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  • As heranças da tragédia da barragem do Rio Doce

    As heranças da tragédia da barragem do Rio Doce

    Militantes do MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens, da região do Vale do Aço estiveram na tarde do último dia 26 em frente à Justiça Federal de Belo Horizonte para forçar a inclusão dos atingidos na tragédia do Rio Doce, no processo de decisão da situação de Mariana, Barra Longa e região.

    O pedido dos que vieram à BH é participar das articulações que estão sendo fechadas sobre o tema do rompimento da barragem, afinal, elas atingirão diretamente suas vidas. Para Letícia Oliveira, da coordenação estadual do MAB,

    “a preocupação é que Mariana e Barra Longa fiquem com as decisões, e que os detalhes sejam decididos pelas pessoas de lá, e não na Justiça Federal, e sem a participação dos movimentos sociais”.

    Os reflexos do desastre ocorrido no dia 5 de novembro do ano passado ainda podem ser sentidos, e vão de Mariana, passando por Bento Rodrigues, Barra Longa, Gesteira, e outras até sair do estado de Minas Gerais, sentido costa do Espírito Santo. Na cidade de Barra longa, jardins, praças e canteiros foram inteiramente tomados pela lama e o processo de reconstrução da cidade tem sido danoso social, mental e materialmente para os atingidos pela maior catástrofe ambiental dos últimos tempos.

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    Os atingidos lutam por negociação

    Dois ônibus com cerca de 60 pessoas da região vieram à capital para serem ouvidos pelo juiz Cláudio José Costa Coelho, da Justiça Federal. Eles esperam sensibilizar as autoridades sobre a necessidade de rever o documento com as determinações de reconstrução, já que nenhum movimento social ou morador foi ouvido para a construção do mesmo.

    Thiago Alves, também da coordenação estadual do MAB e morador de Barra Longa, repudia o acordo e explica:

    ” nós achamos que esse modelo para resolver o problema é antidemocrático e autoritário, porque afasta as famílias atingidas da bacia do Rio Doce de participar das ações sobre o processo de recuperação, não só o indenizatório, mas a recuperação ambiental, etc.”, explica Thiago.

     

     

     

     

     

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    O sentimento de impotência é grande entre a população. Imagine uma cidade como Barra Longa, de aproximadamente 6 mil habitantes, ter que conviver com a dengue, a superpopulação com a chegada de 600 construtores homens e com um verdadeiro canteiro de obras por toda a cidade? O modo de vida foi alterado drasticamente. A jovem Estefânia Aparecida, de 13 anos, conta que até brincar se tornou mais difícil depois da tragédia:

    “É caminhão, poeira… Não tem nem como sair pra fora de casa. Minha casa começou a trincar por causa dos caminhões pesados na rua, e eles não queriam reformar pra minha mãe. Pra brincar na rua tem que ser a noite, antes a gente ia nadar, fazer piquenique e agora todo lugar que a gente olha é lama.”

    Por volta das 17h, os militantes saíram da entrada da Justiça Federal, dois procuradores foram conversar com o MAB e ajudaram na articulação com o juiz. Thiago ressalta que a movimentação foi importante para animar o povo da região, uma vez que o MAB irá participar do ato que está marcado para o dia 8 de março (dia Internacional da mulher) em BH e fará um ato nesta terça-feira, 1 de março, na cidade de Barra Longa.

    O Movimento dos Atingidos por Barragens segue na luta para garantir que as famílias atingidas sejam ouvidas nesse processo de reconstrução das cidades. A construção da caravana de mulheres da região que irá vir à capital no 8 de março já começou, e nessa terça-feira o MAB irá às ruas da cidade de Barra Longa por visibilidade e sensibilização dos moradores e das autoridades à causa dos atingidos.

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  • A Vale comete crime ambiental, mas quem protesta que é preso

    A Vale comete crime ambiental, mas quem protesta que é preso

    Nesta quarta-feira (25), o MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou uma intervenção na Câmara dos Deputados Federais, em Brasília, em solidariedade às vítimas de Mariana e contra o novo Código da Mineração.

    Após a atividade quatro jovens do Movimento foram detidos e transferidos para a carceragem da polícia civil acusados ~ ironicamente ~ de crime ambiental por realizarem uma cena na qual levaram argila com água para denunciar o crime cometido pela mineradora. A soma das acusações chega a 4 anos de prisão.

    A intervenção teatral consistia em sujar as paredes da Câmara com lama. O espaço foi limpo alguns minutos depois.

