Jornalistas Livres

Tag: violência policial

  • Mães de vítimas de chacinas em Mogi das Cruzes exigem justiça

    Mães de vítimas de chacinas em Mogi das Cruzes exigem justiça

    “Criei meu filho com amor, era meu único filho, não usava drogas, não bebia, tomava Toddy, fazia SENAI, trabalhava, tinha namorada e morreu no bairro em que nasci, na Vila Caputera. Estou com 43 anos, tenho medo de me suicidar, não tenho mais felicidade. O que estou sofrendo, se me tirassem a vida seria um favor. Mas não vou me calar, mesmo sozinha. Ainda que o batalhão todo da PM fosse preso, meu filho não voltará”, contou entre lágrimas Lucimara dos Santos, mãe de Cristian Silveira Filho, um garoto de 17 anos, assassinado por policiais, em Mogi das Cruzes, há 8 meses.

    Cristian foi morto com três tiros, dois na cabeça e um na barriga.

    O depoimento foi prestado nesta quarta, 7 de outubro, em audiência pública realizada na Câmara Municipal de Mogi das Cruzes. A audiência foi organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Mogi da Cruzes, presidida pelo vereador Iduigues Martins; pelo Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), presidido por Rildo Marques e pelo Grupo Tortura Nunca Mais –SP .

    No depoimento, dona Lucimara se referiu a um carro vermelho que tinha passado em dias anteriores com pessoas dentro dizendo que iam matar os jovens. “Mas eles não tomaram conhecimento das ameaças; eram de família, de bem, não pensavam que iam morrer na porta de casa”, afirmou dona Lucimara. A informação sobre o carro vermelho foi destacada pelo delegado seccional de Mogi das Cruzes, Marcos Batalha, presente à Audiência. Ele observou que este dado era uma novidade, na informação da depoente. O delegado, após a audiência, convocou as famílias das vítimas para uma reunião na próxima terça-feira (13/10), 14 horas, na seccional.

    “Não podiam morrer feito cachorros”

    Dona Lucimara concluiu seu depoimento, afirmando que “mesmo se esses jovens tivessem feito coisa errada, que não fizeram, não podiam morrer feito cachorros.

    “A polícia tem o direito de punir, mas não de matar. E meu filho era moço de bem. Quem matou está solto e nós, mães, é que estamos aprisionadas”.

    A avó do jovem assassinado, afirmou que a polícia é mal preparada, mal paga e que os policiais precisam passar por avaliação psiquiátrica antes de entrar na corporação. “Meu neto era bonito, é muito doído ver a Lucimara sofrendo todos os dias. Não sei como ainda ela está de pé”, falou dona Josina Célia da Silva, sogra de Lucimara. “Quero uma resposta, quero saber quem fez isso com meu neto”, disse Josina.

    “Tem muita gente que não fala por medo. O dia em que meu neto estava sendo velado, apareceu polícia por tudo quanto era lado no bairro Caputera. Pensavam que o povo ia tocar fogo em tudo. Mas nós só queremos justiça”, concluiu a avó de Cristian, enquanto na plateia muitas mães e pessoas presentes soluçavam.

    “Recebi os 50 reais que ele tinha no bolso e o corpo ensanguentado”

    Outra mãe que teve o filho assassinado, dona Josiane dos Santos, afirmou que seu filho, Ivan Marcos dos Santos Souza, de 18 anos, morto nas chacinas, não era traficante, nem bandido, mas trabalhador, funcionário do supermercado Extra. “Fiquei traumatizada, tenho pavor de polícia. Nesse dia, ele foi visitar um amigo, o Robson. Falei para ele voltar logo. Ele tinha R$ 50 reais no bolso. Recebi de volta os R$ 50 reais e o corpo ensanguentado do meu filho. Eu me humilho, se for preciso, peço que ponham o assassino de meu filho na cadeia. Esse filho não volta mais, mas tenho mais dois e não quero passar novamente por isso. Quem matou é profissional, vai ser difícil ter provas. Eu dou minha vida pelo Ivan, se for preciso”, disse muito emocionada dona Josiane.

    Outra mãe, dona Miriam Aparecida Tomás, mãe de Lucas Tomás de Abreu, de 20 anos, pediu justiça para seus filho.

