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Tag: Tribunal de Justiça de São Paulo

  • Os tratados estão acima das leis, dizem ministros do STF e PGR

    Os tratados estão acima das leis, dizem ministros do STF e PGR

    Acompanhemos as declarações e os links das declarações de Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Alexandre de Moraes, Raquel Dodge e Gilmar Mendes.

    1 Luís Roberto Barroso, em A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação (Texto base 11/12/2010), disse:

    “Pois bem: a dignidade da pessoa humana foi um dos fundamentos para a mudança jurisprudencial do STF em tema de prisão por dívida, passando-se a considerar ilegítima sua aplicação no caso do depositário infiel.

    E a nota de rodapé acrescenta: “O entendimento que ao final prevaleceu é o de que o Pacto de São José da Costa Rica, tratado sobre direitos humanos, tem estatura supralegal e prevalece sobre a legislação interna brasileira que a autorizava”.

    2 Luís Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário com Agravo 1054490 (Vídeo do julgamento em 05/10/2017), afirmou que: “A Constituição previa. A legislação disciplinava. Mas entendeu-se que diante do caráter supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, foi o entendimencaso Lula ONU cata congrsso nacional eunicioto que aqui prevaleceu, paralisava-se a incidência do tratamento jurídico interno para a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica.

    3 Rosa Weber, na respondeu a uma pergunta, sabatina no Senado (Vídeo de 06/12/2011), da seguinte forma: “A posição do Supremo Tribunal Federal com relação a esses tratados de direitos humanos anteriores ou que ainda não mereceram esse quórum qualificado de aprovação é no sentido da paridade, da supralegalidade. Ou seja, eles estão acima da lei, mas abaixo da ordem constitucional.”

    4 Alexandre de Moraes, em videoaula de cursinho preparatório para concurso (Vídeo de aula gravada em março de 2010) explica que “A incorporação dos tratados, atos, pactos internacionais que versem sobre direitos humanos no nosso ordenamento jurídico passou, desde que aprovado por três quintos do Congresso Nacional, três quintos da Câmara e três quintos do Senado, passou a ter status constitucional…Não há mais possibilidade da decretação da prisão por essa incorporação do Pacto de São José da Costa Rica, pela Emenda 45, com status infraconstitucional, ainda, porém supralegal”.

    5 Raquel Dodge em matéria do site Jusbrasil (Texto): “Em discurso na 120ª Sessão Ordinária da Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizada na Costa Rica, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, destacou que o Brasil deve cumprir, em suas relações internacionais, o princípio da prevalência dos direitos humanos, conforme prevê a Constituição. E deve, inclusive, apoiar a criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. Para a procuradora-geral, a celebração de tratados e o reconhecimento da jurisdição de tribunais internacionais, pelo Brasil, impõem ao país o desafio de buscar sempre uma sociedade livre, justa e solidária e o combate efetivo à pobreza e à desigualdade.”

    6 Gilmar Mendes e os ministros do através da com a Súmula Vinculante 25 (Texto) que determina: “(…) diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante”.

    7 Gilmar Mendes, no caso do Cesare Battisti (Vídeo), disse: “Não nos esqueçamos que o Brasil, tendo em vista seu protagonismo internacional, busca, e busca legitimamente, um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e os países não se qualificam para … situação para esse status descumprindo tratados.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 029-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • “Eles resistiram”, dizem PMs. “Foram executados”, dizem testemunhas

    “Eles resistiram”, dizem PMs. “Foram executados”, dizem testemunhas

    Douglas Silva (17) e Felipe Macedo Pontes (17) foram mortos, em 2011, por PMs em São Bernardo do Campo

    Nesta quarta-feira, dia 29 de agosto de 2018, às 10hs, no Fórum de São Bernardo do Campo, será realizado o julgamento do major da PM, Herbert Saavedra. O destino do oficial será decidido por 7 jurados no júri popular da Vara do Júri de São Bernardo do Campo – São Paulo. Ele, juntamente com o soldado da PM Alberto Fernandes de Campos e o cabo Edson Jesus Sayas Junior, são acusados pelos assassinatos dos adolescentes Douglas Silva e Felipe Macedo Pontes, ambos com 17 anos, ocorridos no dia 30 de novembro de 2011, no Bairro Demarchi, em São Bernardo do Campo. Na época do crime Saavedra era capitão da PM e comandava a equipe da Força Tática.

    Os outros 2 PMs envolvidos não serão julgados nesta quarta porque recorreram da sentença de pronúncia (decisão que determina o julgamento perante o júri popular). O Tribunal de Justiça ainda não julgou os recursos.

    Policiais alegam resistência. Testemunhaar negam

    Segundo a versão dos policiais na época, os adolescentes Douglas Silva e Felipe Macedo Pontes morreram em confronto. A ocorrência foi registrada pelos policiais 6 horas depois dos fatos, como “resistência seguida de morte”. Mas testemunhas ouvidas na época por entidades de direitos humanos, pela Ouvidoria de Polícia e pela Polícia Civil, afirmaram que os jovens foram executados pelos policiais militares, sem que esboçassem qualquer tipo de reação. Uma testemunha chegou a presenciar os PMs forjando provas no local do crime, para simular um suposto confronto. Ela afirmou ter visto os policiais tirando armas de fogo de dentro da viatura da PM e colocando as nas mãos dos jovens. Essa e outras testemunhas foram ouvidas na Vara do Júri, durante a instrução do processo criminal.

    Os jovens estavam saindo da Escola

    Na noite do dia 30 de novembro de 2011, os amigos Douglas e Felipe estavam saindo de moto da escola estadual onde estudavam no Bairro Demarchi, em São Bernardo do Campo, quando foram abordados pelos 3 PMs da Força Tática. Posteriormente, os policiais disseram que eles eram suspeitos de um roubo no bairro. “Porém, esse suposto roubo jamais ocorreu, já que nenhuma ocorrência do tipo foi registrada na Delegacia da área, assim como nenhuma vítima ou testemunha do suposto crime foi localizada pela própria polícia”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana), que acompanha o caso desde o início.

     

    Há fortes indícios de execução, afirma advogado Ariel Castro Alves, do Condepe

    Segundo Ariel, as investigações do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) demonstraram que Felipe foi assassinado na própria abordagem e Douglas foi morto a caminho do Hospital, após, inclusive, ter dito a uma testemunha que temia ser morto pelos PMs no caminho ao Hospital, por ter presenciado o assassinato de seu amigo na abordagem policial. “Existem fortes indícios de que os adolescentes foram executados pelos PMs, já que conforme os laudos do IML, Douglas levou 5 tiros e Felipe recebeu 4 disparos”, afirma Ariel, complementando que o laudo residuográfico do Instituto de Criminalística não constatou resíduos de pólvora nas mãos das vítimas.