    Em nota, o MST repudiou veementemente a prisão e também denunciou a ação violenta da Polícia Legislativa que “somada a outros recentes episódios na casa apenas demonstram a arbitrariedade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acuado com os inúmeros protestos que pedem sua saída da presidência da casa”.

    Na noite do mesmo dia (25), cerca de 200 advogados da Rede Nacional de Advogados Populares fizeram vigília em frente à polícia civil especializada de Brasília exigindo a liberdade dos 4 jovens presos. Os advogados gritavam: “porque a argila no congresso é crime e a lama no Rio doce é acidental?”

    O documento emitido pelo Movimento também indagava“Quatro jovens do MST são presos por sujar paredes da Câmara (…), enquanto diretores da Vale foram responsáveis por mortes, desaparecimento de pessoas, destruição de centenas de lares, contaminação ambiental por lama tóxica, e continuam todos soltos?!”

    Liberdade provisória

    Após dois dias detidos, na tarde desta sexta-feira (27) a juíza Lorena Alves Campos e a promotora Thaienne Fernandes, em Audiência de Conciliação, entenderam que não haviam motivos para que eles continuassem presos.

    Os quatro jovens do MST receberam liberdade provisória e responderão ao processo no Distrito Federal. Eles foram acusados de crime ambiental, lesão corporal, resistência à prisão e injúria. Ao todo, a soma das acusações chega a 4 anos de prisão.

    Em nota o MST agradeceu o apoio das pessoas e movimentos sociais durante o período, e reafirmou seu compromisso em defesa das vítimas da tragédia de Samarco/Vale “O MST seguirá em luta contra a Vale, contra a mineração e contra todos aqueles que querem explorar a natureza e a vida humana. Por isso, reafirmamos a bandeira #ForaCunha como articulador da ofensiva conservadora no país e exigimos a condenação da Vale e da Samarco pelos seus crimes ambientais. Agradecemos a solidariedade da sociedade e dos advogadas e advogados populares da Renap, que lutam por um Estado de Direito verdadeiramente democrático.”

  • O Rio e a Morte

    O Rio e a Morte

    A lama de Mariana que se arrasta agora na água salgada nos mata de sede

    Por Helio Carlos Mello, especial para Jornalistas Livres

    Em dias de margens e leito nas manchetes em que a lama de Mariana abrange a todos, o pensamento se entope na construção de uma saudade de água doce e seus rios. Imagens históricas da geografia e seus relevos, ainda hoje verdadeiros em algumas regiões do Brasil em áreas de celibato entre a natureza e o colonizador, sempre nos fascinam no curso das águas e seus volumes.

    Tudo parece ruir. Para as águas, os povos tradicionais da América reservaram um lugar especial em sua semântica, simbologias de origem. Nossa humanidade o vê, líquido precioso, mais como meio e fim do que uma origem além do que a ciência define. Índios são distintos na significação da água e da terra que percorrem e perfazem, vêem nos elementos fundamento e propósito. Nessa ótica, passo a compreender o caos contemporâneo que se impõe no horizonte, pois para nós mineração, agronegócio e hidrelétricas seguem outros pensares nas leis do mundo.

    Índia Matipu aguarda para receber dose de vacina em seu filho. Foto: Helio Carlos Mello

    Comecei a frequentar comunidades indígenas há 15 anos, e em seus atributos e significados dados às coisas do mundo, descobri uma distinta conduta ao que nos rodeia, nossa terrena leitura econômica da história. Para esses povos, muitas de nossas fontes são seres, e como tais podem reagir, porque são em si uma mecânica na conduta da vida e dinâmica própria do mundo.

    Em maio desse ano, no registro de uma expedição de imunização na terra indígena do Xingu, um amigo me conduziu à revelação de um monumento ao amor, erguido às margens do rio, em território tradicional dos Kalapalo e Matipu. Com a sinceridade de um povo que adora dançar e cantar celebrando, onde guerrear tinha seus fascínios e lógica própria, descubro história sem final feliz e que expõe a perversa relação entre as tramas da mídia, a cultura e o meio ambiente.