    “A PM é implacável com maus policiais’, assegura o comandante

    O coronel Marcos Lopes, comandante da PM da região, destacou que a PM é quase um grande exército da América Latina que atende 645 municípios. “Maus policiais não são policiais”, afirmou. Manifestou sua preocupação com o comportamento da tropa.

    “Acabamos de formar 90 recrutas e fiz questão de realçar que a missão do policial é proteger as pessoas. Nós estamos preparados. A polícia é implacável com os policiais que cometem desvios de conduta, o que ocorre em 0,3% dos casos. Já mandamos embora desde o ano passado 477 maus policiais. Ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém. Pensei no futuro desses recrutas porque eles também têm família. A PM é uma instituição séria e por esse motivo estou nela há 31 anos”, destacou o comandante.

    “Não estou lidado com pés-de-chinelo”, afirma Delegado da Seccional.

    O delegado seccional da Polícia Civil, Marcos Batalha destacou que, apesar de ser o delegado seccional e ter sob sua responsabilidade 23 delegacias, está acompanhando de perto as investigações sobre as chacinas de Mogi das Cruzes. “Não vou descansar enquanto não apurar esses casos. Cheguei a passar 11 horas sem dormir, acompanhando os inquéritos, fui ao local das chacinas, conversei com muitas pessoas.”

    “Percebi que muitas têm medo de falar — e têm razão”, observou o delegado.

    Ele destacou que muitos inquéritos correm em sigilo, decretado pelo juiz, para não atrapalhar as investigações. “Tenho que conseguir provas, não estou lidando com pés-de-chinelo. Se fizer investigação apressada, corro o risco de colocar inocentes na cadeia. As pessoas têm medo de falar, precisam de segurança, mas estamos trabalhando junto com a PM, que não está acobertando nada”, afirmou o delegado.

    “Já pedi a Deus que aparecesse uma testemunha que reconhecesse um dos autores, pois ele não vai confessar nunca. Já pedi a prisão preventiva de dois suspeitos, se vão ficar presos, não depende da polícia, mas da Justiça. Quero que os autores das chacinas fiquem presos por muito tempo. Também tenho filhos e fico preocupado quando chegam tarde. Temos que atuar também junto à Justiça, convencer também o promotor sobre quem são os culpados, quando forem a julgamento. Não ajudo bandido, nem criminoso” , assegurou.

    O delegado defendeu as mães, afirmando que estão certas de fazerem movimentos, barulho, cobrar ações dos policiais. “Se eu estivesse no lugar delas, não sei o que faria da minha vida, se tivesse acontecido comigo”, considerou.

    O ouvidor da Polícia, Julio Cesar Fernandes Neves, e o defensor público Raul Nin de Carvalho se colocaram à disposição para receber denúncias e atender as famílias.

    Julio destacou que já são 561 mortos este ano vítimas da brutalidade policial em São Paulo.

    “Não estamos no tempo do cangaço.”

    Rildo Marques, presidente do Condepe, afirmou que se deve cumprir integralmente a lei e solicitou que a violência seja erradicada das práticas policiais “Há também policiais mortos com requintes de crueldade, mas não será revidando com a morte de inocentes que vamos resolver o problema. Temos que criar um sistema de controle das ações policiais. Não serão os inocentes que pagarão pelas execuções de policiais. Não estamos no tempo do cangaço. E se, for o caso, pediremos a federalização dos casos de violência praticados por agentes do Estado”, advertiu.

    Raul Nin Carvalho, defensor público do Estado se solidarizou com as famílias e colocou a Defensoria à disposição dos familiares das vítimas. O representante do bispo diocesano (Dom Pedro), André destacou a necessidade toda a sociedade se unir para impedir a violência. Manifestou-se contra a política de encarceramento em massa, defendendo a prestação de serviço à comunidade, no caso de delitos leves e destacou a importância do investimento nos adolescentes, em especial na Educação e cursos profissionalizantes.

    A Audiência, presidida pelo vereador Iduiges Martins, contou com a presença de Raul Nin Carvalho, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado; Rildo Marques, presidente do Condepe; Marcos Batalha, delegado seccional de Mogi das Cruzes; Luis Carlos Santos e Vilma Amaro, conselheiros do Condepe; do Dr. André, representante de Dom Pedro, bispo diocesano; do ouvidor da Polícia de São Paulo, Dr. Júlio, do comandante da PM de Mogi das Cruzes, Mauro Lopes; Walter Foster, ouvidor adjunto da Polícia e membro da Comissão de Justiça e Paz; Alderon Costa, ouvidor da Defensoria Pública do Estado, entidades de direitos humanos do Alto Tietê, e dezenas de familiares das vítimas.