    Os adolescentes, que não tinham antecedentes, trabalhavam e estudavam

    “Os adolescentes trabalhavam e estudavam e não tinham antecedentes de envolvimento com atos infracionais na Vara da Infância e Juventude. Os laudos do Instituto Médico Legal demonstraram que as mortes foram ocasionadas por vários disparos de armas de fogo dos PMs, que atingiram órgãos letais dos corpos. Um jovem foi morto no local da abordagem e o outro a caminho do Pronto Socorro Municipal, conforme as investigações da Polícia Civil”, informa o advogado André Alcantara, membro da Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT- Brasil) e do Condepe.

    A denúncia do Ministério Público

    Após 4 anos de investigações, somente em 2015, os policiais militares Herbert Saavedra, Alberto Fernandes de Campos e Edson Jesus Sayas Junior, se tornaram réus no Processo Criminal pelos 2 homicídios. Na época, o juiz Fernando Martinho de Barros Penteado, da Vara do Júri de São Bernardo do Campo, acatou a denúncia criminal apresentada pela promotora de Justiça Thelma Thais Cavarzere. Na denúncia, a promotora afirmou taxativamente que “os imputados mataram Douglas para assegurar a ocultação e a impunidade do homicídio que praticaram contra Felipe”. Por fim, a promotora denunciou os 3 PMs pelos 2 homicídios qualificados.

    Sentença de Pronúncia da Vara do Júri de SBC

    No dia 17 de fevereiro de 2017, após terminar a fase de instrução processual, na qual foram ouvidas as testemunhas do crime e analisadas todas as provas e laudos produzidos durante o Inquérito da Polícia Civil, o juiz titular da Vara do Júri de São Bernardo do Campo, Fernando Martinho de Barros Penteado, decidiu que os réus deveriam ser julgados pelo Júri Popular, entendendo que estavam presentes os “indícios suficientes de autoria e materialidade” com relação ao envolvimento dos PMs com o crime. A sentença cita os depoimentos das testemunhas protegidas, que foram ouvidas em audiência, que afirmaram que os jovens estavam desarmados e foram assassinados pelos policiais militares. (Anexo).

    Autos do Inquérito Policial não foram encontrados por 8 meses

    Em julho de 2012, o Ministério Público Federal de São Paulo, após ser acionado pelos advogados André Alcantara e Ariel de Castro Alves, pediu ao Procurador Geral da República a federalização das investigações sobre as mortes dos 2 adolescentes. Na época, os autos do Inquérito Policial estavam sumidos há 6 meses. Porém, 2 meses depois do pedido de federalização, os autos do Inquérito Policial foram encontrados no Fórum de Santo André e não no de São Bernardo, onde deveriam estar.

    Human Rights Watch cobrou providências do Governador de São Paulo

    Em 29 de julho de 2013, a ONG (Organização Não Governamental) internacional Human Rights Watch apresentou um documento ao Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, citando os assassinatos de Douglas e Felipe, em São Bernardo do Campo, como exemplo de “casos padrão” na atuação da Policia Militar Paulista, nos quais “policiais executam pessoas e, em seguida, acobertam esses crimes”.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 028-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

     

  • Como o golpe foi construído a partir da condenação de Zé Dirceu

    Como o golpe foi construído a partir da condenação de Zé Dirceu

    por Rodrigo Perez Oliveira*

    Tem tanta coisa envolvida no julgamento de Lula que fica até difícil recortar um aspecto específico para comentar. É esse o meu esforço neste pequeno ensaio. Quero discutir aquele que me parecer ser o núcleo central da crise que vivemos, algo que não é exatamente uma novidade, mas que já está circulando por aí (e nós não demos a devida atenção) desde 2005: a aplicação seletiva do paradigma indiciário ao Direito Penal.

    Começou lá, há 13 anos, no tão midiaticamente aclamado “julgamento do mensalão”: a Ministra Rosa Weber, na Suprema Corte, disse explicitamente que não tinha provas cabais contra José Dirceu, mas que ainda assim o condenaria, com base na bibliografia disponível.

    Como Zé Dirceu é um homem odiado à direita e à esquerda, aplausos foram ouvidos dos dois lados. A direita odeia Zé Dirceu porque sabe, perfeitamente, que ele é um dos maiores quadros da história da esquerda brasileira. A direita, que não é boba, tem todos os motivos do mundo para odiar Zé Dirceu.

    Alguns grupos da esquerda odeiam Zé Dirceu porque se sentiram desprestigiados no governo popular que ocupou parte do Estado em 2003. Odeiam por ressentimento. Poucos sentimentos humanos são tão baixos e amargos como o ressentimento.

    Enfim, o fato é que Zé Dirceu foi condenado e não aconteceu nada, e não fizemos nada. Ou melhor, Zé Dirceu foi para o sacrifício e tudo continuou caminhando como se nada tivesse acontecido.

    Mas aconteceu, aconteceu tudo: a matriz do golpe foi forjada ali, sob a forma da incorporação ao repertório do direito penal brasileiro de um paradigma teórico que pode até ser legítimo em outras ciências sociais ou mesmo em outros ramos do direito, mas jamais no direito penal. Jamais!

    Pra explicar melhor, apresento um autor que é muito conhecido pelos historiadores profissionais: Carlo Ginzburg, o historiador italiano que nos anos 1970 teorizou sobre o tal paradigma indiciário, em um ensaio cujo título é “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.

    Trata-se de um texto bastante lido nos cursos de graduação em História. Penso que dizer umas poucas palavras sobre o texto de Ginzburg pode nos ajudar a compreender algo a respeito da crise brasileira contemporânea. É que o conhecimento histórico é útil à vida.

    O argumento de Guinzburg é muito simples: no século XIX afirmou-se nas ciências humanas um paradigma científico que propõe o conhecimento da verdade através da interpretação de pequenos indícios. O autor toma como exemplo desse paradigma indiciário o “método moreliano” de verificação da autenticidade das obras de arte.

    Ao invés de buscar a “verdade da obra” nos traços mais notórios das escolas estéticas (que são mais facilmente imitáveis pelo falsificador), o especialista deve se debruçar sobre os detalhes que apontam para as características pessoais dos artistas. Aqui, no indício, no que o falsário não consegue imitar, estaria a “verdade da obra”.