    Tomei ciência da inusitada história de amor entre o sertanista Ayres Câmara Cunha e a índia Diacuí, na década de 1950. A história veio a público pela revista O Cruzeiro e adquiriu ares de enredo de novela, entre 1950 e 1953. Chegou em seus capítulos derradeiros a ter Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand como padrinhos do casal na Igreja da Candelária, após muitos trâmites entre os chefes da igreja católica e as instituições indigenistas da época. Bem, o desenrolar dos fatos se encarregaria de evidenciar as contradições do projeto etnocida no qual a índia Diacuí Kalapalo foi envolvida, juntamente com seu povo, como conclui Helouise Costa, docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, “expondo de maneira imprevista a violência extrema que se ocultara sob as boas intenções de seu discurso.”

    A reportagem contava a história de amor:

    “Aqui está um curioso caso de amor à primeira vista, de onde se conclui que a vida na selva, se é rude e áspera, nem sempre endurece o coração humano. Ayres Câmara Cunha, funcionário da Fundação Brasil Central, foi transferido para um pôsto daquela entidade, próximo a uma aldeia da tribo dos Kalapalos. Conheceu ali uma jovem índia, Diacuí, por quem imediatamente se apaixonou. Ayres não falava o kalapalo e Diacuí muito menos o português, mas isso não representou obstáculo para que os dois se entendessem. Os olhos da indiazinha dispensavam as palavras: deles escorria uma ternura mansa, levando ao coração do homem branco a certeza de que era correspondido no seu amor. E Aires não hesitou: pediu Diacuí em casamento. Os maiorais da tribo, não duvidando dos sentimentos dêle, concordaram com a união dos namorados. Mas eis que uma nuvem veio toldar a felicidade dos dois jovens, sob a forma de um artigo dos estatutos do Serviço de Proteção aos Índios, que proíbe a ligação entre civilizados e selvagens. Chamado ao Rio para prestar esclarecimentos, Aires nada negou, deixando falar bem alto o seu coração. E através da imprensa lançou um dramático apelo às autoridades, no sentido de instituírem uma cláusula no regulamento do S.P.I., permitindo o casamento de brancos com índios. Na foto, Ayres ao lado de Diacuí, num flagrante que lhe aviva as saudades da mulher amada. A índia continua a esperá-lo na selva, sem saber que os separam, com mais fôrça do que as léguas de mata, as leis feitas pelos homens.”

    Acima: A famosa atriz Fada Santora penteando Diacuí, na Gávea-RJ | Dir: Assis, Diacuí, Ayers e Jacuí | Acervo Expedição Xingu 2015

    Diacuí foi vítima da relação desigual que se estabeleceu entre o colonizador branco e a mídia. Com Mariana não seria diferente.

    Somos um país de rios que choram. Neste momento em que o Rio Doce se expõe violentado por nossa humanidade, em que índios Krenak choram limpo nas águas vermelhas de Minas ao Espírito Santo, lembrei-me dessa história do amor consumado e a imagem do rio Culuene, que vai em curva engolindo lentamente, no movimento natural de seu leito, o túmulo de Diacuí.

    Importante aqui citar a educadora Marisa Vorraber Costa, da UFRGS:

    “As sociedades e culturas em que vivemos são dirigidas por poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos. A linguagem, as narrativas, os textos, os discursos não apenas descrevem ou falam sobre coisas, ao fazer isso eles instituem as coisas, inventado sua identidade. O que temos denominado ‘realidade’ é o resultado desse processo no qual a linguagem tem um papel constitutivo. Isto não quer dizer que não existe mundo fora da linguagem, mas sim, que o acesso a este mundo se dá pela significação que é mediada pela linguagem.”

    A lama de Mariana que se arrasta agora na água salgada nos mata de sede. O Doce e o Xingu são as faces da moeda.

    Acima: Margem do rio Culuene, Alto Xingu, onde se localiza o túmulo de Diacuí. | Abaixo: Túmulo de Diacuí envolvido pela mata ciliar. Fotos: Helio Carlos Mello

    Assista também:

     
  • A barragem que rompeu histórias

    A barragem que rompeu histórias

    “Era 11h35, eu cheguei na varanda e disse: meu Deus eu to sonhando. Dava pra ouvir as pessoas gritar. Eu pensei que ia morrer. Passei a noite toda acordada vigiando!”, são as palavras de Dona Maria, conhecida como Zoca, na comunidade de Gesteira, um dos distritos atingidos pelo rompimento das barragem de Fundão e Santarém, da Mineradora Samarco.

