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  • A saída de Moro dividiu, mas o vício em fake news reunirá o enxame bolsonarista

    A saída de Moro dividiu, mas o vício em fake news reunirá o enxame bolsonarista

     

    ARTIGO

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana

    Na conversa de Whatsapp entre Moro e Bolsonaro, mostrada pelo próprio
    ex-juiz, lemos que o presidente utilizou o inquérito das fakes news no STF para
    justificar a troca no comando da Polícia Federal. Ora, por que Bolsonaro está
    preocupado com o inquérito das fakes news no STF? Certamente não é apenas pelo
    fato de as investigações estarem se aproximando de seu filho, Carlos. Os desdobramentos do inquérito podem enfraquecer uma das estruturas que mais sustentam o bolsonarismo.
    Vejamos.
    As fake news se alimentam de um discurso do “contra tudo o que está aí” que
    tem muitas causas, como o desgaste produzido pelos achismos impulsionados pela
    cultura do like e do comentário online, até a baixa confiança que há muito tempo vem
    desgastando o papel das mídias e de outras instituições democráticas, como a política
    institucional e mesmo a ciência. A pandemia tem sido um alerta para o risco que a
    banalização do desmonte de toda e qualquer autoridade pode trazer. Assistir os
    populistas, como Bolsonaro e Trump, desafiando abertamente a ciência e as verdades
    mais bem estabelecidas e, ainda assim, serem ouvidos, deixou de ser apenas curioso
    para se tornar uma ameaça à nossa existência.
    A desconstrução da ciência pelo novo populismo assenta em teorias
    conspiratórias nas quais uma suposta verdade real teria sido ocultada por estruturas de
    poder. Assim, agendas como o revisionismo da ditadura militar, o movimento
    anti-vacina, a denúncia da indústria da multa, a invenção da ideologia de gênero nas
    escolas, o ensino domiciliar e a crença na Terra plana são quase sempre acompanhadas
    de uma pseudo-ciência, de pseudos ou quase-cientistas, bem como de estratégias de
    desinformação e mobilização identitária e emocional.
    O negacionismo bolsonarista não admite seu aspecto irracional ou anticientífico.
    Ao contrário, alimenta as expectativas de que uma ciência verdadeira legitima suas
    narrativas e delírios. E sempre haverá uma pseudo-autoridade para dar um verniz de
    ciência à mais absurda das teorias. Quando já não podem sustentar suas farsas, os
    bolsonaristas recorrem ao argumento da liberdade de expressão, sempre a partir de um
    entendimento tão falso e deturpado quanto o de suas pseudo-teorias. Liberdade de
    expressão torna-se, então, direito à impunidade e a opinião um mero achismo.
    Vale ressaltar que opinião é um juízo que resulta de um processo de
    conhecimento que envolve ações como ler e ouvir pessoas qualificadas; já o achismo é
    o livre exercício da ignorância individual sem qualquer compromisso com a realidade.
    Mas, como separar o joio do trigo ou, no nosso caso, a notícia da falsa notícia?
    Como convencer um apoiador de Bolsonaro que o colapso da saúde em Manaus
    realmente existe? Em muitos casos, só o fato da notícia sobre as mortes em Manaus ser
    veiculada pelo Jornal Nacional faz com que perca credibilidade ou se torne uma verdade
    inconveniente a ser ocultada. Esses comportamentos nos mostram pelo menos dois
    aspectos a serem considerados: o das pessoas que são enganadas e o das pessoas que
    querem se enganar, pois consideram as notícias não apenas um elemento para formar
    opinião e decidir, mas uma arma na briga de torcidas que se tornou a política em tempos
    de polarização.
    Assim, aqueles que se informam pelo Jornal da Record ou pelo Jornal Nacional
    estão cada vez menos interessados na realidade e mais em como usá-la para fortalecer
    suas identidades e crenças. Afinal, os mesmos fatos dão lugar a climas e narrativas
    muito distintas em cada emissora de TV a depender das ênfases, de como o noticiário é
    editado e dos comportamentos dos âncoras e comentaristas.
    A tendência ao achismo disfarçado de jornalismo, muito piorado com a expansão
    dos canais de notícias 24h, também contribuiu para a confusão generalizada. A notícia
    tornou-se um entretenimento que mais reforça convicções do que forma opinião. A
    desconfiança fanática da autoridade vem disfarçada por uma retórica que simula o
    pensamento crítico. Todos “sabem” agora que os interesses da Rede Globo afetam a
    forma como seus telejornais noticiam, mas essa “crença” substitui qualquer esforço de
    análise individual do que é noticiado. Um juízo que inicialmente até poderia ser crítico,
    torna-se um dogma.
    Além disso, o comentário, em tempo real, em canais do Youtube que replicam
    ao vivo a programação dos noticiários promovem uma verdadeira guerra de guerrilha
    atualista. A matéria jornalística é desconstruída antes mesmo que seja concluída, como
    podemos ver na imagem abaixo, retirada da seção de comentários ao Jornal Nacional do
    dia 24 de abril em um canal do Youtube, dia da demissão de Sérgio Moro.

    Cada indivíduo é hoje uma ilha cercada de telas por todos os lados. Os
    transtornos psicológicos causados pelas ondas de atualizações que chegam sem parar
    em nossas telas têm nome e siglas: SIF e FOMO. E todas elas se relacionam a uma
    espécie de “infoxicação”, isto é, ao medo de estar perdendo algo, de não estar
    atualizado, de ficar por fora. É esse medo que leva as pessoas a checar suas redes sociais
    compulsivamente em busca de atualizações, o que cria uma sensação de urgência e
    impede a escolha e a seleção do que deveria ser relevante.
    A popularização recente da palavra atualizar mostra o quanto estamos diante de
    um fenômeno novo. É somente entre as décadas de 1960 e 1970 que as ocorrências da
    palavra, em inglês (Update) e em português (atualização) se multiplicam e o uso
    associado à cultura do computador começa a definir melhor o seu sentido. Desde então,
    a ideia de atualizar passou a ser uma espécie de remédio para todos os males e
    preocupação. Quanto mais aceleramos o processo comunicativo maior é nossa demanda
    por estar atualizado. Daí, surge o desejo por um “tempo real” da total transparência, do
    total acesso às coisas e aos indivíduos.
    Antes da Internet era comum as pessoas passarem o dia inteiro sem falar ou
    saber das notícias de quem saía para trabalhar, por exemplo. Famílias ficavam meses e
    anos sem ter notícias de seus parentes distantes. Hoje, a ideia de não falar ou saber de
    alguém no momento mesmo em que se deseja é insuportável.
    Queremos estar 100% atualizados acerca de quem nos interessa, somos atuais
    em um sentido completamente novo. Mas essa atualização tem seu preço, significa ter
    milhares ou mesmo milhões de pessoas te cancelando no Twitter por uma frase que
    você acabou de postar-pensar; e sabemos que o intervalo entre o pensar e o postar é
    cada vez menor.
    Um sonho atualista é viver em um tempo em que não haja distância entre a ação
    e sua comunicação/integração a um sistema. É estar sempre em estado presente, o que significa que as ações passadas continuariam disponíveis sem que fosse preciso decidir sobre sua relevância e recuperação. Talvez por isso as transmissões ao vivo – chamadas de lives – vêm fazendo tanto sucesso. Enquanto você assiste a um programa “ao vivo” pode ficar focado em um único fluxo atualizado de informações, isso antes de lembrar de todas as outras coisas que continuam a acontecer enquanto você está entretido.

    No Instagram a gravação das lives ficam disponíveis por algumas horas apenas, depois se esvaem como qualquer conversa presencial, sem deixar registro além da memória viva e móvel dos que a viveram. Em outros canais as gravações permanecem indefinidamente, acumulando uma multidão zumbi – não seria esse o nome para uma live que já não está ao vivo? O cinema não imaginou que o apocalipse zumbi pudesse vir na forma de uma pandemia de infoxicação.
    O sonho atualista torna-se pesadelo quando esse fluxo incessante é marcado pelo
    ressurgir constante de apreciações opostas e contraditórias, como o atual conflito Moro e Bolsonaro ilustram tão bem. É, também, o que sentimos em uma disputa de hashtags no Twitter em um dia de noticiário relevante, ou com a gritaria dos youtubers pró-governo tentando chamar nossa atenção. Quantos tuítes preciso postar ou retuitar para mudar a opinião de alguém? Quero dialogar ou silenciar? Quero informar ou infoxicar meu oponente?
    O ativista virtual pode ser comparado com um viciado. Ao que parece, essa
    experiência é análoga à maratona de séries nos canais como Netflix, com a diferença de que as as temporadas e os episódios de ativismo são intermináveis. A cada dia ogabinete do ódio oferece novas missões para sua base, e como a identidade é mais
    emocional que ideológica, fica fácil tornar um antigo aliado no mais terrível oponente,
    um campeão do liberalismo em um comunista, um tucano em petista. Como nos
    desenhos animados, nenhuma lei natural parece limitar a realidade desse universo
    paralelo.
    Nessa direção, asfixiar as ciências humanas é também um objetivo. Só assim se
    pode entender, por exemplo, sua exclusão do último edital do CNPq para bolsas de
    iniciação científica. Quanto menos capazes de criticar e formar opinião através da
    leitura e recepção inteligente das mídias, mais as pessoas vão se ancorar no achismo e
    no conforto do rebanho. Nossos avós chamavam isso de “maria vai com as outras”. Por
    preguiça ou incapacidade de formar sua opinião, a pessoa aceita como sendo sua os
    julgamentos de alguém que está mais próximo. Em um mundo cada vez mais solitário,
    este alguém mais próximo deixou de ser um ente amado ou sua comunidade e passou a
    ser o grupo do WhatsApp, a celebridade digital e as novas igrejas que funcionam como
    conglomerados de mídia.
    Apesar das últimas pesquisas apontarem certa divisão na direita, ainda é difícil
    saber o quanto da base que rachou, para apoiar o Sérgio Moro, resistirá ao afastamento
    do enxame ou da manada bolsonarista. Como esses viciados ficarão sem produzir e
    destilar o ódio que dá sentido a suas vidas e realidade? A nova direita alinhada com
    Moro conseguirá criar seu próprio universo sem o apoio unânime da grande mídia ou da
    máquina de mentira bolsonarista? Talvez a judicialização da questão ditará os rumos
    desta disputa. Ainda mais se o impedimento do presidente por crime comum via STF
    caminhar. Enquanto isso, teorias da conspiração e fake news crescem sem freios.

    E o que fazer?

    Parte da solução passaria por mais investimentos em instituições e sujeitos capazes de promover uma atualização responsável das crenças socialmente
    relevantes a fim de quebrar as máquinas de fake news. No lugar de menos, precisamos
    de mais profissionais das humanidades capazes de assumir o papel de curadores desse
    fluxo incessante de conteúdo produzido em tempo real. Esses novos profissionais
    trabalhariam ao lado dos especialistas em informática para propor soluções digitais mais
    responsáveis e eficientes no tratamento da infodemia.
    Uma maior regulação das grandes empresas do capitalismo de vigilância como
    Google, Amazon, Facebook etc, também é urgente. A quebra de seus monopólios, a
    imposição de limites ao uso de dados pessoais, são ações estruturantes que poderiam
    mudar este cenário.
    De todo modo, uma coisa é certa: as fake news bolsonaristas foram e serão
    responsáveis por muitas mortes durante a pandemia no Brasil, em especial, porque
    estimularam o afrouxamento da quarentena. Além disso, a política oficial de
    subnotificação também tem como objetivo manter essa máquina de guerra em pleno
    funcionamento para tentar responsabilizar o STF, os municípios e os estados pelos erros
    do próprio governo federal, enquanto o presidente posa de guardião dos empregos e da
    economia.
    Ou seja, Bolsonaro e os bolsonaristas têm razão para estar preocupados e irados,
    como fica claro nas agressões constantes à imprensa.

    Enquanto isso, “Chora a nossa pátria, mãe gentil/ Choram Marias e Clarices no
    solo do Brasil”. Fiquem em casa.