    O paradigma indiciário rendeu bons frutos para a pesquisa histórica, tendo na segunda metade do século XX se transformando em um importante programa de estudos históricos que costumamos chamar de “micro história”.

    Ou em outras palavras, para que o meu argumento fique mais claro: o historiador pode basear suas hipóteses na interpretação criativa dos indícios. O juiz penal não pode. E isso pelo simples fato de que a função do historiador não é julgar, é compreender, como já disse Marc Bloch, outra importante referência para os historiadores profissionais. Já o juiz penal tem poder sobre aquilo que é o elemento mais sagrado do contrato social civilizado: a liberdade do corpo.

    O que acontece se um historiador, em um livro ou em um artigo, apresenta ao seu leitor uma tese baseada na interpretação criativa de indícios?

    Se o procedimento de pesquisa e escrita não for bem executado, estará trazendo a público um conhecimento pouco confiável, frágil, o que é um problema grave, mas que pode ser contornado por outro historiador, por outro especialista mais cuidadoso.

    Por outro lado, se um juiz penal procede assim, um inocente pode ser condenado. Não existe tragédia maior que a condenação de um inocente.

    O que o Juiz Sérgio Moro e seus colegas de Porto Alegre fizeram no caso Lula foi, justamente, a aplicação seletiva ao direito penal do paradigma indiciário, tal como a Ministra Rosa Weber havia feito em 2005.

    Se vocês tiverem tempo e paciência para ler a sentença do Juiz Sérgio Moro, verão que o argumento fundamental é: em “atos de ofício indeterminados”, Lula beneficiou a empreiteira OAS e recebeu o imóvel do Guarujá como propina. As visitas do casal Lula da Silva ao apartamento e as obras que teriam, segundo os delatores, sido coordenadas por Dona Marisa Letícia, são indícios que comprovam a culpa do réu.

    Meus amigos e minhas amigas, em direito penal, indícios não podem comprovar culpa. Cada um de vocês pode achar que o apartamento estava de fato sendo reservado para Lula, o que também não significa que ele o compraria com dinheiro sujo.

    Por que Lula não poderia comprar o imóvel com seus próprios proventos, com dinheiro legal, com fonte declarada? Só por que ele não tem berço, só por que ele nasceu no Nordeste, não pode, honestamente, comprar um tríplex no Guarujá? Este é outro aspecto do caso Lula que diz muito sobre a mentalidade do brasileiro médio. Mas não é disso que quero falar, não aqui.

    Retomando o fio.

    Vocês têm o direito de achar que Lula é culpado, que os indícios bastam, mas aí, como disse Reinaldo Azevedo (sim, estou citando Reinaldo Azevedo. Tempos estranhos!), já é uma questão de crença. E crença é assunto de foro íntimo. Cada um que se resolva com a sua.

    O fato, fato mesmo é: Sérgio Moro, que agiu como promotor desde o início do processo, não conseguiu provar a culpa e mostrar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a empreiteira. Se não provou cabalmente, meus amigos, não pode condenar. Simples assim.

    Aí você pode dizer: então é impossível combater a corrupção, pois crime de corrupção não deixa provas cabais.

    Quem disse?

    Quem disse que crime de corrupção não deixa provas cabais?

    E o Aécio? E o Temer? E o Cunha? E o Cabral? E o Gedel?

    Conta na Suíça, áudio, mala de dinheiro com 500 mil reais, apartamento à la Tio Patinhas. Tudo isso é prova cabal, taxativa.

    Ah, mas e quando essas provas cabais não existem?

    Se as provas cabais não existem, não pode condenar. Simples assim.

    Pode ser que com isso o culpado fique impune? Pode sim, paciência!

    É melhor o culpado ficar impune do que o inocente ser punido injustamente. Repito: a tragédia do Estado de direito não é a impunidade. É a punição injusta.

    Mas como nada é tão ruim que não possa piorar, o tal paradigma indiciário está sendo aplicado seletivamente por algumas frações do judiciário brasileiro, aplicado, apenas, contra lideranças do campo político progressista. A interpretação criativa dos indícios só serve se for para condenar políticos progressistas.

    É por isso que temos que tomar cuidado com uma máxima que está sendo verbalizada por algumas vozes da esquerda brasileira:

    “O que aconteceu com Lula já acontece há muito tempo com pobres e pretos, e não tem nenhuma novidade”.

    A leitura está errada. A máxima correta seria:

    “Aconteceu com Lula porque já acontece há muito tempo com pobres e pretos”.

    Entendem a diferença? Lula é uma importante liderança política, a mais importante do Brasil moderno. Foi Presidente da República, discursou na ONU, tomou chá com a Rainha da Inglaterra, mas nunca fez parte das elites. Ele pode até ter achado, em algum momento, que tinha sido aceito no clube, mas na real nunca foi.

    É por isso que o judiciário, poder historicamente conservador onde os grandes cargos são transmitidos como um tipo de herança familiar, está fazendo o que está fazendo com Lula.

    Por um motivo muito simples, meus amigos: Lula nunca fez parte das elites brasileiras. Para as elites da terra, Lula sempre foi preto, pobre, favelado, nordestino, peão analfabeto. E pior: sujeito abusado, insolente, que não “sabe o seu lugar”.

    Se eles estão fazendo isso com Lula, com alguém conhecido internacionalmente, o que não farão com pretos e pobres desconhecidos? A situação dessas pessoas ficará ainda pior.

    A condenação de Lula é simbólica, é como se as elites da terra estivessem dizendo: “vocês ousaram eleger um dos seus para governar esse país, ousaram consumir, ousaram estudar na universidade. A brincadeira acabou. Voltem para o seu lugar, de onde nunca deveriam ter saído”.

    Entendem, amigos? Sob todos os aspectos a condenação de Lula é uma tragédia: é uma tragédia para o contrato social civilizado, que não admite a interpretação criativa de indícios como procedimento do direito penal. É uma tragédia para a população brasileira mais pobre, que ficará ainda mais vulnerável ao arbítrio da lei.

    Defender Lula, de todas as formas, custe o que custar, é uma obrigação moral.

    • Rodrigo Perez Oliveira é historiador e professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia.