    Zoca, 73 anos, foi precisa no horário porque foi neste exato momento, no dia 5 de novembro, que sua história foi rompida por um mar de lama que levou embora tudo o que conquistou na vida junto com seu marido, Zé Carlos, 77 anos. Ele busca esperança na expectativa de que a empresa irá restituir tudo o que ele perdeu, e lamenta: “perdi tudo o que tinha. Nem sei o que vai ser. Nossa maior renda era isso, tão cedo eu não posso mexer nesse trem. Minha pá, enxada, tudo o que eu tinha para trabalhar estava no rancho”, diz, apontando para a fazenda soterrada.

    O povoado de Gesteira fica a cerca de 60 km das barragens que se romperam, e não foi avisado, segundo os moradores, pela Samarco, sobre o ocorrido. Se não fora os familiares que moram em Mariana (MG) ligar e, a partir daí, a notícia se espalhar, a chance de todos morrerem seria enorme.

    Os moradores da região, inclusive os das fazendas que seguem o Rio Gualacho, que corta as comunidades, e antecedem Gesteira, afirmam que somente os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu foram informados pela empresa a respeito do rompimento. Mesmo assim, o contato não foi suficiente, muitas pessoas dessas duas regiões afirmam não terem recebido nenhum aviso, segundo o jornal El País.

    O caminho para as comunidades isoladas

    Para chegar às comunidades de Gesteira, Cidreira e Mandioca, acompanhei, durante dois dias, os Bombeiros Civis de Minas Gerais e os jipeiros e socorristas voluntários da Cruz Vermelha, que, inclusive, não mediram esforços para ajudar às vitimas da tragédia.

    O único acesso à Mandioca e a Cidreira era a pé pelas montanhas e pastos que cercam a região, ou aéreo, no caso, para resgates e entrega de água e alimentos. Foram aproximadamente 12 horas de caminhada para chegar às famílias e listar suas necessidades emergenciais.

    Famílias de Cidreira e Mandioca

    Dirceu da Luz, 72 anos, perdeu tudo. O que restou foi a roupa do corpo e angústia de ver uma vida inteira arruinada em instantes. Tudo foi adquirido ao lado da esposa, Geralda da Luz, 67 anos. E ao lado dela viu tudo se arrastar. “Tinha umas coisinhas de pobre, mas era nossa, né! Pra nós que é da roça as coisas são mais difíceis. A gente pensa em recuperar de novo as coisas que a gente perdeu, mas não sei como. Nossa idade não permite trabalhar mais, a gente não aguenta!”, conta Geralda.

    O casal, que mora em Mandioca, terminou de pagar a última prestação do guarda roupa, com o dinheiro da aposentadoria, no início desse mês. O fogão novo que compraram não existe mais, foi arrastado na mesma semana que pagaram a primeira parcela, conta Mônica, filha do casal. Minha mãe comprou o fogão dos sonhos, tadinha! Tinha divido em 10 vezes, foi embora!”.

    Dirceu venceu um câncer no intestino há 4 anos e, segundo a esposa, o tratamento lhe rendeu a perda da visão de um dos olhos, e frisa: “o colírio é muito caro!”. Já velho, seu corpo o trai. “Quando ele cisma trabalhar, ele sofre muito com dor”, conta a companheira. Enquanto isso, “resta esperar”.

    Adão e Francisca Gonçalves são casados e moram em Cidreira. Assim como o vizinho Dirceu, perderam tudo. Da casa, sobraram apenas alguns detalhes que a lama não cobriu.

    Pelo quintal, animais mortos já causam mau cheiro. Entre eles, o fusca azul da família que foi arrastado com a força do barro. “Nosso carrinho era tudo pra nós. Temos um filho doente, ele tá em Mariana, e o carro a gente usava toda semana pra levá-lo ao ponto e buscar”, lamenta, Adão. Das suas convicções após a tragédia, uma delas ele insiste em dizer: “o próprio homem que fez isso com nós, por causa da ganância por dinheiro!”.

    Maria da Penha de Castro, 55 anos, mora no Sítio do Moinho, o lugar fica às margens do Rio Gualacho. Ela ficou sabendo do que estava por vir por familiares e amigos, às 15h. “Como pediram pra não ficarmos em casa, ficamos lá no meio do pasto. Ouvíamos a zueira há horas”, conta, se lembrando de que já se tinha dimensão do que viria antes mesmo de chegar. Abaixo, o depoimento de sua filha, Angélica Souza:

    Zilmar Marcelo Cota e Vitor José Cota moram em Cidreira, são irmãos e produtores rurais. Zilmar perdeu tudo que tinha. Vitor, as pastagens e plantações e, devido à falta de luz e acesso fácil a sua fazenda, tem sido obrigado a jogar, diariamente, 200 litros de leite fora.