     

    Esse artigo foi elaborado com a pesquisa e colaboração de Mayra Marques, doutoranda
    em História pela UFOP.

     

  • Bolsonaro quer uma história oficial olavista

    Bolsonaro quer uma história oficial olavista

    ARTIGO

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores na Universidade Federal de  Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

     

    Foi publicado hoje, 27/4, no Diário Oficial da União, o veto ao Projeto de Lei 4699/12, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que regulamentava a profissão de historiador. O PL foi aprovado pela Câmara e pelo Senado. Segundo o projeto, poderia exercer a atividade de historiador os diplomados com curso superior, mestrado ou doutorado em História, com linhas de pesquisas dedicadas à história, bem como profissionais diplomados em outras áreas que comprovarem ter exercido a profissão de historiador por mais de cinco anos.
    A justificativa do veto de Bolsonaro, a partir de recomendação pelo Ministério da Economia e AGU, afirma que a PL 4699/12 restringe o livre exercício profissional e a livre expressão. A alegação de inconstitucionalidade se deu no último dia do prazo e em meio à guerra política deflagrada pela saída de Moro do governo e à pandemia do coronavírus. O que pode estar por trás dessa ação?
    O projeto pretendia garantir a presença de profissionais de história em arquivos, museus e outros lugares de história. Não havia nenhuma tentativa corporativa de criar monopólio de exercício profissional. O projeto regulamentava a atuação desse profissional em espaços onde a história é mobilizada, tendo em vista a lógica de regulamentação profissional brasileira.
    O fato é que, independente de um debate filosófico sobre o tema, o que se pode constatar é que diversas profissões que atuam em campos próximos, ou mesmo em áreas próximas, foram em algum momento regulamentadas. Exemplos: arquivista, desde 1976; geógrafo, desde 1979; sociólogo, desde 1980; museólogo, desde 1984.
    Ou seja, por que a existência dessas profissões não restringe o livre exercício profissional e a livre expressão? Não se trata, portanto, de inconstitucionalidade. Até porque o mesmo projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. Na época, a relatora do projeto, a deputada Fátima Bezerra, argumentou que a exigência garantiria a qualidade do ensino: “Quem ganha com isso é o estudante, quem ganha com isso é a educação”, disse.
    A luta da Associação Nacional de História (ANPUH) é longa. E, como se vê, vários governos se omitiram nessa questão. Mas, o ponto é: o porquê desse veto agora?
    Sem meias verdades: o que está por trás dele é a produção de conteúdo histórico por aparelhos de propaganda olavistas e bolsonaristas. E aí estamos falando de um mercado milionário, em especial, dos livros didáticos para educação básica, comprados pelo MEC.
    Em poucas palavras: esse veto pode ajudar a monetizar ainda mais o chamado “Gabinete do Ódio”! Enfraquecendo a ciência histórica os bolsonaristas esperam poder vender sem concorrência suas mentiras acerca de nosso passado e presente, dominando, assim, o futuro.
    Como perder esse prato cheio para as fake news e a desinformação? Trata-se, portanto, de mais uma ação do bolsonarismo em sua cruzada para criar uma versão negacionista de uma história única que interessa à sua agenda política. O bolsonarismo não sobrevive sem a negação, a revisão e a manipulação da história, como as manifestações recentes pedindo a reedição do AI-5, com o apoio do presidente nos mostram.
    Pesquisa divulgada hoje pelo Atlas Político, mostra que 30% da população ainda aprova o governo de Jair Bolsonaro. E Bolsonaro governa para essa “pequena maioria”. E no interior desse projeto a guerra cultural é peça-chave, pois o bolsonarismo precisa de um ambiente e de novas gerações favoráveis para que o universo paralelo de desinformação mantenha seu público doutrinado e cativo.
    O caso Moro mostra que os fatos podem ser distorcidos para se produzir uma narrativa de acordo com a conveniência política do bolsonarismo. À medida que velhos aliados se tornem adversários, suas biografias são reescritas misturando verdades e mentiras, deslocando os fatos de seu contexto e produzindo um conjunto que é simplesmente falso. É um projeto de uma falsa história escrita de acordo com a conveniência dos poderosos, sem fontes, sem crítica, impulsionada por uma máquina de propaganda. O poder de veto das fontes, tão caro aos historiadores e historiadoras, pouco importa.
    Uma parte do núcleo duro do bolsonarismo nasceu da comunidade de memória da negação da ditadura. Essa comunidade de memória é especialista em criar simulacros de verdade a fim de legitimar a impunidade, a mentira, abusos e distorções de memória. Para esse tipo fundamentalista a memória inventada da comunidade em si tem mais importância que a verdade, mesmo que ela negue e/ou revise, isto é, que não aceite e distorça a factualidade do que ocorreu anteriormente para os combates do presente.
    Não podemos esquecer a exaltação ao torturador Ustra, feita por Bolsonaro, durante a votação do impeachment, em 2016. Nem a sua tentativa de reescrever e reinterpretar a história recente do Brasil. Afinal, dentro (e fora) da “Razão de Estado”, ontem (e ainda hoje) era (e é) possível justificar o injustificável: tortura e assassinatos. A pesquisa histórica contemporânea demonstra que a tortura e a prática dos desaparecimentos foi uma política de Estado durante a Ditadura Militar (1964-1985). E são evidências como essa que o bolsonarismo pretende reescrever em seu projeto de curto, médio e longo prazo.
    O veto à regulamentação da profissão de historiador é oportuno para os bolsonaristas, pois contribui para desvalorizar as Ciências Humanas, justificando o corte de bolsas promovidos pelo Ministério da Educação. Esta redução das bolsas não é apenas uma medida econômica do governo, mas também ideológica, visto que o ministro Abraham Weintraub já se manifestou várias vezes em suas redes sociais de modo a destilar ódio contra os estudantes de Filosofia, História, Ciências Sociais, Letras e áreas afins.
    A desvalorização de uma história científica e profissional contribui para a profusão de vídeos olavistas como os produzidos pelo canal Brasil Paralelo, no YouTube, que pretendem revelar “uma história verdadeira” de vários aspectos da sociedade brasileira, mas produzindo propaganda política com objetivos de doutrinação, sem qualquer compromisso científico ou profissional.
    Nesse momento, toda a sociedade civil que discorda desta iniciativa tem o dever cívico de pressionar seu parlamentar para derrubar esse veto. A regulamentação de uma profissão cria responsabilidades do serviço ofertado à sociedade. Um governo que não acredita na ciência e tem visão privatista certamente prefere as desregulamentações às regulamentações. Não quer correr o risco de ter de responder por seus crimes contra a história.
    Cada profissão tem sua especificidade e historicidade. Nem todos são favoráveis à regulamentações profissionais. Mas, no contexto atual, esse veto, como procuramos demonstrar, é antes de tudo político.
    Como disse nosso colega de UFOP e professor de História Antiga, Fábio Faversani, “Eu, pessoalmente, era contra a regulamentação. Mas a aprovação da lei que regulamenta nossa profissão é uma conquista não só da categoria (discutida amplamente em um sem número de encontros da Associação Nacional de História e tantos outros), mas também uma salvaguarda da sociedade (na medida em que foi aprovada no Parlamento). O veto a essa lei é mais um ato autoritário e desrespeitoso com a sociedade e com o Parlamento”.
    Temos a oportunidade de pressionar a Câmara e o Senado para derrubar o veto, que é um ataque à historiografia científica, aos profissionais da história e a todos/as professores/as que estão em sala de aula em todos os níveis de ensino zelando pelo patrimônio comum que é a história nacional e mundial.

    Esse artigo elaborado com a pesquisa e colaboração de Mayra Marques, doutoranda em história pela UFOP. Agradecimentos: Daniel Pinha, Fred Fernandes e Fábio Faversani

  • Somos todos brothers! Bolsonarismo e a vigilância digital

    Somos todos brothers! Bolsonarismo e a vigilância digital

    ARTIGO

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

     

     

    Assim como o vírus da Covid-19 se infiltrou em nossos cotidianos, de maneira lenta e silenciosa até se tornar o assunto dominante, o bolsonarismo saiu de zonas cinzentas da sociedade brasileira, como que mercados Wuhan de ideias e comportamentos, para se tornar uma síndrome determinante de nossa vida política e social.

    Mesmo que esse diário tenha sido motivado pela pandemia, nas condições atuais do Brasil somos obrigados a tratar do presidente como parte do problema. A pandemia parece ter tornado visível o parasita que ameaça a nossa existência como sociedade organizada. Quais as  condições ambientais que permitiram o surto bolsonarista e como essas condições poderão ser afetadas pelas consequências da pandemia? E como a polêmica sobre o monitoramento de celulares se relaciona com isso?

    Podemos definir os elementos desse ambiente de muitas formas, pois ele é dinâmico e nem todos os seus componentes são novos. Apenas para nos orientar, vamos listar alguns dos elementos que permitiram o surto bolsonarista:

    1. A ideologia neoliberal e seus magnatas-mecenas, que desde os anos 1970 financiam iniciativas cujo único objetivo é enfraquecer os estados-nacionais e facilitar a maior concentração de riquezas da história humana;
    2. O fracasso dos sistemas educacionais em oferecer ferramentas críticas que sejam capazes de proteger a cidadania das formas mais básicas de manipulação e propaganda;
    3. Uma cultura pública que continuamente celebra o individualismo e a competição como únicas formas legítimas de interação entre as pessoas (enquanto escrevemos estas linhas o assunto mais discutido no Brasil é a 20ª edição do Big Brother. Temporariamente, o Jornal Nacional passou a falar dos nomes de grandes empresas que estão fazendo doações para combater a epidemia em nome da solidariedade. Por essa lógica a solidariedade é sempre vista como caridade.
    4. A tolerância da sociedade e seus representantes com a manipulação da religião, em particular nas vertentes neopentecostais, que se tornaram verdadeiro projetos de poder que misturam fé, cultura, fundamentalismo, negacionismo, interesses corporativos-comerciais e política; e
    5. Por fim, mas sem querer esgotar a lista, as diversas ondas da revolução digital que desde os anos 1970 vêm se acelerando. A partir do novo milênio esse universo digital parece ter dado lugar a uma nova variedade de capitalismo que a socióloga Shoshana Zuboff tem chamado de capitalismo de vigilância.

    Hoje trataremos deste último item!

    O estudo conjunto da UFRJ-FespSP que apontou que 55% das postagens no Twitter a favor do presidente são feitas por robôs surpreendeu poucas pessoas. Desde a eleição de 2018 as denúncias de uso ilegal das redes sociais têm se multiplicado sem gerar grandes consequências legais ou políticas. Poucas grandes empresas, todas elas estadunidenses, controlam efetivamente a realidade digital. A Google, dona do Youtube e de uma máquina de anúncios baseados em dados dos seus usuários; Facebook, que também controla o Whatsapp e o Instagram, Twitter, Apple e Amazon. Pouco tem sido feito para limitar o uso abusivo de suas plataformas, aliás, elas mesmas têm sido acusadas de abusarem do enorme poder que acumulam.

    Mas afinal, que poder é esse?

    Shohana Zuboff, em seu livro “A era do capitalismo de vigilância”, afirma que 2008 foi o momento-chave da tomada de consciência de uma nova forma de dominação. Pressionadas pela recessão, as empresas de tecnologia precisavam provar que eram capazes de gerar os enormes lucros que prometiam. A saída encontrada pela Google foi relaxar suas políticas de privacidade, de modo que pudesse usar mais livremente o enorme volume de dados que coletava sobre o comportamentos de seus usuários.

    Todos já devem ter lido alguma solicitação ao instalar um programa ou um novo recurso no computador, tablet ou celular, cujo teor promete que a cessão das informações teria como objetivo a melhoria do serviço. Esses contratos ficaram cada vez mais longos e ilegíveis, à medida em que foram sendo ampliados os direitos das empresas sobre as informações confidenciais que estavam autorizadas quando o usuário clicava “Eu concordo”.

