A condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dada por Sérgio Moro, no dia 12 de julho, reviveu o debate nacional sobre a politização do exercício da Justiça. A sentença do juiz de primeira instância já sofreu críticas de juristas de diferentes países e linhas doutrinárias dentro do Direito.
A peça condenatória impressiona pelo seu conteúdo – de atropelos de direitos da defesa durante todo o processo, de impedimento de construção de provas, de apego excessivo a determinada testemunha em detrimento de dezenas de outras, tanto da Defesa quanto da acusação.
A decisão impressiona também pela sua forma, tão assemelhada a um *libelo acusatório, a ponto de dedicar apenas 0,4% de seu conteúdo à análise das testemunhas de Defesa. A sentença parece escrita por *combatente causídico, agindo em favor da acusação, e não por um Juiz de Direito. Veja, abaixo, os pontos de mais descabidos da sentença de Moro contra Lula.
Sobre o tríplex
Na última sexta-feira (14), um oficial de Justiça da cidade de Santos (SP) recebeu ordem de Sérgio Moro para confiscar o tríplex do Guarujá. Por ser considerado o objeto de um crime, o imóvel ficará sob a guarda da Justiça até que toda a tramitação do processo contra Lula se encerre na Justiça. Ou seja, Moro não esperou nem o *trânsito em julgado do processo para confiscar o bem.
A ordem de Moro deverá ser cumprida pelo oficial de Justiça nos próximos dias. Resta saber contra quem será cumprida.
Contra Lula é que não será. O imóvel jamais esteve em seu nome, ou de qualquer pessoa de sua família. O ex-presidente nunca pernoitou por lá, teve as chaves ou usufruiu de qualquer maneira do apartamento. Não há em seu poder ou em qualquer lugar um documento ou objeto que ligue o bem à Lula, não há o que ser confiscado do acusado referente ao imóvel. Tudo isso está provado nos autos e o juiz não coloca em dúvida na sentença.
Deve ser confiscado, então, dos credores da OAS Empreendimentos, empresa proprietária do imóvel ?
“Expeça-se precatória para lavratura do termo de sequestro e para registrar o confisco junto ao Registro de Imóveis”. Assim ordenou Sérgio Moro. No Registro de Imóveis, está a OAS, dona do apartamento.
Vale lembrar que os direitos econômicos do imóvel são da Caixa Econômica Federal, que os recebeu em garantia por negócio firmado legalmente com a construtora. Assim, será o banco estatal aquele com o patrimônio financeiro onerado pela decisão do juiz de primeira instância. Por dever de ofício previsto em lei, deverão, assim, os credores da OAS recorrer à Justiça para retomar seus direitos sobre o bem.
O advogado Guilherme Marcondes, do escritório Marcondes Machado Advogados, um dos maiores do país, declarou que o confisco do imóvel é “ilegal”. “Documental e contabilmente, o tríplex é da OAS, constando inclusive no seu *ativo. Logo, o juízo da recuperação judicial é o único competente para decidir acerca de bloqueios realizados no patrimônio da recuperanda, ou seja, da OAS.”
Sobre os argumentos da Defesa
A sentença de Sérgio Moro não se atém aos argumentos da Defesa, não os rebate mostrando inconsistentes, para justificar a condenação do réu, desconsidera provas juntadas nos autos e é utilizada indevidamente como suporte para críticas aos defensores de Lula e também para rebater as críticas que o próprio juiz recebeu enquanto conduzia o processo.
Uma sentença judicial é dividida em três partes: relatório, fundamentação e decisão:
- A primeira traz informações básicas sobre o processo, como nome das partes e dos advogados e o que está sendo julgado.
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A segunda – a mais extensa – é aquela em que o juiz fundamenta sua decisão, enfrenta os argumentos da Defesa e da Acusação e registra tecnicamente os motivos que levam a balança da Justiça a pender para um lado ou outro.
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A última parte é a decisão, com a pena aplicada e as ordens proferidas para sua aplicação.
A sentença de Moro tem 218 páginas. Como aponta o advogado Wadih Damous, deputado federal (PT-RJ) e ex-presidente da OAB/RJ, cerca de 60 páginas, ou 30% da sentença, são utilizadas pelo juiz para se defender de acusações de arbitrariedades por ele praticadas contra o acusado e nos processos em que atua. E ele o fez como *combativo causídico, a esgrimar-se com a Defesa do ex-presidente como se com ela disputasse o ganho da causa, chegando a chamar o trabalho dos advogados de “a argumentação dramática da Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva” (página 22).
Já outras 16 páginas, ou 8% de toda sentença, atendem a pura vaidade de Moro, pois serviram para que o juiz rebatesse o que disse Lula em seu interrogatório, promovendo um embate pessoal contra o acusado.
Para enfrentar todas as provas documentais e periciais anexadas ao processo pela Defesa (aquelas que foram permitidas, já que ao longo da ação Moro rejeitou o acesso aos autos de documentos solicitados e considerados cruciais para a Defesa), dezenas de documentos que mostram a impossibilidade de Lula ser ou ter sido dono do imóvel, Sérgio Moro fez uso de cinco páginas, ou 2,3% da sentença.