    Notas

    1 Essa matéria foi publicada originalmente na Revista Forum em:  https://www.revistaforum.com.br/como-o-golpe-foi-construido-partir-da-condenacao-de-ze-dirceu/

    2 Essa matéria recebeu o selo 027-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Tacla Duran: “Convivemos com dois Moros”

    Tacla Duran: “Convivemos com dois Moros”

    Por Rodrigo Tacla Durán

    Mordaça. Substantivo feminino. O mesmo que açaimo ou focinheira. Pano ou qualquer objeto que se põe na boca para impedir alguém de falar ou gritar. Usar a força e a coerção para impedir alguém de falar. A definição curta e precisa do Aurélio revela ser a mordaça irmã da brutalidade e filha do autoritarismo com a intolerância. No último dia 2 [de junho], o advogado Renato Moraes publicou no jornal O Globo artigo no qual expõe a dura realidade de um Brasil onde a Justiça tem dado o mau exemplo de desprezar as leis e a Constituição.

    Escreveu o brilhante jurista:

    “Chegamos à beira do precipício autoritário.

    Há quem esboce, sem pudor, o raciocínio de que entre a Constituição e uma indistinta vontade popular se deve ficar com o povo.

    Como se não fosse a Constituição o único abrigo contra o autoritarismo”.

    Na crítica que desfere ao chamado populismo judicial, Moraes lembra que a opinião pública é “filha dileta” da opinião publicada e veiculada em tempo real pelos meios de comunicação. E com o agravante: nesta era das grandes investigações e da exposição das entranhas do país, a opinião publicada vem pronta e embalada de fontes como o Ministério Público, a polícia e até mesmo magistrados. Boa parte da imprensa deixou de investigar, de garantir o contraditório, se convertendo num dócil e envenenado canal de comunicação de quem decidiu fazer justiça passando por cima da Constituição, das leis e invocando a aplicação de normas jurídicas votadas e aprovadas pelo Congresso dos Estados Unidos.

    Neste Brasil onde juízes de primeiro grau tentam aplicar a lei americana, procuradores xingam juízes do Supremo como se estivessem no Maracanã ou no Itaquerão e as delações premiadas são delações seletivas, de repente me vi numa situação inusitada: estou proibido de testemunhar por ordem do juiz Sérgio Moro. Imagino que uma situação dessas pode ter acontecido na ditadura do Estado Novo ou no regime militar, mas numa democracia é inexplicável. Além de ilegal, a proibição é injusta, porque viola o direito de os réus produzirem as provas testemunhais que julgam ser importantes para suas defesas. As duas únicas vezes em que fui ouvido e pude dar minha versão sobre certos fatos foram no dia 30 de novembro de 2017, na CPMI da JBS (veja o vídeo abaixo), e no dia 5 de junho deste ano, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Em nenhuma das vezes o Ministério Público mostrou interesse sobre os fatos que narrei.

    Fui ouvido como testemunha por representantes da Justiça do Peru, Andorra, Suíça, Argentina, Equador, México e Espanha. Entre as consequências diretas e indiretas desses depoimentos, um ex-ministro equatoriano foi preso, o presidente peruano renunciou, e o Uruguai extraditou um ex-funcionário do banco BPA para Andorra. Tudo amplamente noticiado pela imprensa internacional. Como se nada disso fosse relevante, continuo proibido de falar à Justiça do Brasil. Nunca prestei depoimento, embora tenha sido arrolado cinco vezes pela defesa do ex-presidente Lula.

    Recentemente, o juiz Sérgio Moro indeferiu pedido da defesa de Marcelo Odebrecht para a oitiva dos advogados Mônica Odebrecht, sua irmã, e Maurício Roberto Carvalho Ferro, cunhado. A oitiva da advogada da Odebrecht Marta Pacheco, como testemunha de Marcelo, foi deferida respeitando a prerrogativa do sigilo profissional. É certo que todos têm prerrogativas e serem respeitadas, entre elas o sigilo profissional. Nisso, não pode haver dois pesos e duas medidas. Quando eu trabalhei para a Odebrecht, tratei com estes três profissionais dos assuntos que ora o juiz reconhece merecerem proteção. Entretanto, a força-tarefa de Curitiba não teve o mesmo zelo pelas prerrogativas quando tratou comigo. Ao contrário, criminalizou meu trabalho como advogado e me pressionou todo o tempo para obter as mesmas informações sigilosas que o juiz Sérgio Moro decidiu proteger.

    Há mais de dois anos procurei espontaneamente a força-tarefa da “lava jato” em Curitiba.

    Estive pessoalmente com os procuradores em três ocasiões.

    Não abri qualquer informação sigilosa de cliente algum.

    Em todos os encontros, fui tratado como alguém julgado e condenado. Faltava apenas ser preso.

    Sou advogado há mais de 20 anos. Olhava para aquela situação e pensava: não é possível. Como eles podem me condenar sem processo, sem provas, sem sentença? Os procuradores da força-tarefa de Curitiba nunca quiseram me ouvir, saber o que eu tinha a dizer, dar oportunidade ao contraditório. Brandiam o tempo todo a ameaça da prisão preventiva. É humilhante ser acusado de crimes que não cometi, ofendido publicamente, desqualificado.

    Ao não me dar chance de defesa, o juiz Sérgio Moro ignora solenemente a Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura, o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Estatuto da Advocacia e o Estatuto dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Ignora até a lei dos Estados Unidos, que ele tanto preza, porque lá ninguém é condenado sem provas e sem direito de defesa. Kant ensinou que injusta é a ação que impede a liberdade do outro e, neste caso específico, me refiro ao direito de ampla defesa. Portanto, magistrado algum poderia adotar conduta diferente daquela prevista na lei, mesmo que dela discorde. A injustiça é uma escolha; a Justiça, um dever. Não há atalho para quem tem a lei como império. Para condenar, é preciso investigar, provar, contraditar. Dá trabalho e pode ser demorado, mas é o correto. No meu caso, jamais apresentaram quaisquer provas contra mim, e investigações já foram arquivadas uma vez na Espanha por falta de provas.

    Existem fatos graves que cerceiam não apenas meu direito de defesa, mas o de muitos outros. O primeiro deles é o desaparecimento do Inquérito 186/2016 da Polícia Federal de São Paulo. Simplesmente sumiu. Parte desse inquérito foi encaminhado à CPMI da JBS, na ocasião do meu depoimento. Esse inquérito é muito importante para a minha defesa por conter esclarecimentos sobre as acusações contra mim imputadas. Há dois meses meus advogados tentam localizar esse inquérito. A Polícia Federal em São Paulo informou que o enviou para Curitiba. Porém, em Curitiba, esse inquérito não existe, porque ninguém sabe dizer onde ele está. Sumiço de inquérito é algo gravíssimo.