    Legitimadas pela ideia da melhoria do serviço, as grandes corporações estavam, na verdade, acumulando um enorme “excedente comportamental”. Isto é, um volume maciço de dados sobre nossa intimidade, que pouco tinha a ver com os serviços, mas, sim, com a formatação de novos produtos para clientes corporativos e grupos políticos. A ponta desse iceberg ficou visível para todos no escândalo da Cambridge Analytics. Empresa quer roubou informações pessoais de mais de 87 milhões de usuários do Facebook e as usou para formular e direcionar propaganda política em eleições como a de Trump e o plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit.

    Em alguma medida a promessa de melhoria dos serviços tem sido cumprida, mas os dados que estamos constantemente cedendo para as empresas têm sido usados com outros objetivos. A Google descobriu e aperfeiçoou essa nova modalidade de capitalismo quando percebeu que poderia descobrir os estados emocionais das pessoas a partir de erros ortográficos e outros detalhes, quando os usuários digitam termos de pesquisa em seu serviço de busca. Esse processo foi aprofundado com a criação do Gmail em 1º de abril de 2004, que permite a coleta de dados pessoais e a personalização de anúncios eletrônicos. A venda de anúncios com base nesses dados logo passaria a ser a principal fonte de lucro da empresa.  

    Zuboff nos dá um exemplo de como passamos rapidamente da utopia para a distopia digital. No ano 2000 foi lançado um experimento chamado “Aware Home” (Lar Consciente), que acoplava um conjunto de sensores a aparelhos e moradores de uma determinada residência em uma rede local. Era um experimento de computação omnipresencial que antecipava  o que depois ficou conhecido como internet das coisas.

    Em 2018, o mercado das chamadas casas inteligentes foi avaliado em 36 bilhões de dólares. Ele envolve assistentes de voz, como o Google Home, e o Alexa, da Amazon, ambos já envolvidos em denúncias de invasão de privacidade, mas, também, uma infinidade de aparelhos inteligentes, como interruptores, lâmpadas e câmeras de vigilância, tudo 24 horas online.

    Mas havia uma diferença ética e política fundamental no experimento do ano 2000: todos os dados gerados sobre cada um dos moradores estava disponível apenas para eles mesmos. O que temos chamado até aqui de capitalismo de vigilância é uma situação idêntica a da “Aware Home”, com a grande diferença de que os dados coletados e seu processamento em tempo real, por Inteligências Artificiais, estão, em sua maior parte, inacessíveis para nós mesmos e sob controle exclusivo das corporações ou dos hackers e empresas que conseguem burlar seus sistemas de proteção. As grandes corporações usam essa avalanche de dados, em tempo real, processados por um gigantesco poder computacional, para antecipar e induzir comportamentos.

    Enquanto o capitalismo clássico estaria assentado em vários níveis de reciprocidade com a sociedade, inclusive certa ligação com instituições liberais-democráticas, o capitalismo de vigilância teria quebrado essas reciprocidades. A ideologia neoliberal que se expandiu a partir dos anos 1970 contribuiu para alimentar esse divórcio, dando lugar ao que Zuboff chama de mutação espúria do capitalismo.

    Não queremos concluir aqui que o Bolsonarismo é um agente infiltrado do capitalismo de vigilância, apenas que ele parasita esse ambiente de modo bem sucedido, sem ameaçar o hospedeiro. Até certo ponto essa relação tem sido simbiótica, beneficiando os dois em algum sentido.

    A adesão e agitação digital promovidas pelo bolsonarismo expande os bancos de dados das empresas do capitalismo de vigilância que, por sua vez, são bastantes permissivas com os pequenos abusos cometidos por seus usuários poderosos.

    No caso do bolsonarismo, percebemos que ele cresceu desde 2014, no início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a partir e no interior de uma comunidade de memória de negação do passado autoritário. E nunca nada foi feito para conter apologias e mentiras sobre a ditadura, por exemplo. Empresas como Facebook têm resistido a regular o uso de sua plataforma para a disseminação de fake news por grandes agentes políticos da nova direita global, como pode ser lido na matéria do The Guadian de dezembro de 2019.

    Em 29 de março de 2020 toda a imprensa noticiou a decisão do Twitter de apagar duas postagens do perfil pessoal de Jair Bolsonaro, alegando que o conteúdo contrariava orientações das autoridades de saúde no combate à covid-19. Nenhum poder público havia solicitado a ação, mas, ainda assim, a empresa decidiu agir: uma gota no oceano de notícias e perfis falsos que infestam o Twitter, como mostrou a pesquisa que citamos no começo do artigo. Longe de representar um avanço, a decisão legitima a demanda das grandes corporações acerca de sua autorregulação e oculta os abusos em massa que toleram. O cenário não é diferente no Youtube, no Facebook ou Whatsapp. O Youtube tem sido amplamente condenado por usar um mecanismo de seleção de vídeos que reforça a polarização, tudo isso em nome de maiores lucros. 

    Como retomar o controle de nossa própria vida, de assumir de volta os projetos de futuro que teriam sido substituídos pelos planejamentos corporativos, em sua cruzada anti-política e pelas expectativas atualistas de que devemos deixar as decisões coletivas para as máquinas inteligentes? A União Europeia e os estado da Califórnia aprovaram leis de proteção aos dados pessoais que são um passo importante em uma longa batalha.

    Antes que pudéssemos avançar muito nesta direção, a pandemia nos tornou ainda mais dependentes das armadilhas da jaula digital. Como na fotografia de Victor Moriyama, a privacidade do lar ao qual fomos confinados é o grande laboratório do capitalismo de vigilância. Do dia para a noite ficou visível que, em alguma medida, somos todos membros involuntários de um Big Brother global do qual não conhecemos bem a audiência.

    O direito à privacidade, e a própria existência de uma mente individual inviolável foram condições para as liberdades políticas conquistadas nos últimos séculos. Então nos perguntamos: o que vai acontecer quando a mente e a intimidade estiverem em tempo real monitoradas e condicionadas pelas grandes corporações ou pelos estados de vigilância no modelo chinês?

    Essa nova e súbita demanda por digitalização tem ampliado o interesse de grupos que até então mantinham-se a uma distância segura das redes sociais. Quem sabe se dessa nova onda de interesse não possa também surgir uma consciência mais aguda das reformas que precisamos fazer? 

    Quem herdará as estruturas do capitalismo de vigilância que estão sendo aperfeiçoadas para o combate da pandemia?

    Ao longo de março e abril, vários países, inclusive o Brasil, em parte, inspirados no modelo chinês e sul coreano, montavam e ampliavam as suas estratégias de combate à crise a partir de práticas de vigilância digital, por exemplo, em relação à mobilidade, ao controle da temperatura corporal, dos movimentos, dos batimentos cardíacos, e também dos sinais de celular e dos acessos virtuais, entre outras ações. O Estado de São Paulo, recentemente, anunciou um acordo com as quatro grandes operadoras locais para produzir mapas das concentrações de pessoas pela cidade. No dia seguinte, o governo federal desistia de iniciativa semelhante, ao que tudo indica, por decisão direta do presidente, embora essa posição parece mudar com a indicação de um nome de confiança do bolsonarismo para o Ministério da Saúde. O novo ministro, com fortes ligações com Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (SECOM)l, já deu sinais de que conta com os sistemas de vigilância para combater a pandemia.

    Essas estruturas de vigilância ficarão cada vez mais disponíveis aos Estados após a pandemia, independentemente do tipo de governo, pois não se trata aqui de pensar a eficiência no controle da pandemia a partir da dicotomia entre ditaduras e democracias. Se a China parece ter sido bem sucedida utilizando-se de seu imenso controle social, a Coreia do Sul também tem sido um exemplo bem sucedido em uma ambiente mais aberto e democrático. A dimensão da tragédia americana e, possivelmente, a brasileira, se relaciona, diretamente, com a ineficiência de seus governantes.

    Enquanto fechamos este artigo, recebemos de um amigo, no Whatsapp, um vídeo em que Flávio Bolsonaro divulga a ideia da TV Bolsonaro. Através de um aplicativo, promete superar as limitações que o Facebook estaria impondo aos bolsonaristas. Mais um lance em um jogo de xadrez cuja complexidade cresce a cada dia.

    Fontes jornalísticas citadas:

    https://www.theguardian.com/technology/2019/dec/02/mark-zuckerberg-facebook-policy-fake-ads

    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52101240

    https://catracalivre.com.br/cidadania/55-dos-posts-feitos-a-favor-de-bolsonaro-no-twitter-sao-de-robos/

    https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/14/bolsonaro-descarta-monitorar-deslocamentos-sp-quer-ampliar-sistema.htm

    https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/sistema-vai-monitorar-aglomeracoes-em-sp-por-meio-de-celular

     

     

  • Bolsonaro perde ou ganha com a pandemia?

    Bolsonaro perde ou ganha com a pandemia?

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

     

    Temos acordado com a sensação de que pouco podemos fazer para reverter possíveis tragédias, já que a onda mais forte da crise se aproxima. Ao que parece, o presidente aposta que o seu futuro político depende mais do controle das narrativas em sua base de apoio do que da realidade da pandemia. Se o cenário for controlado pelas políticas de isolamento, que ele tanto critica, ele vai reafirmar o tema da gripezinha, e se a situação sair de controle haverá a herança maldita petista e os chineses para culpar.

    O que parece certo, no entanto, é que a máquina de comunicação atualista montada pelo bolsonarismo estará pronta para explorar qualquer cenário. Em 2016, para exemplificar o quão fiel era sua base de apoio nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump disse que poderia atirar em alguém no meio da rua que, ainda assim, não perderia um voto. Bolsonaro tem exposto seus os apoiadores ao vírus diariamente e, até agora, não parece ter perdido muitos votos.

    Para garantir esse nível inédito de fidelidade é preciso manter um fluxo incessante de narrativas que moldem a realidade aos interesses do líder atualista e de sua base. É preciso ainda que o líder e a base sintam-se um só. De certa forma, Bolsonaro não apenas representa sua base de apoio, ele a corporifica, por isso essa necessidade contínua de exibição de apoio mútuo em manifestações públicas. Enquanto escrevemos estas linhas, em 11/4, a imprensa noticia mais uma quebra da quarentena, com o presidente aglomerando apoiadores em visita a obra de hospital de campanha em Goiás.

    No artigo da semana passada dissemos que a experiência do tempo atualista se relaciona com a digitalização da realidade e a realidade digital. Assim, essa experiência tem relação direta com a infodemia. A explosão de notícias em fluxo contínuo é um fenômeno que evoluiu com a internet e o capitalismo de vigilância. Nesse processo, percebemos que o valor da verdade é constantemente confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida.

    Essa estrutura atualista impede que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Outro elemento que parece sustentar essa forma de comunicação é o diagnóstico em tempo real dos valores e disposições das bases de apoio. Esse diagnóstico está amparado em novos e velhos canais, desde a sinergia com os líderes evangélicos, militares e grupos empresariais, até o uso legal e ilegal do mapeamento e manipulação de dados digitais.

    E não é justamente isso que Bolsonaro tem feito nas últimas semanas? A oscilação em suas afirmações, uma certa revisão da postura negacionista, isto é, nomear a Covid-19 de “gripezinha” certamente tem a ver com a percepção, por parte de sua equipe, da queda de sua popularidade, em especial, entre os mais ricos.

    Ainda assim, seus índices de aprovação têm ficado mais ou menos estáveis, variando entre 33% a 40%, considerando as margens de erro. Uma pesquisa Datafolha do dia 8/4 mostrava que 83% das pessoas que votaram em Bolsonaro, no segundo turno, não se arrependeram do voto. Trinta e três por cento achavam ótima ou boa a conduta do presidente na atual crise, e 25% achavam regular, isto é, a maioria. Para 39% a conduta do presidente na crise era ruim ou péssima. Considerando a margem de erro de três pontos é possível que o número de aprovação e reprovação fosse o mesmo, ou seja 36%. Pesquisa do Ideia Big Data, do mesmo dia, indicava percentuais semelhantes.