    Outros depoimentos podem ser assistidos aqui.

    Dei lugar aos vídeos neste post porque entendo que eu jamais conseguiria expressar a dor e a realidade de cada um dos entrevistados. Entre as vítimas, o que se guarda, acima de tudo, é o agradecimento pela vida, mas isso deixo para um deles dizer. Com a palavra, Antônio Marcos:

    *Parabéns ao Bombeiro Civil Francisco dos Anjos e ao voluntário Marcelo Souza pelo trabalho exemplar, e muito obrigado pelas horas de caminhada. Aos jipeiros Sucasas e Márcia, obrigado pela disposição e cuidado.*

  • Entre o luto e a saudade: um panorama do maior desastre ambiental do Brasil

    Entre o luto e a saudade: um panorama do maior desastre ambiental do Brasil

    Entenda as consequências da enxurrada de lama de rejeito da mineração

    Quem chega em Gesteira, distrito rural no município de Barra Longa, MG, nunca vai imaginar que antes passava um córrego com água cristalina e havia um campo verde amplo na frente, onde bois e cavalos pastavam. Porque quem chegar hoje em Gesteira não verá um pasto, nem um animal ou um riacho. Verá apenas uma gigantesca lagoa de barro escuro onde antes era um vale. Os moradores descrevem para mim, entre o luto e a saudade, a paisagem onde cresceram e que, provavelmente, nunca mais verão na vida.

    “Antes esta paisagem daqui era tudo verdinho com uma pastagem e tinha um rio com água clarinha. Acabou tudo.” — diz Claudiano da Costa, morador de Gesteira.


    Mais de dez dias após a queda das barragens da mineradora Samarco, ainda se desconhece todas as extensões do impacto ecológico liberado na forma de 62 milhões de litros de lama residual da mineração. O barro de rejeitos saiu de Bento Rodrigues, na cidade histórica de Mariana, em Minas, e ainda percorrerá mais de 850 km até chegar ao mar, deixando um rastro de destruição à fauna, à flora e às comunidades que estiverem em seu caminho. Só é preciso observar a área destruída — seja do leito do rio, seja do espaço — para compreender que é um dos maiores desastres ambientais na história do Brasil.

    No entanto, ainda há muitas perguntas buscando entender como esta tsunami de lama afetou todo um ecossistema. Aqui está um panorama do que já sabemos.

    Lama Tóxica?

    Para ter compreensão do impacto é preciso primeiro entender qual é o conteúdo da enxurrada de lama que vêm das minas. Segundo a mineradora Samarco, as barragens apenas continham rejeitos de minério de ferro e manganês, misturados basicamente com água e areia. A empresa insiste que o material é inerte, não causando danos ao ambiente ou à saúde. No entanto, análises do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Baixo Guandu, ES, mostram a presença de diversos metais pesados na água do Rio Doce, como arsênio, mercúrio e chumbo.

    Foto: Douglas Resende e Rafael Lage

    Estes elementos são extremamente tóxicos ao ambiente e à saúde humana, sendo absorvidos nos corpos dos diferentes organismos e dificilmente eliminados. Normalmente, eles acumulam nos tecidos de seres vivos e, com o tempo, na própria cadeia alimentar. Ao ingerir a carne ou folhas contaminadas, o metal pesado não é processado, envenenando o bicho ou pessoa que consumiu a comida intoxicada. Com o tempo, os metais pesados podem gerar problemas sérios à saúde, como câncer, úlceras e danos neurológicos.

    Na tarde de sábado, 14/11, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, apresentou um laudo da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) negando a existência de metais pesados na água e contrariando os laudos de Baixo Guandu. Nesta quinta-feira, 12/11, uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também foi coletar amostras da lama e da água no Rio Doce para apurar o grau da devastação e verificar, entre outros aspectos, a presença de metais pesados. Ainda resta esperar os resultados da investigação dos cientistas mineiros, que devem chegar no decorrer da semana.

    O Fim da Vegetação

    No entanto, mesmo sem arsênio e mercúrio e ao contrário do que a mineradora sugere, a lama está longe de ser inofensiva. Apesar da presença do ferro e manganês não significar um perigo à saúde, estes elementos causam consequências profundas à terra.