    Dois policiais estão presos

    Dois policiais militares capturados no fim de setembro pela Polícia Civil e pela Corregedoria da Polícia Militar , acusados de envolvimento em duplo homicídio ocorrido em setembro de 2014 no Jardim Camila, os soldados Wanderlei Messias Barroso, da 2ª Cia, do 17º BPM/M, e Fernando Cardoso Prado de Oliveira, foram conduzidos ao Presídio Romão Gomes, para PMs, na Capital. Eles tiveram a prisão temporária decretada pela Justiça, no Fórum de Mogi das Cruzes. Há suspeita de que também teriam praticado a chacina no bairro de Caputera e outras quatro chacinas onde morreram Christian Silveira Filho, de 17 anos, Ivan Marcos dos Santos Souza, de 18 anos, e Lucas Tomaz de Abreu, de 20 anos. Outros dois jovens foram baleados, mas sobreviveram.


    *Vilma Amaro, jornalista, é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP

  • Não pise nos mortos

    Não pise nos mortos

    Em memória das pessoas que morreram no Massacre do Carandiru.

    1992 foi o último ano em que morei com meus pais. Mandaqui. Zona Norte de São Paulo. Todo santo dia, pegava o ônibus 1759 (Jardim Peri) ou o 1757 (Bancários) no Metrô Santana para voltar pra casa. E no caminho estava a estação de Metrô Carandiru. Aquele prédio medonho. Casa de Detenção. Ou Carandiru mesmo. Transformaram um bairro inteiro em uma penitenciária. Vira e mexe, descia na plataforma pra ficar olhando pras janelas minúsculas, com grades em forma de cruz. Lembro do torcedor fanático do Corinthians, que colocou dois brasões do time lado a lado, entre as grades. Alguns braços saltavam pra fora, dava até pra ver as tatuagens. Em outra janela lembro de uma bandeira da Paraíba, com a palavra NEGO. Sempre soube que foi símbolo de revolta, de rebeldia.

    NEGO. NÉGO ou NÊGO. De qualquer forma, uma palavra que dita comportamento.

    Metrô lotadaço. Na estação Tietê, debandada geral. Poucas pessoas ficaram no vagão. Eram aproximadamente umas 20h do dia 2 de outubro de 1992. Pensava em descer na plataforma do Metrô Carandiru para tentar entender o que estava acontecendo. Fui o único cara a grudar o rosto da porta à direita.

    0O vagão passou reto, não parou. Mas passou lentamente, como se fosse preciso marcar que aquele dia, naquele lugar, nada mais seria daquele jeito. Olhei para fora, lembro dos discos voadores das radio-patrulhas rodando, rodando, feito moscas à beira da sopa. Lembro daqueles caminhões verde-escuros, quase pretos, das divisões especiais da PM. E lembro do prédio, todo escuro, nenhuma luz acesa. Como um velório sem velas.

    Chegando em casa com o noticiário da TV gritando na sala, a parada bateu. Enquanto estava passando de metrô, logo ali à minha frente, centenas de corpos se amontoavam em completo silêncio. Mais de 100, talvez 200. Trucidados sem a mínima chance de defesa. Pensei em filhos, em mães, em irmãos, sobrinhos, melhores amigos, esposas, avós. Não consegui dormir direito. Por um bom tempo.

    Dia seguinte. Parei na estação Carandiru na volta do trabalho. É incrível a capacidade desta cidade de sempre apagar as coisas que não se quer enxergar. Foi assim. Trânsito mediano, pessoas cercadas de seus sonhos medíocres, gente cochilando, conversando sobre amenidades frouxas. Fiquei parado na plataforma. Olhando para o primeiro pavilhão à minha frente. Sei que o Pavilhão 9 é lá atrás, mas senti que algo tinha mudado em toda a Casa. Tudo tinha mudado, enfim. E a bandeira da Paraíba não estava mais lá.

