Na noite do dia 16 de abril, durante um debate no bairro do Bixiga em São Paulo, descubro que a serenidade e a vida longa são atributos de mulheres que decidiram seguir um caminho entre livros, mato, rios e índios. A descoberta me acende quando observo, entre as pessoas da plateia, as fotógrafas Maureen Bisilliat e Claudia Andujar, ao lado de Betty Mindlin, antropóloga.
Foto: Luz del Fuego
Carmen Junqueira, também antropóloga e professora emérita da PUC, uma das palestrantes, revela sua apreensão e melancolia , após a exibição de um vídeo inédito registrando o recente contato com a etnia Mahsco Piro, que transita na fronteira entre Peru e Brasil. “Quero dizer que esses grupos, que deveriam ser a base de nossa democracia são, ao contrário, aqueles que têm de ser moídos, porque é o que se faz desde sempre. Aqueles índios do passado que conseguiram sobreviver ou aqueles que conseguiram se equilibrar dentro da comunidade. Que não foram laçados ou para trabalhar em fazendas ou, as meninas, postas a trabalhar como domésticas nas cidades vizinhas aos territórios”. Sem resiliência, o caminho do índio tem sido uma via crucis na nossa história, com exceção de um breve período de Marechal Rondon, no início do século 20,em que a matança de índios teve uma trégua. Apesar de toda gravidade, a antropóloga enaltece o privilégio que o Brasil tem de ser contemporâneo de povos que vivem em comunidades quase igualitárias. “Isso para um país que vive com uma vergonhosa distribuição de renda, com uma exploração terrível, só essa lembrança de um futuro que nós almejamos em igualdade já é alimento para nós lutarmos a favor dessas populações”, conclui. Na inusitada casa do bairro paulistano que abrigou o debate reuniram-se o médico Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu, um programa cinquentenário de extensão da Escola Paulista de Medicina, além de André Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental. Foram mediados pela jornalista Laura Capriglione, do Jornalistas Livres. “O desvendamento da questão indígena, apesar de estarmos no século XXI, é a proposta desse debate e o desvelamento é uma tradição desse território dos Jornalistas Livres”, diz Laura Capriglione.
Foto: Hélio Carlos Mello
Jornalistas Livres, para quem não o conhece, é um coletivo de comunicadores, recentíssimo, que tem como pressuposto a defesa da democracia. Laura afirma que pela primeira vez em muitos anos, décadas, tem gente com coragem de chegar numa avenida e defender a intervenção militar, e defender a ditadura militar, e torturadores se apresentando no meio da avenida Paulista sendo aclamados como heróis do povo brasileiro, torturadores que ceifaram tantas vidas e infelicitaram tanto uma parcela enorme de nossa juventude. Nesse exato momento, os Jornalistas Livres constituíram-se com base em dois princípios: o amor irrestrito pela democracia e o respeito apaixonado pelos direitos humanos. Por isso, para esse grupo, é tão importante destacar a questão indígena, como concernente a uma das parcelas da população mais violentadas por um modelo de desenvolvimento que ignora o direito à autodeterminação dos povos e o próprio direito à sobrevivência, conclui ela.
O médico Douglas Rodrigues toma a palavra, aludindo à motivação que os coletivos instigam e à revelação de novas etnias, que excita os indigenistas. Ele revela à plateia do século 21 que o país ainda tem muitos grupos indígenas que vivem em estado de isolamento, abstenção essa que mais parece uma estratégia desses grupos para enfrentar o desenvolvimento. Ele explica que o contato é apenas o momento oficial de nossa sociedade com os “descobertos”, pois os avistamentos são apontados pelas populações do entorno dessas regiões.
Foto: Mídia NINJA
A primeira consequência disso pode ser a depopulação do território provocada por agentes patológicos, bem como por conflitos. A imunização é fundamental nessa para evitar os grandes riscos de mortalidade. As referências de contato de índios isolados nesse momento no território brasileiro chegam a 102, sendo os grupos já identificados 27. Douglas revela que esses grupos estão fugindo, o isolamento é uma estratégia de sobrevivência frente aos vários programas de infraestrutura para financiar esse projeto de desenvolvimento do novo século, que possui vários equívocos. Diz ainda que, às vezes, infelizmente o contato é a última fronteira de proteção dos isolados. Falta hoje uma política clara que tire o índio da invisibilidade, que haja coragem e seja continuada, conclui ele.
Por fim, o indigenista André Villas-Bôas, do ISA, revela o quanto foi influenciado na sua juventude, em seu empenho indigenista, pelas fotos das revistas Cruzeiro, Atualidade e a revista norte-americana Life. Aliás a fotografia foi fundamental na manutenção de territórios tradicionais às etnias. A fotografia é arte fundamental na decisão desse caminho. A geração à qual André pertence testemunhou toda violência da década de 70, do regime militar com a construção de estradas, tais como as BRs 364, 163, 158, Transamazônica, Perimetal Norte, que ensejaram grandes etnocídios , mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, foi no período militar que alguns dispositivos legais trouxeram um mínimo de segurança. Destoando com o que até então, foram dados os primeiros passos para que se constituísse legitimidade para a demarcação territorial para os povos tradicionais. Talvez possamos um dia fazer uma análise sociológica desse fenômeno militar que batia com uma mão e protegia com a outra.
Foto: Hélio Carlos Mello
Temos vários momentos na história brasileira em que isso fica patente com os povos indígenas. Essa geração de André também testemunhou o período da Assembleia Constituinte, e celebrou conquistas incríveis para os índios, face à fragilidade que existia na legislação. Hoje, é muito duro testemunhar o ataque e retrocesso que se pretende em relação a esses direitos conquistados em 1988. É algo que nos abate permanentemente. Essa PEC 215 enseja uma discussão muito mais profunda do que se os índios devem ter terra ou não. Essa PEC nos faz refletir sobre o país que nós queremos para o futuro, conclui.
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