    O que aconteceu, já que a popularidade do presidente estava caindo? Como bem mostra um artigo do site da revista Piaui, assinada por José Roberto de Toledo, Bolsonaro fez duas mudanças táticas: moderou o discurso, mas só para inglês ver, e mudou a agenda ao passar a defender, ainda mais, o remédio milagroso para a cura da Covid-19: a cloroquina.  

    No pronunciamento, também no dia 8, ele chegou a elogiar o médico do ex-presidente Lula que afirmou ter utilizado a cloroquina em seu tratamento, acompanhado por outros médicos. No mesmo discurso, ele se solidarizou, pela primeira vez, com a família das vítimas. Além disso, reafirmou que a responsabilidade do isolamento é dos governadores e prefeitos, e voltou a fazer oposição ao seu próprio ministro da Saúde.

    Nesse movimento, como em outros, Bolsonaro segue de perto a agenda de Trump, com diferenças acessórias e de ênfase. No Brasil, Bolsonaro briga com Mandetta, nos EUA Trump seguidamente desautoriza e é desautorizado pelo Dr. Anthony S. Fauci, especialista médico da Casa Branca. O Dr. Fauci teve, inclusive, sua segurança pessoal reforçada após receber diversas ameaças de morte por parte de apoiadores de Trump que acreditam que as medidas de quarentena fazem parte de um complô para sabotar o presidente.

    Em ambos os casos os presidentes lucram por supostamente terem escolhido um técnico competente à frente da resposta à crise e, ao mesmo tempo, alimentam-se de teorias da conspiração contra esses mesmos técnicos. A insistência de Trump nos poderes de cura da hidroxicloroquina motivou o The New York Times a publicar, no dia 9 de abril, uma matéria especial sobre os mitos envolvendo a droga que começa com a seguinte frase: “Não há provas de que qualquer droga possa curar ou prevenir a infecção do coronavírus”.  Enquanto isso, no Twitter brasileiro, diversas pessoas publicam em seus perfis o mesmo relato de cura de um mesmo primo, que depois se tornaria um meme. Fica a pergunta, quantos apoiadores do presidente estão dispostos a espalhar mentiras para defender suas narrativas?

    Nos dias 8 e 9, o Jornal Nacional mostrava que um dos efeitos da ação de Bolsonaro era a diminuição e o relaxamento do isolamento social. Enquanto isso, em três investidas, até o dia 11, o presidente provocava aglomerações em passagens por espaços públicos. E em sua postagem ao vivo no Facebook, no dia 8, faz uma provocação ao afirmar que queixas sobre a quarentena devem ser encaminhadas aos governadores.

    O cálculo parece ser o seguinte: caso o número de mortes seja elevado, e ainda que a sua popularidade caia, é provável que ele diga que o isolamento não funcionou. Caso o desdobramento da pandemia não seja tão trágico, ele vai atribuir aos governadores a crise econômica, além da imprensa, por ter causado a “histeria”.

    Ou seja, é possível que ele ganhe (ou lucre) em qualquer que seja o cenário, mesmo com e apesar do “isolamento” atual. Ainda assim, paradoxalmente, ele sai dessa crise mais fraco do que entrou. Certamente o vírus, em três meses, causou mais danos em sua imagem e seu governo do que a oposição em um ano. Além disso, desde o dia 10/4 as panelas e vozes contra a atuação do presidente estão mais presentes no espaço público e na mídia. Até mesmo nos muros das grandes cidades, como na marginal Pinheiros, em 10/4, em São Paulo.

    Ainda assim, acreditamos que ele ganhará mais se a crise epidêmica for menor.

    E o impeachment?

    No momento, parece ser uma opção difícil de se concretizar, até porque a base bolsonarista continua mobilizada e disposta a lutar e defender seu presidente. Difícil avaliar a extensão do trauma que uma interrupção precoce de mandato provocaria em uma base tão fiel. E, caso aconteça, esse fato realizaria as fantasias de perseguição e conspiração.

    Mesmo na esquerda há quem duvide de que a substituição de Bolsonaro por Mourão representaria  algum avanço. As elites do atraso, ditas ilustradas, que se distanciaram do bolsonarismo, podem voltar a se aproximar, particularmente quando a agenda do ajuste fiscal ressurgir como a panaceia para a crise econômica. Afinal, as direitas mundiais têm sido eficazes em reagrupar, com agilidade, os setores obsoletos e atualizados em seus campos. 

    A questão, portanto, é entender o bolsonarismo.

    A esse respeito, destacamos o áudio recebido de um amigo, acerca do nosso texto, sobre os 100 primeiros dias da pandemia. De acordo com ele, nós, os autores, estamos ajudando a jogar o país no buraco, pois só criticamos o presidente, coisa que, ainda segundo ele, não acontecia com a “p*ta da Dilma”. As mídias estariam interessadas em derrubar o presidente, em especial a Rede Globo. “Em vez de falar sobre Bolsonaro, ‘vocês’ deveriam alertar as pessoas não sobre as mortes, mas, sim, sobre os doentes que se recuperaram da Covid-19; alertar que quem é jovem deve trabalhar e quem deve ficar em casa é ‘velho’.”

    Ele tem medo de que o Brasil vire uma Cuba ou Venezuela. Nosso amigo grita ainda que a oposição deveria respeitar o presidente e deixá-lo governar, que a esquerda e os comunistas devem ser extintos do Brasil: esse parece ser o desejo com maior conteúdo emocional, embora comunista possa ser qualquer coisa neste tipo de discurso, não há um contorno ideológico claro. Repete, quase em transe, diversos temas da propaganda bolsonarista: a crise é apenas um pretexto para derrubar o presidente; a quarentena é uma forma de implantar o comunismo no Brasil, já que ele não pode dispor de seu negócio, não pode ir e vir.

    Infelizmente, essa reação não parece ser um caso extremo ou isolado. Então, fica a pergunta: qual é o espaço para diálogo e argumentação com este tipo de reação? Qual percentual da base bolsonarista chegou a esse ponto de radicalização que parece sem volta? Alguma mudança na realidade poderá quebrar esse círculo de fidelidade e identificação emocional? 

    Nas redes bolsonaristas os comunistas chineses são os inimigos da vez. Ainda mais com o PT e o Lula sumidos do noticiário. Tudo isso pode ser visto em imagens que circulam nos grupos de Whatsapp.

    Articular o bolsonarismo com o atual capitalismo de vigilância pode contribuir para superar certas ilusões. Como a de que a democracia brasileira havia se consolidado e estava sólida. Ilusão que levou a maioria do campo progressista a não ver o ativismo de direita e centro-direita, particularmente após 2013. Desse modo, é preciso entender que o negacionismo bolsonarista não admite seu aspecto irracional ou anticientífico, ao contrário, alimenta as expectativas de que uma “ciência verdadeira” legitima suas narrativas.

    Diante disso, podemos nos perguntar até que ponto vivemos uma real guerra de ideologias e até que ponto as estratégias deliberadas de desinformação tornam mesmo impossível falarmos em ideologias. Também não sabemos até onde figuras como Bolsonaro e Olavo de Carvalho apresentam um grande conhecimento intuitivo e um controle “carismático” sobre seus seguidores.

    Na atual guerra cultural, talvez o primeiro passo a ser dado por uma parcela significativa da esquerda fosse reconhecer a derrota, isto é, aceitar que o bolsonarismo tem uma base social que o apóia e o defende ativamente, apesar da nossa tendência em não querer aceitar. Isso significa compreender que a atual pandemia, assim como o bolsonarismo, se articulam com um dado de fundo: a tragédia humana produzida pelo capitalismo em seu estágio digital. Muitas pessoas que tiveram e têm as suas vidas destruídas por esse modelo econômico, desigual e cruel, tiveram esperanças de transformação a partir da voz de Bolsonaro. Do nosso ponto de vista, as vítimas desse modelo econômico são alvos fáceis para a desinformação, que deve ser separada da apropriação espontânea das narrativas, e dos discursos de ódio.

    Considerando o grave momento que vive a humanidade, gostaríamos de não ter que discutir os ganhos ou perdas das irresponsáveis disputas políticas de Bolsonaro, em um cenário em que o mais relevante é, no final das contas, a luta pela sobrevivência da vida humana, sem distinção de credo étnico, religioso ou político. Isso, já sabendo que as pessoas negras, pardas, indígenas e pobres, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, estão sendo e serão as mais atingidas, infelizmente.

    Bolsonaro não irá cair de maduro, como muitos esperam. E sua reeleição não é algo inviável, como muitos acreditam. Despidos de qualquer teoria, ou paixão política, podemos dizer que é chocante e revoltante ver a autoridade máxima do nosso país brincando com a morte alheia. Infelizmente, enquanto não formos capazes de voltar a ter algum controle coletivo sobre a produção e circulação de dados e informações, os políticos atualistas continuarão a dobrar a realidade a seu favor. Mas isso já é o tema do próximo artigo.

    Até breve! E fiquem em casa!

    P.S. Esse artigo foi escrito a duas mãos, algumas vezes em tempo real, na plataforma do Google drive e com o apoio de Mayra Marques.

     

     

     

  • Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

    Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

    2ª parte

    Quando interrompemos a primeira parte deste texto, estava claro que os brasileiros entrariam em isolamento para enfrentar a pandemia. Sem mais comentários, retomemos a nossa crônica-diário. (Para quem ainda não leu a primeira parte basta acessar aqui: https://jornalistaslivres.org/covid-19-100-dias-que-mudarao-o-mundo/)

    77o dia – 16 de março, segunda-feira. No dia anterior Mateus voltava de sua viagem de estudos de seis meses em Bolonha, na Itália, estávamos ansiosos para nos reencontrar. O Brasil tem 15 casos de Sars-Covid-19. A imprensa cobre o ato contra o STF e o Congresso Nacional, realizado no domingo, com a presença de Bolsonaro, apesar dos riscos de contaminação. Desde o dia 11 de março repercute as contaminações de membros da comitiva da viagem do presidente aos Estados Unidos, tendo o primeiro caso sido confirmado já no dia 12. Até agora Bolsonaro não divulgou os exames que confirmariam que ele mesmo não teria sido contaminado. Ou teria o presidente se contaminado, mas se curado com o tratamento da hidroxicloroquina, por entre tantos fakes, como saber? Nesse dia, disse a respeito da pandemia, em sua peculiar linguagem fragmentada: “Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até a China já praticamente está acabando.”

    78o dia – 17 de março. A Europa responde por 74% dos novos casos. À noite, no Brasil, pode-se ouvir o primeiro “panelaço” contra o governo de Jair Bolsonaro. Ficava pronto o livro organizado por nós (e por Bruna Stutz): “Do Fake ao fato: desatualizando Bolsonaro”. Ainda acreditávamos que faríamos lançamentos presenciais. Era uma só uma ilusão. 

    79o dia – 18 de março. Os jornais noticiam a primeira morte pelo vírus em São Paulo. O presidente do Senado e dois ministros de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Reportagem do site Outras Palavras perguntava: “Coronavírus impulsionará impeachment?”. Uma brasileira, diretora-assistente da OMS,  afirma que os brasileiros estavam minimizando o risco do coronavírus. Médico que tratou o primeiro paciente morto no Brasil faz apelo para que pessoas fiquem em casa. O site Intercept noticia que a empresa Riachuelo mantinha funcionários em escritório mesmo com casos de coronavírus confirmados. De noite, mais panelaços contra o governo. Eles são vistos pelos autores com esperança. Reportagem do ConJur afirma que corte de jornada e salários proposto pelo governo divide advogados.

    80o dia – 19 de março. Nas esquerdas aumenta a preocupação com as periferias e os mais vulneráveis durante a epidemia. A Embaixada da China no Brasil responde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) e filho do presidente, que acusou, no dia anterior, o país asiático de omitir informações sobre a pandemia: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos”. Economistas apontavam para o risco de depressão e do aumento da pobreza em função da pandemia. Alguns argumentos diziam que o Brasil estava a cerca de dez dias atrás da Itália no ritmo da epidemia.

