é extremamente subversiva, porque é capaz de trazer de volta a esperança”. A memória é tão transformadora, segundo ele, que pode evitar o ressurgimento de páginas viradas da história. Evocando a resistência, manifestou-se contra a naturalização do imobilismo. “Temos que arregaçar as mangas e conjurar, de forma coletiva, o verbo esperançar”, convidou. Defendeu a utilização dos espaços educativos, como a universidade, para “produzir, acalentar e materializar os sonhos do povo”. Militante pela vida dos jovens das periferias de Florianópolis, falou sobre os projetos que seu Instituto havia firmado com Cancellier (renovados pelo novo reitor) para dar apoio à formação desses jovens antes de serem assassinados pela polícia e pelo tráfico.
O suicídio político do reitor da UFSC foi um sinal evidente dos horrores que estavam preparando para o país, no discurso dramático do seu melhor amigo, o desembargador aposentado e candidato ao Senado pelo PT, Lédio Rosa de Andrade. Amigo de infância e colega na universidade, Lédio foi ovacionado ao repudiar a irresponsabilidade da Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal. “Prenderam e humilharam um inocente; prenderam quem não poderiam ter prendido”. O processo de liquidação moral e jurídica do companheiro de juventude e movimento estudantil foi, na sua definição, “um abuso inominável de ilegalidade do Estado, que é o maior responsável por mortes de cidadãos em todo o mundo”. O Estado mata em nome do monopólio da violência desde a Idade Média, contextualizou, qualificando a perseguição e prisão de Cau como barbárie.
Dizem que quando o tempo passa a dor e a revolta amenizam, mas para Lédio, depois de um ano, a inconformidade só aumentou, agravada pelo perigo que o país sofre. “A única coisa que me conforta é pensar que ele estaria ao nosso lado agora lutando contra essa ameaça”. Seu apelo à luta com a voz embargada culminou com uma advertência sobre o perigo enunciado pelo gesto político do suicídio de Cancellier. “Não podemos duvidar da irresponsabilidade das elites deste país diante desse projeto de morte que ameaça hoje a sociedade brasileira”. O fascismo está espreitando as nossas portas, acrescentou: “Urge conter os fascistas que estão na imprensa, nas universidades e nas ruas”. O discurso da violência está se generalizando: “Não é uma questão de esquerda ou de direita. A democracia é um valor fundamental que deve ser ensinado em sala de aula. A ordem do dia é lutar contra o fascismo”.
Pedindo desculpas por estar num ambiente de celebração ecumênica, o estudante Isaac Kofi Medeiros anunciou que era preciso falar da indignação de toda a área jurídica com a “violência institucional” que culminou com a morte do seu mestre do Curso de Direito. Indignação com as “800 páginas de um processo infame que não encontrou um único crime cometido por Cancellier”. Aplaudido com veemência, o líder estudantil denunciou a tentativa de “criminalizar e censurar a indignação da comunidade universitária contra o abuso de poder”, referindo-se à ação judicial movida pela delegada Érika Marena contra o atual reitor e seu chefe de gabinete por causa de uma faixa estendida no hall da reitoria com fotos dos responsáveis pela prisão e abusos de poder contra o reitor envolvidos na Operação Ouvidos Moucos. “Eles se esquecem de que ali foi o palco onde milhares de estudantes se reuniram para derrubar a ditadura, entre eles, o nosso reitor”. Lamentando a ausência do líder no clima de intolerância que ameaça o Brasil, advertiu que o Estado policialesco jamais conseguirá calar a universidade, que se manterá “coesa na defesa da autonomia, da liberdade e da democracia”.
“Indignação por acharmos que o absurdo humano e a violência institucional haviam atingido seu limite, eles retornaram neste ano e tentaram censurar até nosso luto, através de uma ação policial vergonhosa movida contra os professores Ubaldo e Aureo, a pretexto de salvaguardar a honra de alguém que nunca pensou na honra do reitor Cancellier”.
Em nome dos servidores técnico-administrativos, o trabalhador Marco Martins lamentou que um reitor cuja marca era a tolerância extrema e a humildade tenha sido vítima fatal da intolerância. “Ele era tão próximo de nós, que nunca consegui chamá-lo de professor, que dirá de reitor”. Contou que Cancellier havia implantado o diálogo e buscava permanentemente a pacificação do ambiente universitário. Num testemunho muito emocionado, revelou que quando foi surpreendido pela violência do Estado policialesco, Cancellier estava empenhado em garantir uma “convivência saudável” e “plural” na UFSC. Lutando contra as lágrimas, indagou: “Que justiça é essa?”
O diretor do Centro de Ciências Jurídicas, professor José Isac Pilatti, membro da Academia Catarinense de Letras, afirmou que o abuso institucional atirou a UFSC numa “crise injusta e inexplicável”. Com versos de Fernando Pessoa, Pablo Neruda e Cruz e Sousa, que falam sobre a permanência do significado de uma existência após a morte, referiu-se ao reitor suicidado como “luz serena e imortal”, “anfitrião das minorias” e “conciliador das maiorias”.