    No meu caso, não é a primeira vez que coisas como essas acontecem. No ano passado, pedi ao cartório da 1 ª Vara de Execuções Fiscais Municipais de Curitiba uma certidão de objeto e pé comprovando que o advogado Carlos Zucolotto atuara como defensor em processos da minha família. O cartório levou cerca de seis meses para emitir a certidão e, quando o fez, emitiu sem o nome de Carlos Zucolotto. Depois de toda essa demora, o cartório informou que o subestabelecimento outorgado ao escritório de Zucolotto fora retirado dos autos sem qualquer autorização por escrito do juiz e sem comunicação às partes. Uma advogada de meu escritório recebeu a informação de balcão, ou seja, extraoficial, de que o subestabelecimento fora retirado a mando do próprio Zucolotto. Ele alegou, segundo as informações, não ter autorizado a juntada desse documento nos autos. Entretanto, tenho em meu poder sua autorização enviada por e-mail. Esses fatos gravíssimos foram omitidos do juiz corregedor, o qual, uma vez ciente, deveria poder tomar as providências para esclarecer esse fato, porque essa é uma prova documental necessária para eventual solicitação de impedimento ou suspeição do juiz Sérgio Moro.

    Há quatro anos convivemos com dois juízes, dois Moros.

    O primeiro se tornou herói dentro e fora do Brasil por sua atuação na operação “lava jato” e sua postura intransigente em relação à corrupção. É festejado nos salões dos Estados Unidos e no principado de Mônaco. O outro é criticado duramente por magistrados e advogados inconformados com a violação de prerrogativas, como o caso do grampo no escritório do advogado do ex-presidente Lula e diversas buscas e apreensões em escritórios de advocacia, inclusive no meu próprio. Também é criticado por defensores dos direitos humanos dentro e fora do Brasil, pela prática do cerceamento ao direito de defesa e a politização do processo penal no Brasil. Este é o lado obscuro de Sérgio Moro.

    O juiz ficou irritado comigo porque fui obrigado a informar à Receita Federal quais eram os colaboradores do meu escritório e entre os profissionais prestadores de serviços estava o nome do advogado Carlos Zucolotto, meu correspondente em Curitiba. Essa relação profissional com Zucolotto vem de muito antes de qualquer investigação contra mim. Eu não tinha a menor ideia que ele era amigo e padrinho de casamento de Moro. Fui obrigado a dar essa informação à Receita Federal no curso de uma fiscalização no meu escritório. Fiscalização que durou dois anos e foi prorrogada dez vezes. Ao final, a Receita concluiu que não cometi irregularidades fiscais ou contábeis, muito menos crime.

    Mais tarde, em 2016, Zucolotto me pediu US$ 5 milhões em troca de sua intermediação durante negociação de um acordo com a força-tarefa de Curitiba, cujo teor equivalia uma sentença por crimes que não cometi. Estranhamente, esta incômoda verdade nunca foi investigada. Entretanto, recentemente surgiram denúncias de venda de proteção por outros advogados de Curitiba, o que torna a investigação imprescindível para esclarecer eventual ocorrência de tráfico de influência, advocacia administrativa ou extorsão.

    Hoje, quem questiona o modus operandi da força-tarefa de Curitiba na produção de delações premiadas em série é considerado inimigo da “lava jato”. Eu pergunto: será que os advogados que defendem nossas prerrogativas, os ritos do Direito e as garantias legais são inimigos da “lava jato” e cúmplices da corrupção? Será que teremos de ser coniventes com a brutalidade, o atropelo das leis e a subtração de direitos praticados por funcionários públicos? Tudo isso é muito parecido com aquilo que a escritora Hannah Arendt definiu como a banalidade do mal ao escrever sobre o julgamento de Adolf Eichmann ocorrido em 1961.

    A operação “lava jato” se tornou um polo de poder político, capaz de destruir reputações, empresas e instituições. Na realidade, é uma espécie de poder paralelo que há quatro anos influi na condução da política e da economia do país sem ter mandato e competência para tal. Pressionam o Congresso, o Executivo e o Supremo Tribunal Federal, pisam nas prerrogativas constitucionais dos advogados e criminalizam os defensores como se fossem os únicos a ter legitimidade e o monopólio da ética e da moral.

    Quando fui arrolado como testemunha do ex-presidente Lula, virei alvo de ataques de alguns procuradores da força-tarefa de Curitiba e condenado publicamente. Naquele momento, entendi que nunca serei aceito como testemunha, nem do ex-presidente Lula nem do presidente Michel Temer, em cuja denúncia da PGR meu nome foi citado.

    Não serei testemunha de ninguém, porque esse é o desejo do juiz Sérgio Moro e dos procuradores da força-tarefa.

    Eles chamaram a Lei de Abuso de Autoridade de Lei da Mordaça, mas não têm o menor constrangimento quando se trata de amordaçar testemunhas capazes de ameaçar suas teses e estratégias de acusação.

    Mesmo sabendo que nunca fui condenado e tive minha extradição negada por unanimidade pela Justiça da Espanha, o juiz Sérgio Moro me ofendeu em rede nacional, ao vivo, no programa Roda Viva. Sem a menor cerimônia, quebrou o decoro exigido no artigo 36, inciso 3ª da Lei Orgânica da Magistratura, e me prejulgou e condenou. Se ele não me ouviu, nunca me deu oportunidade de defesa nem me julgou, porque não tem jurisdição nem isenção para isso, não pode e não deve, em respeito à lei, emitir juízo de valor, prejulgar, difamar e caluniar. Ele é julgador, não é acusador.

    A Justiça é um ativo das sociedades democráticas e deve ser exercida com autoridade, jamais com autoritarismo. Quando um juiz emite opinião contra alguém que é réu na sua vara, isso é prejulgamento e viola um dos mais elementares princípios dos direitos humanos, qual seja, o direito a um julgamento imparcial, isento, técnico, sem vínculos emocionais de qualquer natureza. Sérgio Moro me proibiu de testemunhar, mas não conseguiu me calar.