    83o dia – 22 de março.  No dia anterior marcamos um churrasco para nos encontrarmos, isto depois de muito debate, Valdei tem histórico de asma e não sabe ainda se está no grupo risco. Na manhã deste domingo Mateus acorda com tosse, fadiga e febre: churrasco e reencontro adiados sem data. De noite, após ter áudio de conversa em Whastsup vazada em que chamava de histéricas as preocupações com a epidemia, o empresário Roberto Justus sofre com protestos no Twitter e em outras redes sociais. Alinha-se com outros empresários bolsonaristas que argumentavam na mesma direção, como os donos da Madero, Havan e Riachuelo.

    84o dia – 23 de março, segunda-feira. Boris Johnson reconhece a gravidade da crise no Reino Unido e muda o discurso e as ações que vinha adotando. Em 3 de março, em entrevista, se gabava de continuar a apertar as mãos da vítimas da Covid-19.

    85o dia – 24 de março. Ao mesmo tempo que Bolsonaro recua na medida provisória sobre o corte de salários, o Banco Central libera mais de 1 trilhão de reais para os bancos. Reportagens denunciam que o empresário, dono da Madeiro, afirma que a economia não pode parar em função de 5 ou 7 mil mortes. Renda Familiar de Emergência era anunciada na Argentina. Bolsonaro fez um pronunciamento que difere em substância de seus dois anteriores, nos dias 6 e 12 de março. No fatídico discurso de 24 de março, o presidente minimiza a doença, criticando as medidas de isolamento. Apesar de breves elogios ao ministro da Saúde, faz apelos para que as pessoas voltem à normalidade, contrariando o próprio ministro. Critica o que ele denominou de histeria da imprensa, argumentando que o caso da Itália só seguiu os rumos que conhecemos, pelo elevado número de idosos do país, além do seu clima frio, e que, portanto, não poderia servir de exemplo ao Brasil. Questiona o fechamento de escolas e sugere que apenas pessoas do grupo de risco deviam se confinar. Critica duramente os governadores de estados, os quais acusa de estarem levando a economia ao colapso. Nomeia os efeitos do Coronavírus de “gripezinha”, se vangloria de seu histórico de atleta e ainda especula sobre o tratamento com a hidroxicloroquina. Mais panelaços durante o pronunciamento. E muitas reações imediatas, inclusive do presidente do Senado, que pede liderança séria para lidar com a crise. O premiê do Japão pede o adiamento dos jogos olímpicos de Tóquio por um ano. Médica e enfermeira do SUS de Ouro Preto faz visita domiciliar a Mateus para avaliar se o caso era suspeito de Covid-19. OMS vê potencial para que os EUA se tornem o novo epicentro da crise.

    86o dia – 25 de março. Outra enfermeira da cidade de Ouro Preto recolhe três amostras, nas narinas e na garganta de Mateus. O exame é enviado para a Fundação Ezequiel Dias em Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste dia, 25 de março, a febre cede.

    87o dia – Em 26 de março, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos afirma que a ultra-direita fracassa no combate ao vírus. Ao mesmo tempo, pesquisa do instituto Gallup indica que a provação de Trump subia para o maior nível do seu mandato. Mais de 1.000 mortos nos EUA pelo coronavírus. A epidemia avança na Espanha, com mais de 4.000 mortos e 56 mil casos confirmados. Na América Latina, medidas rígidas são adotadas pela maiorias dos governos. Para Trump a Covid-19 ainda é como uma gripe e os casos nos EUA estavam caindo.

    88o dia – 27 de março. Bolsonaro lança campanha publicitária com o slogan #OBrasilNãoPodeParar e o site Intercep mostra que há certa adesão social a esse discurso. A OMS afirma que a evolução da pandemia na África é gravíssima. Nos chegam relatos de que em condomínios de luxo em bairros nobres de Vitória ( ES) os cuidados com o vírus são minuciosos, com funcionários, não dispensados, higienizando três vezes ao dia os espaços comuns. Na tarde dessa sexta-feira, alguns moradores desses prédios devem ter se juntado à carreata que no final da tarde pedia a reabertura do comércio em Vitória e Vila Velha, #OBrasilNãoPodeParar. O papa Francisco produz uma das imagens mais icônicas ao caminhar pela Praça de São Pedro vazia, levava consigo um crucifixo que a tradição diz ter salvado a cidade de Roma da peste negra em 1522.

    89o dia – 28 de março. A manchete de um jornal português sintetiza a preocupação do país com o alastramento do vírus: “Covid-19 em Portugal. A caminho do desconhecido e a tentar atrasar o passo”. Uma manchete, uma síntese, uma constatação: a de que vivemos um momento em que atrasar o passo pode ser mais prudente do que a chegada rápida a um certo futuro. Mas quem decide como e quanto atrasar? Quem paga a conta? Questões da boa e velha política.

    90o dia – 29 de março. A manchete da Folha afirma que moradores passam fome nas favelas e começam a sair às ruas. Trump agora refere-se “a gripe” como pandemia e prolonga o isolamento nos EUA. Ele se diz preocupado: “Eu só via essas coisas em países distantes, nunca no nosso”. Enquanto isso, Bolsonaro passeava pelas ruas do Distrito Federal estimulando as pessoas a irem às ruas. Em decisão inédita, as postagens com os vídeos do presidente foram removidos de sua conta pelo Twitter no mesmo dia. Nesse momento, as declarações de Bolsonaro passam a se distanciar um pouco das de Trump, embora o repertório comum seja vasto. Continua a se contrapor à maioria dos prefeitos e governadores do país, bem como ao seu ministro da Saúde, que reforçava as políticas de isolamento.

    91o dia – 30 de março, segunda-feira. O Parlamento Húngaro, sob justificativa de combater o coronavírus, dá poderes quase ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, dentre eles, a possibilidade de censura.

     92o dia – 31 de março. Os ministros da Justiça e Economia se opõem a Bolsonaro e apoiam o ministro da Saúde. O isolamento social é respeitado por 60% das pessoas no Brasil, mostra software. Quinze estados brasileiros usam a tecnologia que mapeia comportamento individual através de sinais de dispositivo de rede sem fio. O site O antagonista resume o novo pronunciamento do presidente da seguinte forma: “Jair Murphy Bolsonaro. Se algo pode dar errado, é porque vai dar errado”. Vice-presidente exalta Ditadura Militar (1964-1985) no dia do aniversário do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Os autores passam o dia envolvidos com a campanha #DitaduraNuncaMais. Mateus continua com febre e tosse. Ainda sem resultado do exame.

    93o dia – 01 de abril. Às 7h45 a Prefeitura de Mariana confirma a primeira morte pelo covid-19 na cidade, um homem de 44 anos, sem comorbidades e com provável contaminação local. Não sem alguma ironia, a Folha noticia que no pronunciamento do dia anterior o presidente teria mudado o tom buscando a conciliação. Dia da mentira? Ele e seu grupo político continuam a guerra de desinformação contra o seu próprio ministério da Saúde. O país já registra 42 mortes. Bolsonaro compartilha vídeo falso a fim de sugerir que o isolamento social pode gerar uma crise de desabastecimento. Depois que a farsa foi denunciada ele pede desculpas, gesto raríssimo que talvez demonstre o quanto se sente isolado. Como muitos estudiosos diziam: a luta é contra a pandemia e a infodemia, ao mesmo tempo. As notícias falsas e o vírus competem para ver quem viraliza mais, isto é, quem sofre mais mutações atualizantes.

    94o dia – 2 de abril. As notícias sobre subnotificação ganham as manchetes. Governo anuncia redução e suspensão de salários durante a pandemia. O jornal El País afirma que o Brasil tem sido preterido por fornecedores para obter material médico contra o coronavírus. Usar ou não usar as máscaras? Eis a questão?

    95o dia – 3 de abril. Os casos globais chegam a 1 milhão. No Brasil, Bolsonaro continua em rota de colisão com o seu ministro da Saúde. Equador entra em colapso sanitário. O país tem a oitava população do continente, mas já registrava o segundo maior número de mortes. Covid-19 acaba com 10 milhões de empregos nos EUA. Profissionais da saúde no Brasil denunciam a precarização das condições de trabalho em tempos de pandemia. O bolsonarismo dissemina diversas narrativas eficazes, em especial, entre a população evangélica. O ministro da Saúde, Mandetta, é o principal alvo das milícias digitais: Quantos são robôs? Quem financia? Qual o papel da leniência de Facebook, Twitter e Google com essas práticas? É divulgada uma pesquisa feita com dados do Twitter do dia 15 de março, quando a #BolsonaroDay subiu, apontando que 55% das postagem nessa hashtag haviam sido feitas por robôs. O Judiciário e o Legislativo assistem a tudo impassíveis: bilontras ou bestializados?

    96o dia –  4 de abril. Todas as chamadas da primeira página da Folha são dedicadas à pandemia, sem exceção. Chega em nosso Zap, enviado por uma amiga do Rio Grande do Norte, um áudio convocando para o jejum e oração do domingo que começava pedindo a “proibição e criminalização do socialismo, comunismo e marxismo cultura dentro do Brasil”. A atriz (?) continuava sua fala – com um sotaque nordestino genérico – pedindo a destruição do Foro de São Paulo, que estaria por trás da grande conspiração para quebrar o Brasil, e explicava: “A China comprou a Itália, com isso, no fim do ano a Itália ficou cheia de jovens chineses que cuspiam e tossiam em tudo para espalhar o vírus”. Continua: “A Itália tem 30% de velhos e é fria, por isso houve aquela matança generalizada. O vírus só gosta de frio, segundo, a cloroquina está sendo muito eficaz na cura da Covid-19, os governos estaduais de esquerda estão usando a quarentena para quebrar o Brasil, com o país parado, com demissões em massa, o povo vai ficar sem dinheiro e com fome, a Europa pode fazer quarentena por ter lastro da moeda em Ouro, a do Brasil não, esse é o plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, estão soltando presos. Tudo isso para levar ao impeachment de Bolsonaro, mas se ele cair, o Mourão não vai poder assumir, porque houve uma PEC37 em 2019 que vetaria, haveria nova eleição e Ciro Gomes – que está sendo financiado pelo governo Chinês, pois o país asiático quer comprar todas a empresas brasileiras a preço de banana. A assim, o Brasil se torna socialista”. Um certo desespero de professor: como se combate esse tipo de narrativa? Podemos descobrir a cura para a pandemia, mas a infodemia será o novo normal?

    97o dia – 5 de abril. Bolsonaro e apoiadores fazem jejum religioso contra o novo coronavírus – e o plano comunista para dominar o Brasil. Olavo de Carvalho, guru do presidente, defende em seu perfil no Facebook a demissão de Mandetta usando um desrespeitoso trocadilho: “Fora, ministro Punhetta”. O ministro seria o “exemplo típico  do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”. O guro do governo ainda afirma que “tudo o que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica”.

    98o dia – 6 de abril, segunda-feira. A imprensa internacional anuncia o agravamento da situação de saúde de Boris Johnson, premier britânico da nova direita global que, inicialmente, fez coro com os que minimizam os efeitos da pandemia. O pensador indígena brasileiro, Ailton Krenak, afirma que “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”. O ministro Mandetta quase cai ao longo do dia. Um amigo envia um e-mail no fim da noite: “Estamos sendo atualizados no papel de transmissores passivos de vírus, sem alma e sem coração”. Em função da pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde adotará na próxima semana a arriscada estratégia do distanciamento social ampliado, isto é, reduzir o isolamento em cidades e estados com 50% da capacidade de saúde vaga. Fato que, segundo o próprio Ministério, aumentará o número de infectados. Finalmente, a OMS divulga um documento sobre o uso das máscaras, que tinham ido do inferno ao céu, durante a pandemia. No mesmo dia, uma reportagem afirmava: “Mortes por coronavírus se concentram em poucas cidades no mundo: Nova York tem 29% dos mortos pela Covid-19 nos EUA e se tornou o epicentro da doença. São Paulo reúne 40% dos óbitos do Brasil”. São Paulo estará a caminho de ser um epicentro global?

