Os caminhoneiros frearam o país. Bruscamente. O desastre foi inevitável. O engavetamento em que todo o Brasil se meteu resultou em avarias ainda não precisamente avaliadas.Para muitos, no entanto, pareceu à primeira vista ser a oportunidade de o país retomar a rota da qual se desviou por força do golpe dos corruptos de 2016. Para outros, a chance de darmos ré até, pelo menos, o ano de 1964, com alguns militares mais afoitos já acenando com as baionetas pelo retrovisor.
O fato é que o país foi tomado de um misto de desespero e esperança – um e outra em doses excessivas. O que se viu, no entanto, foi uma sucessão de fatos hilários, que já descrevi na crônica “Febeapá Número 3” (publicada apenas no Facebook, nesta mesma página “Crônicas & Agudas”), um verdadeiro “festival de besteiras que assolam o país”, cuja sigla (“Febeapá”) dá nome a duas obras de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista carioca Sérgio Porto, publicadas nos anos 70.
A manifestação dos caminhoneiros, por exemplo, jamais seria tolerada por um governo de militares. Seria reprimida duramente pelas forças policiais.
É um contrassenso manifestantes, que parecem prezar pelo direito de expressão, reivindicarem intervenção militar. É algo tão surreal como um liberto clamar para ser escravizado, um pássaro implorar para que lhe cortem as asas, um leão pedir de joelhos para que o enjaulem num zoológico, um homem livre rogar que o mantenham encarcerado.
Uma pessoa querida me enviou um vídeo em que um ator com cara de tiozão reaça bradava contra a classe política, contra suas “mordomias”, e convocava para um grande ato na avenida Paulista em favor dos caminhoneiros, coisa de “um milhão de pessoas”. Entusiasmada, ela dizia que deveríamos compartilhar o vídeo ao máximo.

Bira Dantas
Ao ver a imagem do ator, já fiquei desconfiado. Mesmo assim, fui até o fim. E acabei jogando um balde de água gelada na euforia da companheira.
O cara não fala abertamente em intervenção militar, mas deixa suficientemente clara sua posição nesse sentido. “Está nas entrelinhas”, disse eu a ela. Ele mencionava destituição ou renúncia de “toda a classe política” e completava dizendo que “pelas urnas não dá mais”…
Perguntei a ela quem é que substituiria “toda a classe política”? Importaríamos governantes da Europa? De Marte? A fala é sedutora, é contra os privilégios, contra os desmandos, contra a corrupção. Em 1964 foi assim também. Acabamos de passar por algo semelhante em 2016, com o impeachment.
E como é que “o povo” iria governar? Quem seria o líder? Como seriam escolhidos os ocupantes dos postos chaves das administrações, desde o governo federal até cada município do país?
Diante de minhas ponderações, ela me disse que talvez Lula pudesse ser esse líder. Eu, lulista de carteirinha, continuei: “Pois é. Mas como? Por aclamação? Ele se tornaria um rei?”
Não existe saída fora da Democracia. Por isso é necessário focar incansavelmente na defesa do estado democrático de direito, no respeito à Constituição, à soberania da vontade popular, ao voto.
Quando Lula se entregou ao invés de fugir, de exilar-se numa embaixada qualquer, mesmo tendo certeza, mais do que ninguém, de sua própria inocência, que recado ele nos deu? Que, chova ou faça sol, temos de respeitar as instituições e brigar por nossos direitos dentro das leis, num ambiente em que impere a legalidade. Contra as iniquidades, contra o arbítrio, nós temos que lutar sempre pelo cumprimento das regras jurídicas democraticamente estabelecidas.
De mais a mais, segui ponderando à minha interlocutora, os políticos que aí estão são reflexo direto da nossa sociedade. Se eliminarmos todos eles, se os levarmos todos de uma só vez a câmaras de gás – como parece que é o desejo insano de grande parte das pessoas –, imediatamente teremos de substituí-los. E na mesma imediatidade os substitutos se tornariam o quê? “Políticos”, ora essa! Ei-los aí novamente, extraídos do mesmo povo, que com igual rapidez reproduziriam os mesmos defeitos, as mesmas mazelas, pois, sendo eleitos ou escolhidos por uma inteligência suprema, eles são todos nós!