    Notas

    1 Essa matéria foi originalmente publicada no Consultor Jurídica:
    https://www.conjur.com.br/2018-jun-14/ricardo-tacla-duran-poder-paralelo-lava-jato

    2 Para ver a matéria Tacla Durán denuncia ilícitos na Lava Jato:

    Tacla Durán denuncia ilícitos na Lava Jato

    3 Essa matéria recebeu o selo 026-2018 do Observatório do Judiciário.

    4 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Liminar da ONU suspende Ficha Limpa

    Liminar da ONU suspende Ficha Limpa

    Por Thaís S. Moya (1)

    Desde que o Comitê Internacional de Direitos Humanos das Organização das Nações Unidas (ONU) despachou liminar que requer do Estado brasileiro garantias da candidatura de Lula, a mídia tradicional tem tentando de várias formas diminuí-la.

    O fato é que o requerimento da ONU foi um tiro quase fatal no Golpe porque o Comitê é fruto e parte do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), tratado internacional ratificado pelo Estado brasileiro por meio de dois Decretos, em 1992 e 2009, o que aloca-o em nosso ordenamento jurídico com status de supralegalidade, ou seja, acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição Federal.

    Quem afirma isso é nada mais, nada menos do que o Supremo Tribunal Federal (STF). Além de vários Ministros já terem afirmado, em decisões monocráticas, que tratados internacionais sobre direitos humanos estão acima da lei ordinária, o colegiado publicou, ao menos, um Acórdão que versa sobre o tema, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5240, de 2015, que tratou da “audiência de custódia”:

     

    Parágrafo primeiro do acórdão do STF na ADI 5240

     

    Talvez, ainda mais importante, tenha sido a definição da Súmula Vinculante 25, que alterou a 619, que trata do fim da prisão por dívida, tendo como fundamento exatamente o caráter supralegal dos referidos tratados, no caso, o Pacto de São José da Costa Rica. Ou seja, a lei que autorizava a prisão de depositário infiel perdeu seu efeito.

     

    Precedente Representativo para a Súmula Vinculante 25

     

    É aqui que a Lei da Ficha Limpa cai por terra diante da Liminar da ONU, pois trata-se de uma lei inferior ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o que consequentemente anula os efeitos de inelegibilidade do ex-presidente Lula. Cenário que reitera a Constituição Federal no que tange as normas eleitorais de inelegibilidade:

    Inciso III do Artigo 15 da Constituição Federal de 1988

    Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

    III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

    Portanto, a candidatura de Lula está assegurada não apenas pela Liminar da ONU, pois a própria Constituição reafirma-a tendo em vista que o ex-presidente não teve seu processo transitado em julgado, ainda lhe restam duas instâncias: Superior Tribunal de Justiça (STJ) e STF.

    Resta, então, a conclusão de que, se o Estado de direito for respeitado, Lula será candidato e poderá fazer campanha. Não há escapatória jurídica e digna para o Estado brasileiro ignorar ou negar a liminar da ONU. Caso optem pela indignidade, o Golpe ficará nu para o mundo todo.

    Notas

    1 Thaís S. Moya é socióloga, pós-doc em Ciências Sociais (Unicamp)
    2 Para ver o inteiro teor do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5240, de 2015: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=308563579&tipoApp=.pdf
    3 Para ver a Súmula Vinculante 25: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1268
    4 Essa matéria recebeu o selo 025-2018 do Observatório do Judiciário.
    5 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • O Brasil para inglês ver e o Brasil real

    O Brasil para inglês ver e o Brasil real

    Meu sucessor como presidente se coloca,
    falsamente, como vítima de uma conspiração da ‘‘elite’’.
    (FHC) (1)

    Parece evidente que o Lula jamais será julgado de forma imparcial.
    (FKC) (2)

    O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), 87 anos, buscou um dos arautos do capitalismo financeiro global para fustigar Lula: publicou uma matéria no Financial Times, jornal inglês, em que nega que Lula esteja sofrendo perseguição política. Nega que a democracia brasileira esteja em ruínas. Nega a vigência de um Estado de Exceção no país. Nega inconformidades no impeachment de Dilma Rousseff e no processo que condenou Lula.

    O jurista Fábio Konder Comparato (FKC), 81 anos, denuncia que nunca houve democracia no Brasil. Denuncia que Lula, considerado um intruso pela oligarquia, nunca será julgado de forma imparcial. Denuncia que o Judiciário brasileiro sempre foi corrupto. Denuncia que há dois ordenamentos jurídicos no país: o oficial e o real.

    Apenas uma letra (FHC e FKC) e todo um universo os diferenciam. Colocamos seus pensamentos lado a lado.

    A condenação de Lula

    FHC

    “O ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva tem todo o direito de defender o seu ponto de vista no país e no estrangeiro em relação aos processos judiciais que pesam sobre ele. Esses processos levaram à sua prisão, depois que um tribunal federal de apelação, em janeiro, manteve sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro.

    A maneira pela qual Lula da Silva escolheu para defender-se para o mundo, no entanto, precisa ser contestada. Em um artigo recente, ele apresentou uma versão da história recente do Brasil que não carrega qualquer relação com a realidade. Isso seria um problema para os historiadores, não fosse ele o líder político influente que é.”

    FKC

    “A Operação Lava Jato manifestou uma estranha associação de alguns Procuradores da República com o juiz Sérgio Moro, para promover ações penais por corrupção, praticamente só contra políticos do PT e empresários a eles ligados.

    A Operação acabou por provocar a destituição da presidente Dilma Rousseff pelo Congresso Nacional e a instalação de um novo governo federal, cuja atuação se destaca pela entrega de mão beijada da extraordinária riqueza das nossas jazidas de petróleo do pré-sal a estrangeiros, bem como pela redução escandalosamente inconstitucional dos direitos sociais, para benefício do grupo oligárquico dominante.

    Logo a seguir, tivemos a esperada denúncia criminal do ex-presidente Lula, a fim de que ele não possa se candidatar à presidência em 2018. Atingido assim o verdadeiro objetivo da Operação Lava Jato, é de se esperar que ela venha desde logo a ser desmontada.” (FKC) (3)

    O Estado de Direito

    FHC

    “O ex-presidente retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, em que o Estado de Direito deu lugar a medidas arbitrárias concebidas para minar a ele e seu partido. Isso não é verdade.”

    FKC

    “Eu andei estudando recentemente a tradição judicial brasileira. O Judiciário no Brasil sempre foi corrupto. E isso não era dito, obviamente, pelos brasileiros, mas foi dito, sem exceção, por todos os viajantes estrangeiros.” (4)

    O governo FHC

    FHC

    “Também não é verdade, como Lula da Silva afirma, que o Brasil estava sem rumo antes que ele assumisse a presidência em 2003. É só lembrar da bem-sucedida estabilização da economia, depois de anos de hiperinflação, que começou com o Plano Real lançado pelo ex-presidente Itamar Franco e continuado durante o meu governo. Este foi também um período marcado pela constituição de programas sociais que Lula da Silva expandiria seria posteriormente.”