    99o dia – 7 de abril. Estimativas apontam para o fato de que a pandemia iria elevar em até 22 mil as pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina. Na África, os casos confirmados passam de 10 mil. A maioria dos 54 países já havia tido um caso. A África do Sul, o país mais atingido, já tinha 1.700 doentes. Brasil tem 114 mortes por coronavírus em 24h, a maior cifra em um dia. O total de mortes chega a 667. O Datafolha divulga pesquisa mostrando que 28% dos brasileiros não fazem isolamento, uma porcentagem parecida com o apoio quase incondicional do presidente: as narrativas do zap estariam funcionando? Ao mesmo tempo, a Folha afirma que o remédio defendido pelo governo pode não ser a salvação esperada por muitos bolsonaristas: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. O Whatsapp limita o envio de mensagens para combater a infodemia: todos se perguntam se o limite vale também para os robôs e empresas de impulsionamento? Morre de covid-19 o pastor norte-americano Landon Spradlin, que ficou famoso por chamar a pandemia de histeria. Nova York tem mais mortes por covid-19 do que no 11 de setembro. Os EUA lideram o número de casos no mundo, sendo que registraram o maior número de mortes por coronavírus em um único dia, com mais de 1.800 mortes. No Twitter, Trump ataca a OMS e a China. O site O antagonista registra que por razões econômicas o presidente da Turquia, “Erdogan, rejeita o isolamento, e o vírus avança na Turquia”. “Erdogan tem resistido aos apelos dos médicos e da oposição para que ordene às pessoas a permanência em casa – ele insiste que ‘as rodas da economia precisam continuar girando’”. No Twitter, Bolsonaro envia votos de recuperação a Boris Johnson. A CEF libera aplicativo para pedidos do apoio de 600 reais aprovado pelo Congresso.

    100o dia – Dia 8 de abril, agora. A cidade que foi o epicentro original, Wuhan, recebe de presente sua “liberdade”. Depois de 11 semanas, 76 dias, o bloqueio da cidade chega ao fim. Há receios, no entanto, de ondas de recontaminação na China. The Guardian: “Cidade chinesa de Wuhan reabre quando Boris Johnson passa a segunda noite em terapia intensiva”. Casos globais atingem 1,4 milhão de pessoas. O teste feito por Mateus ainda não está pronto, mas a recuperação é visível. Valdei segue em isolamento em Padre Viegas, distrito de Mariana, cidade em que as mineradoras não pararam suas atividades. A cada dia ônibus repletos de trabalhadores circulam entre as minas e os bairros e distritos. Quem pode imaginar como serão os próximos 100 dias? O Globo noticia que o pacote de 600 reais de ajuda exclui 21 milhöes de trabalhadores necessitados.

    Deixemos para a próxima coluna, para não nos alongar mais, a pausa reflexiva para pensarmos nas respostas às muitas perguntas que esses 100 dias deixam em aberto. Até breve! Fiquem em casa!

     

     

    [1] Professores de História na UFOP, em Mariana.

  • Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

    Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

     

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

     

    Cem dias e seis questões: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as novas direitas estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará os estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?

    Para pensar de forma livre sobre essas questões construímos uma espécie de diário dos 100 dias, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro. Desde então, os eventos se agitam de tal forma que sem esse esforço de parada reflexiva somos apenas levados pelas atualizações. A nova direita global tem usado essa agitação das notícias para reforçar seu poder, o caminho progressista precisa ser outro.

    A forma diário se inspira também no clima apocalíptico que temos vivido. Nos canais de streaming, filmes sobre epidemias, como Outbreak (1995), reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. Quando chegará entre nós o pico da epidemia? Quão severas serão suas consequências, agora agravadas pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas, em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes na segunda maior economia do mundo.

    O que faremos adiante é escrever a história de como o Covid-19 foi se infiltrando em nossas vidas. Nosso objetivo, assim, é apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Queremos pensar para além da agitação atualista as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. O “atualismo” tão bem explorado pelas direitas globais, é uma das consequências da explosão de notícias em fluxo contínuo, onde o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida. Essa estrutura impede que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro nunca admitem erros, eles apenas atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Os seus discursos mudaram em função da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Por isso o diário, a forma mais básica de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante.

    Ao navegar por esse diário, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas.

    1o dia – O algoritmo de Inteligência Artificial (IA) da empresa canadense BlueDot faz uma série sobre uma possível pandemia. Era 31 de dezembro de 2019 e a China acabava de alertar a OMS para casos de uma pneumonia incomum em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes. Enquanto isso, em nosso grupo no Whatsapp discutíamos um dos assuntos que iria atormentar os governantes logo no início da epidemia no Brasil: o aumento do número de trabalhadores informais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mostrava o alto índice de desemprego e o aumento da informalidade do mercado de trabalho, que na época girava em torno de 40%. Não sem razão, é justamente para esse público que as principais disputas, propostas e ações políticas se dirigiriam adiante.

    8o dia – Em 7 de janeiro 2020 o vírus foi identificado e batizado de SARS-CoV-2 e a doença por ele provocada de Covid-19, sigla para a expressão inglesa Doença do Vírus Corona de 2019. Neste momento os autores deste texto continuavam envolvidos em um projeto cuja temática tem nos absorvido há algum tempo: o bolsonarismo. A identificação do novo vírus como causador de uma Síndrome Respiratória Aguda Grave imediatamente trouxe à memória os eventos da SARS de 2002-2003, que teve um alcance limitado e foi rapidamente contida. Embora inevitável, entender a Covid-19 como uma SARS 2.0 seria um grande erro. 

    12o dia – Em 11 de janeiro, dois dias depois da divulgação do primeiro óbito causado pelo novo vírus, o que nos mobilizava era a pesquisa que mostrava o rosto negro e feminino dos evangélicos brasileiros. Perguntávamos sobre os discursos e práticas que os setores progressistas poderiam construir para essa parte fundamental do eleitorado hoje, em especial como afastar certos eleitores da zona de encantamento da chamada pauta de costumes da direita, que capturou valores e sentimentos dessas pessoas. Ou, ainda, como dar um significado emancipador a uma determinada parte desses valores.

    14o dia – Em 13 de janeiro foi registrado, na Tailândia, o primeiro caso de contágio do vírus fora da China.

    17o dia – O Ministério da Saúde do Japão relatava seu primeiro caso no dia 16 de janeiro. As duas vítimas eram pessoas que haviam visitado Wuhan. Como se vê, na primeira quinzena de janeiro, o SARS-CoV-2 ainda não era uma preocupação que estava em nosso radar. Talvez porque parte do “Ocidente” ainda operava sob as referências do Corona 1.0. Ao que parece, havia a ilusão de que a epidemia ficaria, praticamente, restrita à Ásia e de que o vírus “desapareceria”.

    21o dia – Em 20 de janeiro, a China registrava a terceira morte e mais de 200 infecções. Alguns desses casos foram identificados fora da província de Hubei onde se localiza Wuhan. Nesse dia, analisávamos os dados de uma pesquisa que mostrava que Bolsonaro era o político com mais interações nas redes sociais e no Youtube. Em 2019, ele havia postado 5.708 vezes e havia tido 731,4 milhões de reações, comentários e compartilhamentos. A média de “interações” de uma postagem dele era de 128 mil. O que mostra que, naquele momento suas ações seguiam a lógica das redes.

    22o dia – Na segunda quinzena de janeiro, porém, ia ficando claro para o mundo que o vírus não ia estacionar na Ásia, como foi a experiência com a versão anterior, SARS-Corona 1.0. Logo no início da quinzena os Estados Unidos, o Nepal, assim como França, Austrália, Malásia, Cingapura, Coreia do Sul, Vietnã e Taiwan apresentavam os seus primeiros casos. Uma reportagem da revista Exame do dia 21 destacava que já havia mais de 7 mil pessoas infectadas e a doença ultrapassava as fronteiras chinesas. A rapidez de transmissão era relativizada pelo fato das taxas de mortalidade serem mais baixas do que a de outros vírus, até mesmo do Corona 1.0.

    24o dia – A essa altura o número de mortos na China só aumentava e, em 23 de janeiro, Wuhan é colocada em quarentena efetiva, com a suspensão dos transportes aéreos e ferroviários. Além de Wuhan, Xiantao e Chibi, outras duas cidades da província de Hubei, também entraram em quarentena efetiva. No dia seguinte iniciava o feriado (de 24 a 30 de janeiro que comemora o Ano Novo chinês). Milhões de pessoas saíram em viagem para dentro e fora do país. Ao mesmo tempo, Pequim cancelava as festividades na tentativa de conter a propagação do vírus.

    Àquela altura, as notícias publicadas na China indicavam 25 mortes e 600 infectados. Para a OMS, o surto ainda não constituía uma emergência pública de preocupação internacional, pois não havia evidências de que o vírus se espalharia fora da China. Por outro lado, era a primeira vez que percebíamos os riscos crescentes de uma pandemia global a partir da reportagem intitulada “Por que o Coronavírus desperta o temor de uma pandemia”, publicada no Nexo Jornal. A notícia se valia ainda da comparação histórica entre a SARS de 2002-2003 e a de 2019. Nessa mesma reportagem, há a indicação de uma possível vítima da Covid-19 em Belo Horizonte.

    31o dia No dia 30 de janeiro, a OMS declarou o novo coronavírus uma emergência global, pois o número de mortos na China saltou para 170, com 7.711 casos relatados em todo o país. Índia e Filipinas confirmavam, também, seus primeiros casos. Nossas preocupações, nesse momento, eram com o crescimento do prestígio de Damares, ministra dos Direitos Humanos, entre os mais pobres e, ao mesmo tempo, acompanhávamos com entusiasmo o crescimento do “Movimento das Sardinhas”, na Itália.

    Nesse dia, eram publicadas várias reportagens sobre a Inteligência Artificial (IA) que havia antecipado a possibilidade da pandemia. Por meio do acesso às passagens aéreas, a IA canadense, BlueDot, conseguiu “prever”, com muita certeza, a disseminação do vírus fora da China. A esse respeito, o fundador e CEO da BlueDot, afirmou: ”Sabemos que não se pode confiar nos governos para fornecer informações em tempo hábil. Podemos captar notícias de possíveis surtos, pequenos murmúrios, fóruns ou blogs com indicações de algum tipo de evento incomum acontecendo”. Basicamente, a IA cria alertas a partir de notícias, em 65 idiomas, dados de companhias aéreas e notícias de surtos de doenças em animais. A empresa foi fundada em 2014 e o seu fundador, com capital inicial de US$ 9,4 milhões, era especialista em doenças infecciosas em Toronto, tendo trabalhado, inclusive, durante a epidemia de SARS-COVID 1.0 em 2003, que também atingiu o Canadá infectando 375 pessoas em Toronto, matando 44. Para o “dono” da IA, a solução para as pandemias é a antecipação proporcionada pelas Inteligências Artificiais.

    32o dia – Em 31/1/2020, o correspondente canadense do The New York Times perguntava: “SARS foi mortal no Canadá. O país está preparado para o Coronavírus?” Para ele, o sistema de saúde de Toronto ficou caótico e confuso durante o surto de SARS, há 17 anos. Ele afirmava que as mudanças, motivadas por aquela crise, provavelmente seriam testadas novamente. Assim, ao final de janeiro, em muitos smartphones se podia jogar o Plague Inc e também acompanhar em tempo real o número de casos e vítimas do Sars-Covid 2.0 confirmados no mundo. Um site elaborado pela Johns Hopkins monitorava a propagação da doença.