jac
25/05/18 at 14:04
Claro que não é tudo claro e simples quando falamos em classes sociais. Mas que a hegemonia deste movimento é dos patrões me parece claro. não há como a esquerda dirigir esta luta, ela é contra as estatais e tal e tal
Joshua
25/05/18 at 14:50
Otima materia, parabens pelo conteudo.
amadeu zoe
25/05/18 at 21:45
ótimo texto… esclareceu
profcarlosazevedo
26/05/18 at 16:39
O texto é bem legal de se ler. Mas ao final a coisa não fecha. Quem até agora ganhou foi quem apostou no caos. A greve foi incentivada pela Globo no seu início para que o movimento ganhasse musculatura. A Globo sabe exatamente que esse movimento não tem uma liderança definida e pauta clara. Ela conta com isso para trazer simpatia a um movimento que tem potencial altamente destrutivo para a nação. A Globo agora passou de incentivadora a promotora do caos. A todo momento ela mostra o caos, muitas vezes exageradamente. Se a coisa não parar já teremos saques e confusões pelas ruas. A Globo trabalha com esse cenário. A direita não tem voto e vai perder as eleições. Somente um clima confuso pode tentar virar o jogo.
wposnik
26/05/18 at 21:11
Vou pegar uma questão, que é da pauta empresarial, que seria a suposta ‘elevada carga tributária’ vigente no País. Quando se coloca esta questão, não se inclui, ‘do outro lado da balança’, que grande parte da receita tributária – principalmente federal, e hoje, 50% do orçamento federal de 2018, vão para o ‘serviço da dívida pública’. Quer dizer, o ralo principal, o sorvedouro maior dos recursos, para os quais se destina a tal ‘elevada carga tributária’, é a dívida pública. Cuja história vem desde a nossa Independência, quando assumimos, nas suas negociações, dívidas de Portugal com a Inglaterra, tendo como credores os célebres banqueiros da família Rotschild, judeus britânicos que dominam as finanças da City londrina, desde sempre. Como todos nós sabemos, especuladores não estão nem aí como o ‘principal’ – só querem saber do ‘serviço’ ! Quem são os beneficiários deste esquema, que envolve os juros mais altos do planeta ? Banqueiros e especuladores, do País e do exterior. Como romper este círculo vicioso ? Auditoria da dívida pública já ! Até a Constituição de 1988 tinha uma determinação, nas suas Disposições Transitórias, de realizar esta auditoria, em no máximo, dois anos. Nunca foi feita. Em resumo, em nome de suposto ‘sigilo bancário’, não sabemos a quem devemos, quanto, quando, como ou por quê ! Inclusive, se parte considerável da dívida não prescreveu. Tudo sancionado, no imaginário coletivo e principalmente pela Globo, em nome e no interesse de seus principais sustentáculos, no sentido de manter esse processo perverso. A tal ‘carga tributária’, se efetivamente for elevada – o que é discutível, tem como principal destinação, a especulação desenfreada. Capital investido em ‘investimento produtivo’ caiu de moda !
Leo
26/05/18 at 23:10
Um texto de opinião com várias informações. Interessante.
Mas tivemos mercadorias de uso primário e interesse público presas no protesto, parou tudo em nome de uma pauta de uma categoria, que não vai trazer benefício para a coletividade e no ritmo de condução da presidência vai nos levar a pagar esta conta.
Em nem um momento a pauta dos caminhoneiros envolve a política da Petrobras.
Problema de elevação de despesas e redução de ganhos todas as classes estão sofrendo.
Acho que podem protestar, mas nos moldes realizados e enganando os patos que acham que a gasolina tá na pauta, a greve já passou do ponto.
Maria Jose Mendes
27/05/18 at 19:46
Dentro de um ambiente confuso e de falta de informação generalizada esse artigo consegue organizar fatos e pensamentos. Acho que a desinformação é proposital embora ache que essa política de gerar caos seja perigosa para todos.
Gostaria que um artigo publicado tivesse uma melhor revisão de língua portuguesa.
Dói ler e pensar que é um profissional da escrita que assina.
Arnaldo dos Santos Vaz Neto
30/05/18 at 12:02
Uma análise sensata sobre esse cenário está em falta. Não somente sobre a conjuntura da Greve dos Caminhoneiros mas sobre a estrutura de luta de classes atualmente. Hoje em dia, há muita verborragia e um uso de termos complexos para mascarar uma ignorância e um enviesamento.
Meus parabéns ao autor do texto. Continue iluminando essa treva que hoje vivemos.