    FKC

    “Logo no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram privatizadas nada menos do que oitenta empresas públicas, notadamente a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores empresas mineradoras do mundo, a maior produtora mundial de minério de ferro, de pelotas e de níquel, além de produtora de manganês, ferroliga, cobre, bauxita, potássio, caulim e alumínio. (….)

    Essa privatização, justificada à época pelo chamado Consenso de Washington – conjunto de dez recomendações do Fundo Monetário Internacional adotadas em 1990 – foi, na verdade, operada na bacia das almas.

    Os compradores da Companhia do Rio Doce, por exemplo, beneficiaram-se de financiamento subsidiado pelo BNDES, não tendo sido levado em conta, no preço de venda das ações de controle, o valor potencial das reservas de ferro por ela possuídas, as maiores do mundo.

    Contra essa operação de venda do controle público da Vale do Rio Doce foram intentadas mais de cem ações judiciais, nenhuma delas acolhida pelo Judiciário; o que bem demonstrou a submissão cabal dos magistrados à dominação da oligarquia empresarial, nacional e estrangeira.

    Para completar esse quadro de completo abandono do princípio republicano e do Estado de Direito, logo no começo do seu mandato Fernando Henrique Cardoso iniciou tratativas junto ao Congresso Nacional para operar uma mudança constitucional, permitindo a sua própria reeleição como Presidente da República, incluindo nessas tratativas a compra de votos de vários deputados federais, que acabaram sendo judicialmente condenados. O Presidente, no entanto, saiu ileso de todo esse criminoso episódio, não tendo contra ele sido intentado em juízo procedimento algum.” (5)

    Sobre a democracia brasileira

    FHC

    “Sua versão das últimas décadas da história brasileira é peculiar, na qual ele às vezes aparece como o salvador do povo e, por vezes, como vítima de uma conspiração da ‘elite’. Sua versão propicia, inadvertidamente, a deslegitimação do esforço coletivo que é o fundamento da democracia brasileira.”

    FKC

    “O governo verdadeiro da democracia, que nunca, jamais, em momento algum, vigorou no Brasil, é o regime político em que a soberania, ou seja, o poder supremo, pertence a quem? Ao povo. Acontece que a burguesia, muito mais inteligente, do que a gente imagina, já desde o século XVIII aceitou essa ideia, mas debaixo do pano era ela que dava as cartas no regime da chamada democracia representativa.” (6)

    O impeachment de Dilma

    FHC

    “O impeachment e deposição da presidente Dilma Rousseff do cargo em 2016 não foi, ao contrário do que Lula da Silva afirma, um golpe de Estado. Foi o resultado de, entre outras coisas, a violação do seu governo de lei de responsabilidade fiscal do Brasil no período imediatamente anterior à eleição 2014.

    O processo de impeachment seguiu todas as conformidades constitucionais, sob a supervisão do Supremo Tribunal brasileiro, no qual a maioria dos ministros foi nomeada por Lula da Silva e Dilma.”

    FKC

    “Haveria alguma personalidade com mais chances do que ele [o juiz Sérgio Moro] para enfrentar politicamente Luiz Inácio Lula da Silva?

    Acontece que nenhum magistrado pode candidatar-se a algum posto eletivo no Brasil. Só restava, portanto, uma saída, que era inviabilizar a própria candidatura potencial de Lula, mediante a sua condenação criminal. Foi o que fez Sérgio Moro em sentença prolatada em julho de 2017. Logo em seguida, em flagrante violação de seus deveres de magistrado (Lei Complementar n. 35, de 14.03.1979, art. 36, III), o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que atuou como segunda instância no respectivo processo, teceu publicamente rasgados elogios à sentença condenatória.

    Não foi essa, porém, a única condenação criminal a Lula, como não tardou a se verificar.

    Nesse meio tempo, nossos oligarcas prepararam e executaram em 2016 o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República, por meio de manobras ilegítimas, com a conivência do Ministério Público e do Poder Judiciário. O proveito para a oligarquia brasileira e o Estado norte-americano foi imediato e conspícuo, como se verá mais abaixo.” (5)

    O devido processo

    FHC

    “A minha crítica não é motivada pelo antagonismo pessoal. Lula da Silva e eu lutamos juntos contra o regime autoritário que dominou o Brasil entre 1964 e 1985. Na sequência, quando concorremos como adversários em eleições democráticas, eu mantive uma relação construtiva com ele.

    Lamento que o ex-presidente enfrente acusações adicionais de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas o fato é que os processos judiciais em que ele esteve envolvido seguido o devido processo e foram realizadas em conformidade com a Constituição e o Estado de Direito.”

    FKC

    “Os grandes burocratas casavam-se com as filhas dos grandes fazendeiros, dos grandes senhores de engenho (…) O dinheiro público era considerado um patrimônio próprio desta sociedade, de grandes agentes estatais e grandes empresários. (…) Afinal das contas, é todo um velho costume. Acontece que a operação Lava Jato, como eu disse antes, ela veio entrar nesse campo e atacar esse velho costume. E, a meu ver, isso foi necessário para desmoralizar os petistas e os governantes ligados ao petismo. Mas, ao final das contas, teve um lado negativo para eles, americanos e seus asseclas brasileiros: é que ficou evidente que, ao final das contas, isso aqui não começou ontem com o Lula, vem de séculos.” (4)

    Efeitos “colaterais” da operação Lava Jato

    FHC

    “O caso de Lula da Silva não é um caso isolado. No Brasil, existem os políticos de todos os partidos na prisão, muitos dos quais tiveram condenações mantidas por um tribunal de apelações. Entre eles incluem-se membros do meu próprio partido, o PSDB.”

    FKC

    “O que, porém, ninguém previra foi o espraiamento da Operação Lava Jato, de modo a atingir individualmente os próprios oligarcas; inclusive o Presidente da República, fato sem precedentes em nossa história republicana. Denunciado criminalmente duas vezes pelo Procurador-Geral da República, Michel Temer teve que prodigalizar uma ampla distribuição de benesses aos deputados federais, a fim de barrar o início do processo penal perante o Supremo Tribunal Federal. Tudo isso, enfim, parece assegurar que, segundo todas as probabilidades, a coligação oligárquica tradicional permanecerá como titular da soberania em nosso país durante um tempo indefinido.” (5)

    Sobre o cumprimento de pena quando ainda cabe recurso

    FHC

    “O precedente para a prisão após uma condenação ser mantida por um tribunal federal de apelações decorre de um acórdão do Supremo Tribunal que é muito anterior à condenação de Lula da Silva. Pessoas condenadas começam a cumprir sua sentença sem que isso afete o seu direito de recorrer aos tribunais superiores.”