    Ainda pairava a ilusão de que a Sars-Covid 2.0 fosse permanecer confinada na Ásia. Além disso, apostava-se que a taxa de letalidade da Sars-Covid 2.0 seria menor do que o Sars-Covid 1.0. Mas, uma reportagem do site da Revista Piauí, também publicada no último dia de janeiro, alertava: “A menor letalidade do vírus é uma boa notícia para quem estiver infectado, mas não necessariamente é algo positivo do ponto de vista da saúde pública.” A mesma reportagem sinalizava para um dos principais riscos trazidos pelo vírus: “Há uma variável silenciosa que pode dificultar a estratégia de contenção do novo coronavírus, baseada em quarentena e isolamento: a capacidade de transmissão da doença por pessoas que, embora infectadas, não apresentam sintomas”. E essa era uma das grandes diferenças da versão 2.0 para a 1.0 da doença. Ao mesmo tempo, a reportagem relativizava a preocupação com a epidemia, pois se dizia que no Brasil era mais provável contrair sarampo. Ao longo de fevereiro muito se falou que era mais fácil pegar dengue do que o novo vírus.

    35o dia – Em 3 de fevereiro era provável que até as autoridades chinesas acreditassem na capacidade de contenção da epidemia. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China acusava os EUA de gerar e espalhar pânico em relação ao novo coronavírus.

    41o dia Em 9 de fevereiro, um dia depois da entrega do segundo hospital para atender pacientes infectados pelo vírus, construído em tempo recorde pelo governo chinês, a possibilidade do SARS-COVID 2.0 ser menos letal começava a desmoronar. O número de mortos na China chegava a 811 e superava o total global da epidemia da SARS de 2002-2003.

    53o dia Em 20 de fevereiro, 87% dos novos casos estavam na China, com mais de 2 mil mortes e 74 mil infectados. Mas, os dados das autoridades mostravam que, ainda assim, o número de contágios estava diminuindo. O vírus tinha se espalhado e surtos iniciavam-se em alguns países, como Coreia do Sul, Irã e Itália. Nesse dia, a Coreia do Sul anunciou sua primeira morte. 

    54o dia – O Governo italiano anunciava o início da quarentena de 50 mil pessoas. Era 21 de fevereiro e a Itália registrava o seu primeiro óbito. No dia seguinte todos os principais jornais italianos estampavam manchetes alarmantes: “O vírus na Itália: um morto no Vêneto” (Corriere Della Sera); “Virus, o Norte com medo” (la Repubblica); “Vírus na Itália, quarentena para 50 mil” (24 Ore); “Coronavírus, primeiro morto na Itália” (La Stampa); “Avança o vírus, Norte em quarentena” (Il Messaggero); “Itália infectada” (il Giornale); “Para tudo” (Il Manifesto). Para muitos italianos essas manchetes não passavam de um alarmismo exagerado e de um exagero desnecessário.

    58o dia – No dia 26 de fevereiro, a Folha de São Paulo publicava uma entrevista com o epidemiologista Wanderson Oliveira cujo título era: “Secretário do Ministério da Saúde alerta para ‘infodemia’ sobre coronavírus”. O epidemiologista, responsável pelo coronavírus no Brasil pelo Ministério da Saúde, afirmava que estávamos vivendo uma “infodemia”. Para os representantes estaduais, com ele reunidos, as informações eram perecíveis porque “não dá tempo para o sistema se adaptar às novas evidências, pois logo em seguida surgem outras”. Do ponto de vista das notícias, e da própria dinâmica da pandemia, as lógicas atualistas parecem se aprofundar. Segundo Oliveira, os dados escorrem pelas mãos, pois estamos vivendo uma epidemia em tempo real.

                Infodemia é uma das palavras do momento. A partir de seu uso por Oliveira verificamos que havia uma reportagem do The New York Times, de 7 de fevereiro de 2020 dizendo que a OMS estava trabalhando com as redes sociais (Facebook, Twitter etc) e o Google para combater a disseminação de fake news sobre a doença. A reportagem citava o uso da palavra para lidar com a situação. Até então, só há na Wikipedia verbetes sobre a palavra em catalão e finlandês. A página em catalão afirma que o termo “é utilizado OMS para referenciar-se à sobrecarga de informação falsa, à desinformação que gera alarde generalizado e às teorias conspiratórias. O fenômeno está relacionado com as fake news e com a ausência de checagem das informações antes do compartilhamento.” Na Wikipédia lusófona, a página que trata da questão se chama: “Desinformação na pandemia de Covid-19”. A página finlandesa afirma que a palavra foi usada no jornal The Washington Post no contexto da epidemia de SARS, em 2003. O acrônimo significaria uma enorme quantidade de informações certas ou erradas, mas que, muitas vezes, pouco agregam valor informativo.

    59o dia – Em 27 de fevereiro o prefeito de Milão compartilhou o vídeo “Milão não para”, desafiando a política de quarentena. No mesmo dia a Itália registrava 14 mortes pelo Covid-19 e 528 casos confirmados. Mais ou menos um mês depois, a cidade já tinha mais de 4 mil mortes por covid-19 e o prefeito pedia desculpas. Enquanto isso, no Brasil, ao longo de fevereiro, discutia-se se a esquerda teria morrido e se o PT estava obsoleto. O ex-presidente Lula se encontrava com o Papa, Bolsonaro liderava as pesquisas para a eleição de 2022 e cresciam as especulações sobre a possível candidatura de Luciano Huck. Além disso, os planos golpistas de Bolsonaro estariam em curso. No cenário internacional, o destaque político eram as especulações em torno do sucesso de Bernie Sanders nas primárias democratas na corrida presidencial dos EUA. Havia casos de contágio pelo vírus na maioria dos países do mundo.

    66o dia – Em 5 de março, a Europa já contabilizava 41% dos novos casos.

    67o dia – A imprensa noticia a chegada da comitiva brasileira no sábado, 7 de março, ao estado da Flórida, em visita oficial que incluía um encontro com o presidente Trump. Na primeira página da Folha o destaque é a crise na Bolsa, e a pandemia no Brasil ocupa ainda um lugar modesto, com um pequeno box lateral que informava serem 13 casos no Brasil. No noticiário político predomina o ato contra o STF e o Congresso convocado por grupos bolsonaristas.

    68o dia – Um dos virologistas responsáveis pelo descobrimento do Zica Vírus relativizava o impacto da pandemia no Brasil e destacava, em 8 de março, que o SARS-Covid 2.0 não ia conseguir sobreviver no calor.

    72o dia –Em 11 de março, a principal manchete da Folha é sobre o risco do colapso do sistema de saúde no Brasil. Neste mesmo dia a OMS declarava a existência de uma pandemia global de Covid-19. Desde então a pandemia seria matéria para todas as principais manchetes da Folha até o momento em que escrevemos este texto.

    75o dia – Em 14 de março, com o risco eminente do alastramento da epidemia, a imprensa brasileira destaca que os especialistas recomendam: o Brasil deve parar.

    77o dia – 16 de março, segunda-feira. No dia anterior Mateus voltava de sua viagem de estudos de seis meses em Bolonha, na Itália, estávamos ansiosos para nos reencontrar. O Brasil tem 15 casos de Sars-Covid-19. A imprensa cobre o ato contra o STF e o Congresso Nacional, realizado no domingo, com a presença de Bolsonaro, apesar dos riscos de contaminação. Desde o dia 11 de março repercute as contaminações de membros da comitiva da viagem do presidente aos Estados Unidos, tendo o primeiro caso sido confirmado já no dia 12. Até agora Bolsonaro não divulgou os exames que confirmariam que ele mesmo não teria sido contaminado. Ou teria o presidente se contaminado, mas se curado com o tratamento da hidroxicloroquina, por entre tantos fakes, como saber? Nesse dia, disse a respeito da pandemia, em sua peculiar linguagem fragmentada: “Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até a China já praticamente está acabando.”

    78o dia – 17 de março. A Europa responde por 74% dos novos casos. À noite, no Brasil, pode-se ouvir o primeiro “panelaço” contra o governo de Jair Bolsonaro. Ficava pronto o livro organizado por nós (e por Bruna Stutz): “Do Fake ao fato: desatualizando Bolsonaro”. Ainda acreditávamos que faríamos lançamentos presenciais. Era uma só uma ilusão. 

    79o dia – 18 de março. Os jornais noticiam a primeira morte pelo vírus em São Paulo. O presidente do Senado e dois ministros de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Reportagem do site Outras Palavras perguntava: “Coronavírus impulsionará impeachment?”. Uma brasileira, diretora-assistente da OMS,  afirma que os brasileiros estavam minimizando o risco do coronavírus. Médico que tratou o primeiro paciente morto no Brasil faz apelo para que pessoas fiquem em casa. O site Intercept noticia que a empresa Riachuelo mantinha funcionários em escritório mesmo com casos de coronavírus confirmados. De noite, mais panelaços contra o governo. Eles são vistos pelos autores com esperança. Reportagem do ConJur afirma que corte de jornada e salários proposto pelo governo divide advogados.

    80o dia – 19 de março. Nas esquerdas aumenta a preocupação com as periferias e os mais vulneráveis durante a epidemia. A Embaixada da China no Brasil responde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) e filho do presidente, que acusou, no dia anterior, o país asiático de omitir informações sobre a pandemia: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos”. Economistas apontavam para o risco de depressão e do aumento da pobreza em função da pandemia. Alguns argumentos diziam que o Brasil estava a cerca de dez dias atrás da Itália no ritmo da epidemia.

    83o dia – 22 de março.  No dia anterior marcamos um churrasco para nos encontrarmos, isto depois de muito debate, Valdei tem histórico de asma e não sabe ainda se está no grupo risco. Na manhã deste domingo Mateus acorda com tosse, fadiga e febre: churrasco e reencontro adiados sem data. De noite, após ter áudio de conversa em Whastsup vazada em que chamava de histéricas as preocupações com a epidemia, o empresário Roberto Justus sofre com protestos no Twitter e em outras redes sociais. Alinha-se com outros empresários bolsonaristas que argumentavam na mesma direção, como os donos da Madero, Havan e Riachuelo.

    84o dia – 23 de março, segunda-feira. Boris Johnson reconhece a gravidade da crise no Reino Unido e muda o discurso e as ações que vinha adotando. Em 3 de março, em entrevista, se gabava de continuar a apertar as mãos da vítimas da Covid-19.

    85o dia – 24 de março. Ao mesmo tempo que Bolsonaro recua na medida provisória sobre o corte de salários, o Banco Central libera mais de 1 trilhão de reais para os bancos. Reportagens denunciam que o empresário, dono da Madeiro, afirma que a economia não pode parar em função de 5 ou 7 mil mortes. Renda Familiar de Emergência era anunciada na Argentina. Bolsonaro fez um pronunciamento que difere em substância de seus dois anteriores, nos dias 6 e 12 de março. No fatídico discurso de 24 de março, o presidente minimiza a doença, criticando as medidas de isolamento. Apesar de breves elogios ao ministro da Saúde, faz apelos para que as pessoas voltem à normalidade, contrariando o próprio ministro. Critica o que ele denominou de histeria da imprensa, argumentando que o caso da Itália só seguiu os rumos que conhecemos, pelo elevado número de idosos do país, além do seu clima frio, e que, portanto, não poderia servir de exemplo ao Brasil. Questiona o fechamento de escolas e sugere que apenas pessoas do grupo de risco deviam se confinar. Critica duramente os governadores de estados, os quais acusa de estarem levando a economia ao colapso. Nomeia os efeitos do Coronavírus de “gripezinha”, se vangloria de seu histórico de atleta e ainda especula sobre o tratamento com a hidroxicloroquina. Mais panelaços durante o pronunciamento. E muitas reações imediatas, inclusive do presidente do Senado, que pede liderança séria para lidar com a crise. O premiê do Japão pede o adiamento dos jogos olímpicos de Tóquio por um ano. Médica e enfermeira do SUS de Ouro Preto faz visita domiciliar a Mateus para avaliar se o caso era suspeito de Covid-19. OMS vê potencial para que os EUA se tornem o novo epicentro da crise.

    86o dia – 25 de março. Outra enfermeira da cidade de Ouro Preto recolhe três amostras, nas narinas e na garganta de Mateus. O exame é enviado para a Fundação Ezequiel Dias em Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste dia, 25 de março, a febre cede.