E um grande absurdo foi a fundamentação do juiz para analisar e contrapor as dezenas de testemunhas da Defesa ouvidas nos processos, que deram conta de que Lula nunca teve as chaves, os papéis ou qualquer laço com o tríplex, ou que mostraram não haver relação entre o ex-presidente e os contratos sob investigação da Petrobras, estas receberam nada mais do que 0,4% do conteúdo escrito da sentença. Menos de uma página de um total de 218.
Sobre a super valorização de depoimento de delatores
Foram 73 testemunhas ouvidas em 24 audiências. Mas o conteúdo da maioria desses depoimentos foi verdadeiramente ignorado por Sérgio Moro. Exceto para alguns delatores.
O empresário Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, falou ao processo na qualidade de corréu e delator ou aspirante a delator premiado da Justiça. Na qualidade de corréu, ele não estava, ao contrário de dezenas de testemunhas da Defesa, obrigadas a dizer a verdade.
A condição de delator também inspira cautela do julgador, ao dar peso à suas declarações, uma vez que se trata de um infrator confesso que busca vantagens na Justiça.
O depoimento de Léo Pinheiro, no entanto, foi sem dúvida, o que mais pesou no julgamento, o que mais chamou a atenção do juiz, que a ele concedeu mais espaço na sentença, do que aos de todas as outras testemunhas somados.
- Dois pesos, duas medidas e valorações descabidas
Não passou pela cabeça de Moro considerar a hipótese de que o depoimento de Léo Pinheiro, possa ter sido influenciado pela sua condição de réu em negociação por um acordo de delação premiada.
Já em um dos poucos depoimentos da Defesa a que minimamente se ateve, o juiz de primeira instância não deixou de levantar suspeita em sua fundamentação.
Trata-se de José Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras (2005-12), executivo importante para esclarecer os mecanismos de contratação da estatal, o funcionamento de seus conselhos administrativos e fiscais, a margem de influência que podem ter pessoas e órgãos dentro das decisões da companhia. Moro assim se deteve acerca das informações que ele trouxe ao processo:
“782. Foi ainda ouvido José Sergio Gabrielli de Azevedo, Presidente da Petrobrás entre 2005 a 2012 (evento 607). Negou, em síntese, que tivesse participação ou conhecimento do esquema de corrupção que vitimou a empresa. Também afirmou não ter conhecimento de qualquer atuação do ex-Presidente em relação a esses crimes de corrupção e que nunca recebeu qualquer orientação dele nesse sentido.”
“783. O depoimento de José Sergio Gabrielli de Azevedo não é de muito crédito, visto que era o Presidente da Petrobrás no período em que vicejou o esquema criminoso que vitimou a empresa, o que o coloca em uma posição suspeita.”
Vamos traduzir…
O depoimento de um dos réus no processo, Léo Pinheiro, candidato a delator premiado, que passou mais de 2 anos preso antes de depor como testemunha de acusação contra Lula, confessadamente autor de ilícitos nas relações de sua empresa e a Petrobras, desobrigado a dizer a verdade no tribunal, este foi mais levado em conta e consumiu mais palavras de Moro na sentença, do que o de todas as outras testemunhas juntas.
Já uma testemunha de defesa que está obrigada a falar a verdade, que se dispõe a colaborar com a Justiça sem estar confessando nenhum crime, sem estar buscando nenhuma vantagem legal por aquele testemunho, este é considerado suspeito e não teve crédito.
A Defesa de Lula já protocolou um recurso em que aponta dez omissões, contradições e obscuridades como as que já dissemos e que estão na sentença de Sérgio Moro. O recurso, chamado *Embargo de Declaração, será julgado pelo próprio juiz paranaense. Mais uma vez, será confrontado com sua evidente parcialidade e desapego às normas processuais.
É pouco provável que o juiz volte atrás em qualquer de seus arbítrios, o caso seguirá então para a apreciação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde será julgado em segunda instância.
O Brasil precisa que os desembargadores sejam maduros e dêem o destino correto à sentença impensável de Sérgio Moro, sem vaidades e com a utilização de um dos valores mais importantes: a verdade.
Essa sentença não pode ser tão infantil quanto o PowerPoint do Ministério Público Federal.
Glossário
*Libelo acusatório – peça jurídica que era produzida pelo Ministério Público e era apresentada no tribunal do júri (crimes contra a vida), expondo o fato criminoso, indicando o nome do réu, circunstâncias agravantes e fatos que poderiam influenciar na fixação de sua pena. Em 2008, uma reforma no Código de Processo Penal suprimiu esta peça do rito processual.
*Causídico – advogado que atua no âmbito do processo, defensor de uma causa que combate em nome dela ou de alguém perante um tribunal.
*Trânsito em julgado – Final derradeiro de um processo na Justiça, quando é proferida a sentença final, não havendo mais possibilidade de recurso em nenhuma instância.
*Precatória – Refere-se à carta precatória, que é uma ordem judicial proferida por um juiz para ser executada em outra comarca. Quando um processo exige que uma diligência ocorra em outra comarca que aquela onde ele tramita, o juiz responsável envia uma carta precatória a esta comarca, com as ordens a serem cumpridas.
*Fase de instrução – É uma das fases do processo penal, quando são ouvidas as testemunhas chamadas pelas partes e provas documentais e periciais são anexadas (juntadas) aos autos.