    A memória

    Hoje, fui convidado para participar do I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, pela minha amiga Carol Trevisan. Criar uma intervenção emMEMÓRIA DO MASSACRE DO CARANDIRU. Com letras maiúsculas. Coisas para serem lembradas tem que ter letras maiúsculas. Como usamos na internet, quando você quer gritar.

    Lembrei de mais uma coisa. Li em algum lugar ou alguém contou de alguém que conhecia de algum lugar. Alguém que entrou no Pavilhão 9, logo após o MASSACRE. Alguém que foi reconhecer os corpos. Alguém que tinha que estar lá. Lembro-me bem do que essa pessoa falou.

    Lembro-me bem, como poucas coisas que tenho lembrado ultimamente. Lembro-me que falou que o sangue entrava no sapato baixo que usava. Lembro-me que falou que tinha lugares com tantos corpos empilhados, provavelmente cercados e fuzilados juntos, que não era possível pisar no chão. Para passar para o outro lado, tinha que pisar em corpos, para passar por sobre outros corpos.

    A intervenção NÃO PISE NOS MORTOS surgiu dessa lembrança. A marca dos mortos feitas com tinta branca. A marca que a própria polícia usa para marcar um morto. A marca feita para você não pisar no morto. A marca para você não esquecer que ali alguém caiu morto.

    Essas marcas no chão causam estranhamento num primeiro momento e, instintivamente, você se desvia. Mas num segundo momento, você se esquece e pisa no morto. Isso não pode acontecer. Nunca! Esquecer os mortos, esquecer do que aconteceu naquele dia no Carandiru, naquela noite em Osasco, em Carapicuiba, na Luz, ou com o Flavio Santana.

    1

    2Screen Shot 2016-01-16 at 11.49.51 AM

    Quando você pisa no morto, você apaga as lembranças daquele dia. Quando você pisa no morto, você apaga o sofrimento das famílias. Quando você pisa no morto, você apaga os mandantes daquele MASSACRE. Quando você pisa no morto, você apaga os nomes dos homens assassinados a sangue frio, muitos deles que nem condenados eram. Quando você pisa no morto, você apaga o passado e destrói o futuro. Futuro do Pretérito.

    NÃO PISE NOS MORTOS! Por favor.

    PS. Vou me lembrar de comprar uma bandeira da Paraíba, nêgo.


  • Quem matou 19?

    Quem matou 19?

    Domingo de frio e garoa na Av Paulista. Um grupo de manifestantes chega em silêncio ao vão do Masp disputando espaço com a feira de antiguidades.

    Vestidos de preto, a boca amordaçada, em silêncio, segurando velas que logo serão acesas, com camisetas e faixas com a pergunta estampada — Quem matou 19?

    Foto: Adolfo Garroux

    Organizada pela Ong Rio de Paz — base São Paulo esse grupo se reuniu para “prestar solidariedade as famílias das vítimas, cobrar das autoridades a elucidação do caso e também auxílio as famílias. Auxílio financeiro, psicológico, social, médico e chamar a atenção para o que tem acontecido nas periferias, essa cultura de que o pobre é matável, isso não pode mais ocorrer” — palavras de Claudio, um dos organizadores da manifestação.

    A cena era impactante, 19 cruzes enfileiradas na calçada, com os nomes de cada uma das vítimas. Mesmo assim pouca gente parecia se importar com o que acontecia ali. Em pouco mais de três horas de protesto poucas foram as pessoas que pararam para se perguntar do que se tratava.

    Uma mulher se destacava dos demais, trazia na mão direita uma vela e na esquerda a foto de um rapaz negro, sorridente, com uma camisa do time do São Paulo. Seu nome, Dona Zilda. O rapaz da foto era Fernando, seu filho, pintor, 35 anos, que saiu de casa aquele dia para cortar o cabelo e não voltou mais.

    Foto: Adolfo Garroux

    Naquela noite Dona Zilda ouviu os tiros mas achou que eram fogos, já está acostumada com esse tipo de barulho na região onde mora, conforme disse, mas ao ouvir os gritos que vinham da rua saiu e se deparou com o corpo de seu filho, morto, ensanguentado, cena a qual jamais irá esquecer.

    Difícil esquecer também a cena dessa guerreira, que num momento de tanta dor encontra forças para denunciar a situação, que mesmo sem esperanças de que o caso seja esclarecido decidiu não se calar, porque como mesmo disse isso seria omitir a morte de seu filho.