Por fim, o professor do Curso de Jornalismo e Chefe de Gabinete, Áureo Moraes, encerrou a homenagem com a entrega de uma placa aos familiares com um trecho do artigo derradeiro de Cancellier, escrito em 29 de setembro de 2017, três dias antes de mergulhar no seu voo de sacrifício?
“Ao longo de minha trajetória como estudante de Direito – na Graduação, no Mestrado e no Doutorado – depois como docente, Chefe do departamento, Diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, afortunadamente, como Reitor da UFSC, sempre exerci minha atividade tendo princípio a mediação e a resolução de conflitos com respeito ao outro, levando a empatia ao limite extremo da compreensão e da tolerância. A instituição, tenho certeza, é muito mais forte do que qualquer outro acontecimento.”
Morre o reitor, a universidade permanece. E dessa forma sua vida continua na luta pela universidade pública. É a mensagem.
Ubaldo Cesar Balthazar
Reitor da UFSC, doutor em direito, escritor e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.
Há exatos 365 dias perdíamos, de forma trágica, um amigo, um líder, uma referência. O reitor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, nos deixava, após um ato de coragem.
Digam os críticos o que quiserem. Mas, para nós que o conhecemos, foi um gesto verdadeiro de coragem. Uma medida extrema, sim. Mas julgada, por ele, como necessária, indispensável e fundamental. Um genuíno sacrifício em nome de tudo aquilo no que ele acreditava e que lhe havia sido extirpado da forma mais vil, da maneira mais indigna e por métodos que ele aprendeu, em 59 anos de vida, a combater.
O reitor da UFSC, que apenas um ano e cinco meses antes havia assumido a função, estava no auge de sua disposição. Na semana em que foi preso, junto com outros colegas, tinha retornado de uma viagem para definir novos espaços de atuação internacional da instituição.
Comandou, na véspera, a última solenidade de formatura. E foi despertado, na madrugada seguinte, por agentes encapuzados, fortemente armados, e conduzido –sem saber a razão– para a Polícia Federal e, depois, encarcerado na ala de segurança máxima da penitenciária estadual.
Exilado, como disse à época, viu sua reputação ser escorraçada. Seu nome estampado em todas as mídias como “chefe” de uma organização que “desviou” R$ 80 milhões. E uma trajetória política iniciada na década de 1970, e consolidada pela brilhante carreira na UFSC, sendo simplesmente ignorada. O Cau “foi suicidado”, como diziam alguns cartazes no dia de seu enterro.
Um homem sem nenhuma vaidade pessoal, que ostentou uma única riqueza: a intelectual. Um homem sem grandes posses e que, como milhões de educadores brasileiros, morava num apartamento de cerca de 90 m2, rodeado por quase 2.500 livros. Ali sim, talvez, existisse algum risco àqueles que contribuíram para que fizesse seu último ato político.
Nenhum ilícito lhe foi imputado, todos os seus atos foram dentro da lei e, principalmente, todos no espírito de engrandecer a instituição que tanto amava.
Entregamos recentemente um memorial ao ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann, e ao governador do estado de Santa Catarina, Eduardo Moreira, aos quais solicitamos providências ao que nos pareceu o uso excessivo da força e de arbitrariedades sofridas pelo reitor e pelos demais colegas no processo de condução e depois no cárcere. Isso precisa ser rigorosamente apurado.
Sentimos, ainda, muita falta do Cau. Pelo que ele representava de equilíbrio, habilidade no trato com todos, na sua insistência pelo diálogo, pela tolerância, pela agregação. E temos dito que jamais iremos esquecer o que aconteceu.
Ao mesmo tempo, contudo, temos uma longa batalha a travar. Precisamos enfrentar as ameaças externas à nossa autonomia, as tentativas de cerceamento da liberdade de expressão, as intimidações de que viemos sendo vítimas, os ataques de vários setores do próprio Estado que parecem estar em uma cruzada sem precedentes contra a nossa e as demais universidades públicas brasileiras.
Um Estado que, nos parece, cada vez mais longe da regra e explicitamente associado à exceção.
Dos princípios e valores defendidos pelo Cau não nos afastaremos. Seu legado nos inspira a fortalecer ainda mais a UFSC nos próximos quatro anos. Apesar de toda a dor e todo o luto, resistimos, retomamos nossa estabilidade, fizemos uma eleição para a reitoria e o projeto, iniciado por ele, venceu!
Aos poucos os colegas, também injusta e arbitrariamente presos e afastados por um ano, estão voltando. Ele, o nosso Cau, não voltará. Mas a sua honra, sua dignidade e seu nome permanecem vivos e nos motivam a transformar a UFSC naquilo que ele tanto perseguiu: uma universidade em paz, harmonia, e, principalmente, sem medo.