    87o dia – Em 26 de março, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos afirma que a ultra-direita fracassa no combate ao vírus. Ao mesmo tempo, pesquisa do instituto Gallup indica que a provação de Trump subia para o maior nível do seu mandato. Mais de 1.000 mortos nos EUA pelo coronavírus. A epidemia avança na Espanha, com mais de 4.000 mortos e 56 mil casos confirmados. Na América Latina, medidas rígidas são adotadas pela maiorias dos governos. Para Trump a Covid-19 ainda é como uma gripe e os casos nos EUA estavam caindo.

    88o dia – 27 de março. Bolsonaro lança campanha publicitária com o slogan #OBrasilNãoPodeParar e o site Intercep mostra que há certa adesão social a esse discurso. A OMS afirma que a evolução da pandemia na África é gravíssima. Nos chegam relatos de que em condomínios de luxo em bairros nobres de Vitória ( ES) os cuidados com o vírus são minuciosos, com funcionários, não dispensados, higienizando três vezes ao dia os espaços comuns. Na tarde dessa sexta-feira, alguns moradores desses prédios devem ter se juntado à carreata que no final da tarde pedia a reabertura do comércio em Vitória e Vila Velha, #OBrasilNãoPodeParar. O papa Francisco produz uma das imagens mais icônicas ao caminhar pela Praça de São Pedro vazia, levava consigo um crucifixo que a tradição diz ter salvado a cidade de Roma da peste negra em 1522.

    89o dia – 28 de março. A manchete de um jornal português sintetiza a preocupação do país com o alastramento do vírus: “Covid-19 em Portugal. A caminho do desconhecido e a tentar atrasar o passo”. Uma manchete, uma síntese, uma constatação: a de que vivemos um momento em que atrasar o passo pode ser mais prudente do que a chegada rápida a um certo futuro. Mas quem decide como e quanto atrasar? Quem paga a conta? Questões da boa e velha política.

    90o dia – 29 de março. A manchete da Folha afirma que moradores passam fome nas favelas e começam a sair às ruas. Trump agora refere-se “a gripe” como pandemia e prolonga o isolamento nos EUA. Ele se diz preocupado: “Eu só via essas coisas em países distantes, nunca no nosso”. Enquanto isso, Bolsonaro passeava pelas ruas do Distrito Federal estimulando as pessoas a irem às ruas. Em decisão inédita, as postagens com os vídeos do presidente foram removidos de sua conta pelo Twitter no mesmo dia. Nesse momento, as declarações de Bolsonaro passam a se distanciar um pouco das de Trump, embora o repertório comum seja vasto. Continua a se contrapor à maioria dos prefeitos e governadores do país, bem como ao seu ministro da Saúde, que reforçava as políticas de isolamento.

    91o dia – 30 de março, segunda-feira. O Parlamento Húngaro, sob justificativa de combater o coronavírus, dá poderes quase ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, dentre eles, a possibilidade de censura.

     92o dia – 31 de março. Os ministros da Justiça e Economia se opõem a Bolsonaro e apoiam o ministro da Saúde. O isolamento social é respeitado por 60% das pessoas no Brasil, mostra software. Quinze estados brasileiros usam a tecnologia que mapeia comportamento individual através de sinais de dispositivo de rede sem fio. O site O antagonista resume o novo pronunciamento do presidente da seguinte forma: “Jair Murphy Bolsonaro. Se algo pode dar errado, é porque vai dar errado”. Vice-presidente exalta Ditadura Militar (1964-1985) no dia do aniversário do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Os autores passam o dia envolvidos com a campanha #DitaduraNuncaMais. Mateus continua com febre e tosse. Ainda sem resultado do exame.

    93o dia – 01 de abril. Às 7h45 a Prefeitura de Mariana confirma a primeira morte pelo covid-19 na cidade, um homem de 44 anos, sem comorbidades e com provável contaminação local. Não sem alguma ironia, a Folha noticia que no pronunciamento do dia anterior o presidente teria mudado o tom buscando a conciliação. Dia da mentira? Ele e seu grupo político continuam a guerra de desinformação contra o seu próprio ministério da Saúde. O país já registra 42 mortes. Bolsonaro compartilha vídeo falso a fim de sugerir que o isolamento social pode gerar uma crise de desabastecimento. Depois que a farsa foi denunciada ele pede desculpas, gesto raríssimo que talvez demonstre o quanto se sente isolado. Como muitos estudiosos diziam: a luta é contra a pandemia e a infodemia, ao mesmo tempo. As notícias falsas e o vírus competem para ver quem viraliza mais, isto é, quem sofre mais mutações atualizantes.

    94o dia – 2 de abril. As notícias sobre subnotificação ganham as manchetes. Governo anuncia redução e suspensão de salários durante a pandemia. O jornal El País afirma que o Brasil tem sido preterido por fornecedores para obter material médico contra o coronavírus. Usar ou não usar as máscaras? Eis a questão?

    95o dia – 3 de abril. Os casos globais chegam a 1 milhão. No Brasil, Bolsonaro continua em rota de colisão com o seu ministro da Saúde. Equador entra em colapso sanitário. O país tem a oitava população do continente, mas já registrava o segundo maior número de mortes. Covid-19 acaba com 10 milhões de empregos nos EUA. Profissionais da saúde no Brasil denunciam a precarização das condições de trabalho em tempos de pandemia. O bolsonarismo dissemina diversas narrativas eficazes, em especial, entre a população evangélica. O ministro da Saúde, Mandetta, é o principal alvo das milícias digitais: Quantos são robôs? Quem financia? Qual o papel da leniência de Facebook, Twitter e Google com essas práticas? É divulgada uma pesquisa feita com dados do Twitter do dia 15 de março, quando a #BolsonaroDay subiu, apontando que 55% das postagem nessa hashtag haviam sido feitas por robôs. O Judiciário e o Legislativo assistem a tudo impassíveis: bilontras ou bestializados?

    96o dia –  4 de abril. Todas as chamadas da primeira página da Folha são dedicadas à pandemia, sem exceção. Chega em nosso Zap, enviado por uma amiga do Rio Grande do Norte, um áudio convocando para o jejum e oração do domingo que começava pedindo a “proibição e criminalização do socialismo, comunismo e marxismo cultura dentro do Brasil”. A atriz (?) continuava sua fala – com um sotaque nordestino genérico – pedindo a destruição do Foro de São Paulo, que estaria por trás da grande conspiração para quebrar o Brasil, e explicava: “A China comprou a Itália, com isso, no fim do ano a Itália ficou cheia de jovens chineses que cuspiam e tossiam em tudo para espalhar o vírus”. Continua: “A Itália tem 30% de velhos e é fria, por isso houve aquela matança generalizada. O vírus só gosta de frio, segundo, a cloroquina está sendo muito eficaz na cura da Covid-19, os governos estaduais de esquerda estão usando a quarentena para quebrar o Brasil, com o país parado, com demissões em massa, o povo vai ficar sem dinheiro e com fome, a Europa pode fazer quarentena por ter lastro da moeda em Ouro, a do Brasil não, esse é o plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, estão soltando presos. Tudo isso para levar ao impeachment de Bolsonaro, mas se ele cair, o Mourão não vai poder assumir, porque houve uma PEC37 em 2019 que vetaria, haveria nova eleição e Ciro Gomes – que está sendo financiado pelo governo Chinês, pois o país asiático quer comprar todas a empresas brasileiras a preço de banana. A assim, o Brasil se torna socialista”. Um certo desespero de professor: como se combate esse tipo de narrativa? Podemos descobrir a cura para a pandemia, mas a infodemia será o novo normal?

    97o dia – 5 de abril. Bolsonaro e apoiadores fazem jejum religioso contra o novo coronavírus – e o plano comunista para dominar o Brasil. Olavo de Carvalho, guru do presidente, defende em seu perfil no Facebook a demissão de Mandetta usando um desrespeitoso trocadilho: “Fora, ministro Punhetta”. O ministro seria o “exemplo típico  do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”. O guro do governo ainda afirma que “tudo o que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica”.

    98o dia – 6 de abril, segunda-feira. A imprensa internacional anuncia o agravamento da situação de saúde de Boris Johnson, premier britânico da nova direita global que, inicialmente, fez coro com os que minimizam os efeitos da pandemia. O pensador indígena brasileiro, Ailton Krenak, afirma que “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”. O ministro Mandetta quase cai ao longo do dia. Um amigo envia um e-mail no fim da noite: “Estamos sendo atualizados no papel de transmissores passivos de vírus, sem alma e sem coração”. Em função da pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde adotará na próxima semana a arriscada estratégia do distanciamento social ampliado, isto é, reduzir o isolamento em cidades e estados com 50% da capacidade de saúde vaga. Fato que, segundo o próprio Ministério, aumentará o número de infectados. Finalmente, a OMS divulga um documento sobre o uso das máscaras, que tinham ido do inferno ao céu, durante a pandemia. No mesmo dia, uma reportagem afirmava: “Mortes por coronavírus se concentram em poucas cidades no mundo: Nova York tem 29% dos mortos pela Covid-19 nos EUA e se tornou o epicentro da doença. São Paulo reúne 40% dos óbitos do Brasil”. São Paulo estará a caminho de ser um epicentro global?

    99o dia – 7 de abril. Estimativas apontam para o fato de que a pandemia iria elevar em até 22 mil as pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina. Na África, os casos confirmados passam de 10 mil. A maioria dos 54 países já havia tido um caso. A África do Sul, o país mais atingido, já tinha 1.700 doentes. Brasil tem 114 mortes por coronavírus em 24h, a maior cifra em um dia. O total de mortes chega a 667. O Datafolha divulga pesquisa mostrando que 28% dos brasileiros não fazem isolamento, uma porcentagem parecida com o apoio quase incondicional do presidente: as narrativas do zap estariam funcionando? Ao mesmo tempo, a Folha afirma que o remédio defendido pelo governo pode não ser a salvação esperada por muitos bolsonaristas: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. O Whatsapp limita o envio de mensagens para combater a infodemia: todos se perguntam se o limite vale também para os robôs e empresas de impulsionamento? Morre de covid-19 o pastor norte-americano Landon Spradlin, que ficou famoso por chamar a pandemia de histeria. Nova York tem mais mortes por covid-19 do que no 11 de setembro. Os EUA lideram o número de casos no mundo, sendo que registraram o maior número de mortes por coronavírus em um único dia, com mais de 1.800 mortes. No Twitter, Trump ataca a OMS e a China. O site O antagonista registra que por razões econômicas o presidente da Turquia, “Erdogan, rejeita o isolamento, e o vírus avança na Turquia”. “Erdogan tem resistido aos apelos dos médicos e da oposição para que ordene às pessoas a permanência em casa – ele insiste que ‘as rodas da economia precisam continuar girando’”. No Twitter, Bolsonaro envia votos de recuperação a Boris Johnson. A CEF libera aplicativo para pedidos do apoio de 600 reais aprovado pelo Congresso.

    100o dia – Dia 8 de abril, agora. A cidade que foi o epicentro original, Wuhan, recebe de presente sua “liberdade”. Depois de 11 semanas, 76 dias, o bloqueio da cidade chega ao fim. Há receios, no entanto, de ondas de recontaminação na China. The Guardian: “Cidade chinesa de Wuhan reabre quando Boris Johnson passa a segunda noite em terapia intensiva”. Casos globais atingem 1,4 milhão de pessoas. O teste feito por Mateus ainda não está pronto, mas a recuperação é visível. Valdei segue em isolamento em Padre Viegas, distrito de Mariana, cidade em que as mineradoras não pararam suas atividades. A cada dia ônibus repletos de trabalhadores circulam entre as minas e os bairros e distritos. Quem pode imaginar como serão os próximos 100 dias? O Globo noticia que o pacote de 600 reais de ajuda exclui 21 milhöes de trabalhadores necessitados.

    Deixemos para a próxima coluna, para não nos alongar mais, a pausa reflexiva para pensarmos nas respostas às muitas perguntas que esses 100 dias deixam em aberto. Até breve! Fiquem em casa!