    E disse mais — “Mas eu acho que é por causa desse silêncio que as coisas chegaram aonde chegaram e daqui para pior.”

    Dona Zilda tem razão, provavelmente os que puxaram os gatilhos nunca sejam descobertos e punidos, mas ela sabe, todos nós sabemos quem matou 19.

    Quem matou 19 foi o silêncio conivente de uma sociedade que se cala contra a violência cotidiana que massacra quem vive nas periferias e que apóia secretamente (alguns setores nem tanto) esse tipo de acontecimento.

  • Sobre a agressão e prisão arbitrária de uma índia

    Sobre a agressão e prisão arbitrária de uma índia

    Pelo fato de carregar arco e flecha artesanais, Juvana, da etnia Xacriabá, foi agredida e presa durante Grito dos Excluídos no norte de Minas Gerais

    Juvana e a amiga Silla ainda tentam entender o que teria levado à prisão a índia Juvana naquele sete de setembro, em Montes Claros, no norte de Minas Gerais. Na internet, as mensagens direcionadas à indígena se dividem entre apoio e racismo. Das falas de ódio e desinformação, já conhecidas pelo brasileiro, talvez a que mais impressionou Juvana foi uma em que dizia que ela não é indígena. “Nós somos indígenas sim. Estamos em Montes Claros pra estudar”, diz Silla.

    Foto: Gustavo Ferreira

    Outra mensagem que também abalou Juvana, não mais que a agressão policial e a morte de seus parentes (índios da etnia Guarani-Kaiowá), foi uma que dizia que ela tem antecedentes criminais. “Como a pessoa fala isso? Ela terá de provar na justiça”, desabafa.

    “A cabeça ainda dói, o braço está dolorido, e o psicológico está péssimo”, contou Juvana, que veio a Belo Horizonte nesta quarta-feira, dois dias depois da agressão, a convite do deputado estadual Rogério Correia (PT). Ela participaria de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos, que trataria justamente de violência policial, não contra indígenas, mas contra jornalistas, em Minas Gerais. Mas agressão é agressão, e o momento não poderia ser mais propício.

    Juvana e Silla são da etnia Xacriabá. A aldeia delas fica no município de São João das Missões, a 300 km de Montes Claros. Elas deixaram o lar e os familiares e foram para a cidade realizar o sonho da maioria dos jovens: se formar em uma universidade. Juvana faz Direito e Silla, Enfermagem. Mas, para concretizar a graduação, elas enfrentam todo tipo de preconceito e dificuldade. Na universidade, elas recebem apoio dos colegas, mas fora de lá, a vida não é fácil: machismo em cada esquina e a recusa em empregá-las em algum trabalho.

    Foto: Gustavo Ferreira

    De personalidade forte, mas com a característica marcante de uma pessoa tranquila, Juvana não imaginava que seria agredida, um dia, por um policial. Mas aconteceu. Naquele dia em que se comemora a Independência do Brasil, ela saiu, com outros quatro indígenas, para participar do Grito dos Excluídos, evento paralelo aos tradicionais desfiles cívicos, que acontece há 21 anos em várias cidades de todo o país. Além do arco e flecha, artesanais, Juvana empunhava um cartaz que dizia: “somos todos Guarani-Kaiowá. Contra o genocídio a mando do agronegócio”.

    Nos últimos dias temos visto o assassinato cruel de lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul. Os verdadeiros donos do país, que povoavam aqui antes da chegada dos portugueses, são expulsos à bala por fazendeiros, que desmatam a floresta e contaminam os rios em nome do “progresso”. Mas aprende-se na escola que o Brasil foi “descoberto”. E deve ser por causa de mais essa distorção que até hoje os índios continuam sendo exterminados. O brasileiro não sabe a própria história. Triste!

    Além do genocídio, em curso, dos índios da etnia Guarani-Kaiowá, os indígenas ali presentes no ato protestavam contra a aprovação da PEC 215, que tramita no Congresso e pretende tirar do Poder Executivo e da Funai, a demarcação de terras, e passá-la para o Senado. Sim, essa Casa Legislativa vem mostrando bem ao lado de quem está: dos ruralistas.