    FKC

    “O preceito fundamental da presunção de inocência, assegurado pelo art. 5º, incisos LVII e LXI, da Lei Maior, está sendo lesionado pela Presidente dessa Suprema Corte diante da insistente recusa de pautar o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54 – na qual se busca ver reconhecida a necessidade do trânsito em julgado de sentença condenatória para o início do cumprimento de pena, exatamente como previsto no Texto Constitucional.” (FKC e mais quatro juristas em petição ao STF) (7)

    Sobre a (in)elegibilidade de Lula

    FHC

    “Além disso, a inelegibilidade de Lula da Silva para concorrer à presidência nas próximas eleições é resultado de uma iniciativa popular que recebeu mais de 1 milhão de assinaturas, foi aprovada pelo Congresso e assinado em lei por ele mesmo em 2010. A chamada Lei da Ficha Limpa, resultante de uma campanha da sociedade civil contra a corrupção, proíbe qualquer pessoa condenada por um tribunal de apelações de concorrer a um cargo eletivo.

    A iniciativa popular que resultou na lei foi uma resposta direta ao escândalo do Mensalão, um esquema fraudulento de compra de descoberto em 2005. O desmantelamento desse esquema de corrupção não impediu outro, ainda maior, de ser perpetrado em alguns dos maiores empresas estatais, notadamente Petrobras. A investigação sobre este escândalo, conhecido como Lava Jato ou “Car Wash”, descobriu um esquema para desviar bilhões de dólares para Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva.”

    FKC

    “No Brasil, desde a colonização até agora, existem dois ordenamentos jurídicos. Existe o ordenamento oficial, que em grande parte não é aplicado. E existe o ordenamento jurídico real, que é dado nas suas grandes decisões justamente pelos oligarcas. Na Constituição de 88 introduziu-se o plebiscito e o referendo. E um jurista que é mais ou menos conhecido no meio jurídico propôs, ao Conselho Federal da OAB, uma lei para regulamentar o plebiscito e o referendo. Evidentemente que essa lei nunca foi aprovada. Por quê? Porque o plebiscito e o refendo existem no ordenamento oficial, como mostra para o estrangeiro, ‘nós somos um povo civilizado, democrata etc.’, mas não pode existir na realidade.” (6)

    O momento atual do Sistema de Justiça brasileiro

    FHC

    “O Brasil está passando por um processo doloroso mas necessário de remoralizar a sua vida pública, e as ações do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário fazem parte deste processo.

    Nem sempre me sinto confortável com as penas impostas ou com a expansão das detenções preventivas, em que o acusado é preso antes mesmo de seu primeiro julgamento em um tribunal inferior.”

    FKC

    “Como era de se esperar, os bons resultados das políticas implementadas pelo Governo Lula não deixaram de inquietar o poder oligárquico. Aproveitando-se do controle oligopólico que exerce há décadas sobre os meios de comunicação de massa, ele centrou seus ataques nos casos de corrupção ou prevaricação envolvendo ministros, que foram obrigados a deixar seus cargos.

    Malgrado tais percalços, no entanto, o apoio popular a Lula não cedeu durante ambos os mandatos. Ao final do primeiro deles, em dezembro de 2006, uma pesquisa do Instituto Datafolha indicou que 52% dos entrevistados consideravam o seu governo ótimo ou bom; e em março de 2010, no último ano do segundo mandato, essa percentagem havia aumentado para 76%. Tais fatos voltaram a inquietar sobremaneira nossos oligarcas.” (7)

    O país de FHC e o país de FKC

    FHC

    “É uma grave distorção da realidade, no entanto, para dizer que há uma campanha segmentada no Brasil para perseguir indivíduos específicos. O meu país merece mais respeito.”

    FKC

    “Durante anos … eu estou com 81 anos, até mais ou menos os 75 ou 76 anos, eu tinha esperança nesse país. Confesso que agora não tenho mais. É claro que a história é sempre feita de imprevistos e é possível que surja um imprevisto qualquer, a morte súbita de alguém ou um acontecimento extraordinário, mas dentro dos cânones constitucionais, eu não vejo saída.”

    “Mas, então, por que o senhor continua?” Perguntou Rodolfo Lucena.

    “Porque eu acho que tenho o dever de denunciar. Denúncia é importante. Se não produzir efeitos imediatos, ela acaba produzindo efeitos futuramente. E ela serve de exemplo. Eu disse que a mentalidade coletiva só se muda através de uma educação pública e educação pública organizada durante gerações, mas essa educação pública organizada durante gerações, ela é também estimulada pela denúncia. Porque se o crime coletivo ficar evidente para a população, os oligarcas não poderão escondê-lo. Eles vão tentar levar a coisa ao máximo que puderem sem cair no abismo, mas o que eu não sei é quando isso vai se dar.” (4)

    Notas

    1 Todas as citações ao ex-presidente FHC foram extraídas do artigo Lula da Silva’s vision of Brazil is a damaging fiction:
    https://www.ft.com/content/7775bddc-a46c-11e8-a1b6-f368d365bf0e

    2 Comparato: ‘Parece evidente que Lula jamais será julgado de forma imparcial’: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/07/comparato-parece-evidente-que-lula-jamais-sera-julgado-de-forma-imparcial

    3 Contra o absolutismo do Judiciário, o controle social. Entrevista com Fábio Konder Comparato:
    http://www.ihu.unisinos.br/noticias?id=560415:contra-o-absolutismo-do-judiciario-o-controle-social-entrevista-especial-fabio-konder-comparato-2&catid=159

    4 Comparato fala a Tutameia sobre julgamento de Lula: https://youtu.be/wM2Csu4Ei68

    5 Comparato: 2016, a grande revanche oligárquica:

    Comparato: 2016, a grande revanche oligárquica

    6 Prof Fábio Konder Comparato A oligarquia brasileira ao longo da história: https://www.youtube.com/watch?v=qyBr8cEjV_8&feature=youtu.be

    7 Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-pt-pcdob-omissao-carmen-lucia.pdf

    8 Essa matéria recebeu o selo 024-2018 do Observatório do Judiciário.

    9 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.