    Durante o protesto, as índias não perceberam, mas o policial que agrediu e efetuou a prisão arbitrária de Juvana estava próximo a elas o tempo todo. As fotografias postadas por várias pessoas na internet, após o evento, comprovaram isso. O que deixa Juvana pensativa: “Não sei se foi por preconceito contra nós, ou se alguém havia pedido que ele ficasse tão perto da gente”.

    Quando os manifestantes do Grito dos Excluídos chegaram até o palanque onde estava o prefeito Ruy Muniz, as pessoas se sentiram ofendidas com a reação do chefe do Executivo local. E não é pra menos: nos vídeos postados na internet dá pra ver claramente que ele estava sorrindo e dançando, em um momento onde não se tinha o que comemorar. As pessoas estavam ali lutando por direitos negados a elas.

    Conforme contou Juvana, nesse momento ela entregou ao prefeito o presente que havia levado para ele: uma camisa com os dizeres “não à PEC 215”. Apesar de agradecer, o prefeito não mostrou o presente, como gostaria Juvana. Foi quando muitas pessoas se juntaram a uma grade, que caiu. Repito: muitas pessoas. Mas só Juvana foi levada pelos policiais, que disseram que ela queria acertar Ruy com a flecha em mãos. Além da prisão arbitrária, Juvana foi agredida. E o detalhe do arco e flecha não pode passar despercebido, pois se eles representavam uma ameaça, por que não foram “tomados” de Juvana e dos outros indígenas no início do protesto?

    O dia de Juvana e Silla foi movimentado na capital mineira. Os telefones não paravam de tocar: havia gente querendo mesmo se solidarizar e ajudar de alguma forma, como havia também os oportunistas. Durante a audiência, Juvana, que se mostrou forte em todas as entrevistas de TV, rádio, jornal e internet, não conseguiu concluir sua fala, e desatou a chorar.

    Mas a expectativa com a audiência é boa. No dia 28 deste mês, será realizada, a pedido da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, uma audiência em Montes Claros. O prefeito da cidade, Ruy Muniz, e o cacique da etnia Xacriabá foram convidados. O comandante da PM em Montes Claros, Sérgio Ricardo de Oliveira, foi convocado pelos legisladores para prestar esclarecimentos.

    Depois de muitas entrevistas concedidas à imprensa, as índias foram até a Casa de Direitos Humanos em Belo Horizonte. Elas contariam, em forma de oitiva, o ocorrido neste sete de setembro em Montes Claros. Apesar da agressão sofrida, Juvana disse não ter medo de lutar por seu povo, pois ela tem “o sangue do sangue que foi derramado nesses mais de 500 anos de colonização do Brasil”.

    Foto: Gustavo Ferreira
  • As duas mortes de Francisco

    As duas mortes de Francisco

    Francisco é o nome do ser humano assassinado na escadaria da Praça da Sé na tarde do último dia 4, que foi um dos personagens da mais recente tragédia protagonizada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, tristemente célebre pelo protagonismo em tantas outras tragédias.

    Há dez anos morando nas ruas de São Paulo, tinha 61 anos.
    Dormia em albergues noturnos, embora tivesse casa e familiares — três filhos — para os quais ligava periodicamente usando telefones públicos.
    A filha mais velha relata que não via o pai há mais de dois anos.

    Os motivos que levaram o ser humano Francisco a sacrificar sua própria vida na tentativa de salvar outra jamais serão totalmente compreendidos.

    O que podemos dizer com absoluta certeza é que Francisco foi condenado à morte várias vezes pela mesma sociedade que tentou defender, sociedade que o tornou invisível.

    Herói em um drama humano, deu sua vida para salvar uma cidadã que não conheceu, parte de uma sociedade àcqual ele mesmo, Francisco, não pertencia nem jamais pertenceu.

    Uma sociedade que o condenou, assassinando-o duas vezes.

    Na primeira foi condenado a uma morte lenta e silenciosa, vítima da invisibilidade e da indiferença.

    Sua segunda morte teve um fim trágico, rápido, diante dos olhos de uma sociedade que antes não o enxergava.

    Francisco se tornou notável pelo gesto heróico, mas todos os seus outros gestos foram solenemente ignorados.

    Quem se lembrará amanhã daquele que foi esquecido durante toda sua vida?

    Morreu às portas fechadas de uma igreja cujo Deus, segundo a fé cristã, deu sua vida pela vida de toda a humanidade: “Conhecemos o amor (de Cristo) nisto: que Ele deu a sua vida por nós”
    (Bíblia Sagrada — primeira carta do Apóstolo João, capítulo 3 versículo 16)

    O drama do Francisco outrora anônimo foi a mais recente tragédia assistida ao vivo por uma enorme platéia de pessoas que jamais tomaram conhecimento de sua existência enquanto vivo.

    Foi necessário que morresse para que alguém o notasse.

    Francisco Erasmo Francisco de Lima é o nome completo do Francisco ontem anônimo, hoje herói.

    Que a morte de Francisco possa trazer à reflexão a questão da vida outros tantos Franciscos, condenados à invisibilidade, à indiferença e ao anonimato de uma morte silenciosa, ignorado nas ruas de alguma cidade no Brasil.


    *Diógenes Júnior é pesquisador independente, paulistano de nascimento, caiçara de coração e gaúcho por opção. Radicado em Porto Alegre, RS, escreve sobre Política, História, Cinema, Comportamento, Movimentos Sociais, Direitos Humanos e um pouco de um tudo.

  • Não vai ter selfie!

    Não vai ter selfie!

    Uma das coisas mais marcantes em todas as manifestações organizadas pela direita após Dilma se reeleger é a selfie com o policial. Em todas essas manifestações, pessoas de pele clara, carteiras cheias e caras pintadas com as cores da nossa bandeira posaram ao lado de policiais militares pra tirar a famosa foto de si mesmo, como se dissessem à sociedade que aqueles homens e mulheres eram motivo de muito orgulho para toda a população do Brasil.

    Eles só se esqueceram — ou nunca perceberam, mesmo — o que aquela corporação realmente representa para os moradores da periferia, maioria da população, que sempre que veêm uma viatura dobrar a esquina ficam ao menos desconfortáveis, pra não dizer completamente assustados, mesmo.

    Crianças tiram fotos com a PM, considerado “heróis” no ato do dia 16 — Foto: Roberto Setton

    Não é à toa. O tratamento da polícia para com os brancos de classe média é sempre de total respeito — eu mesmo já fui parado pela polícia algumas vezes e em todas elas fui tratado como senhor, e não como bandido. Ao mesmo tempo já ouvi relatos de pessoas negras que foram paradas pela polícia e saíram da batida completamente humilhadas.

    A elite, porém, não tem como entender isso, pois lhes falta o que na periferia existe de sobra: o pensar nos outros.

    Nos atos de ontem a cena foi diferente.

    Podia-se ouvir, entre as palavras de ordem, os gritos de “Não vai ter selfie!”, que claramente era uma resposta direta à polícia e às selfies com a classe média. Não, não vamos tirar selfies com vocês, não vamos tratá-los como heróis. Vamos no máximo tratá-los com o respeito que gostaríamos de ser tratados, não vamos lhes atacar e não vamos lhes xingar, mas longe de nós tirar uma selfie com vocês.

    Além de uma mensagem à polícia, o grito era uma clara provocação aos manifestantes de domingo passado. Vários cartazes, fotos e intervenções ocorreram pra lembrar os dezoito mortos na chacina que ocorreu em Osasco e Barueri na semana passada, antes da manifestação da direita, que não lembrou do ocorrido. E mesmo que eles fossem forçados a se lembrar, as opiniões também seriam bem diferentes das de ontem, que em sua esmagadora maioria pediam única e exclusivamente que justiça fosse feita.

    Foto: Ennio Brauns
    Que fossem responsabilizados pelos seus atos os assassinos.

    Já a classe média, em sua maioria através dos comentários na internet, responsabilizou as vítimas — “Se estavam num bar, naquela hora, boas pessoas não eram”. A lei, porém, deve ser igual para todos, e toda pessoa merece um julgamento antes de receber sua pena.

    E mesmo que a classe média sonhe que esse momento um dia chegará, ainda não vivemos no mundo de Judge Dredd, daquele filme com o Stallone, em que os policiais são também juízes e executores das sentenças.

    Diante de tudo isso, não é de se espantar que os policiais presentes na manifestação do último domingo sorrissem ao ver as câmeras dos celulares apontadas pra sua face. É de se espantar, porém, que a periferia ainda tenha que sofrer essa segregação até quando vai às ruas lutar. Por tudo isso — e mais um pouco — , realmente, não houve selfie com os policiais.