    Foto: Augusto Augusto Gomes/ Andirá Imagens

    “O ferro (e o manganês) tem uma facilidade muito grande de reação, sendo um ligante por sua própria natureza. No caso, essa lama vai formar uma capa muito dura devido à presença do ferro. A tendência é fazer uma ligação muito forte e ficar sobre a superfície formando uma crosta” — diz a professora do Instituto de Geociências da UFMG e especialista em geologia ambiental, Leila Menegasse. Segundo ela, esta cobertura poderá impedir a infiltração da água e também cobrirá a própria vegetação, tornando o ambiente estéril.

    As raízes ficam soterradas, desaparece a possibilidade da fotossíntese porque a água fica muito turva e as folhas ficam todas fechadas pela deposição de materiais. As plantas que entrarem em contato com essa lama certamente irão morrer” acrescenta o professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, Francisco Barbosa.

    Rio Doce Morto

    Quem se aproximar do Rio Doce, seja em Minas seja no Espírito Santo, verá ele amarronzado, escuro e com diversos detritos boiando. Essa imagem não é apenas feia e desagradável, ela também é extremamente danosa à vida aquática. Esse barro, mesmo diluído, torna á água turva e barra a passagem de raios solares, escurecendo o rio e impedindo que algas façam fotossíntese. O baixo nível de oxigênio na água é insustentável para os animais, fazendo com que, em um ato de desespero, muitos peixes simplesmente pulem fora d’água.

    Se em cima cadáveres boiam, embaixo o rio encolhe. “Toda essa área que recebeu uma carga de segmentos irá sofrer um processo de deposição de material no fundo do rio. Isto vai aumentar a altura da calha e, a grosso modo, vai entupir o rio” explica o coordenador do Centro de Pesquisas Hidráulicas, Carlos Barreira Martinez. O processo é intensificado pela destruição da mata auxiliar, ainda existindo a possibilidade de a lama cobrir as nascentes, diminuindo consideravelmente o volume da água. Este perda não significa apenas menos água, mas compromete sua qualidade e a torna imprópria para o uso.

    Foto: Agência Brasil

    Os mananciais oriundos do Rio Doce são usados para abastecer diversas comunidades rurais, seja para o uso pessoal, seja para irrigação de plantações ou consumo pelo gado. Essas comunidades rurais serão profundamente afetadas e não poderão recorrer ao rio mais. Mesmo considerando apenas a população urbana, a enxurrada de lama passa por, no mínimo, 23 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo, o que representa meio milhão de pessoas com a torneira seca.

    Milhares de pessoas sem água

    A cidade mais afetada pelos rejeitos da Samarco é também a maior da bacia do Rio Doce: Governador Valadares, MG, com 280 mil habitantes. Mesmo a 300 km de Mariana, sua SAAE, em laudo preliminar da água, encontrou um nível de turbidez oitenta vezes maior do que o tolerável, além de níveis de ferro que chegaram a superar treze mil vezes o tratável. Esta condição insalubre do rio fez com que o abastecimento de água fosse cortado no domingo, 08/11. Dois dias após a interrupção, a prefeita Elisa Costa declarou estado de calamidade pública.

    Foto: Leonardo Merçon — Photography / INSTITUTO ÚLTIMOS REFÚGIOS

    “Todo o dia esse caos. Todo dia gente transportando água. Todo mundo carregando água como pode”

    descreve de Marcos Renato, habitante da cidade. Em longas filas, a população gasta horas em pontos de distribuição de água, sofrendo, além da seca e da sede, das altas temperaturas. “Estamos atendendo normalmente nas unidades de saúde e nos preparando para possíveis doenças que venham a surgir pela falta de água e pelo uso da água contaminada. Enfim, a situação aqui não está nada fácil” comenta Flávia França, médica local e membro da Rede de Médicas e Médicos Populares.

    Segundo a prefeitura do município, as companhias Samarco e Vale fizeram pouco ou mal esforços para ajudar a população. Na sexta-feira, 13/11, em nota ela comunicou que a mineradora só tinha aceitado pagar os caminhões pipa. Mais tarde do dia, a primeira remessa de água, com 280 mil litros, estava contaminada com querosene, não servindo para consumo. A situação só começou a melhorar no sábado, quando o governador de Minas, Fernando Pimentel, anunciou o uso de um coagulante que permitirá o tratamento da água. A substância facilita a separação da lama e da água, permitindo assim que ela seja filtrada e volte a ser potável. A expectativa é que o abastecimento na cidade retorne nesta segunda-feira, dia 16/11.

    Foto: Leonardo Merçon — Photography / INSTITUTO ÚLTIMOS REFÚGIOS

    Um Oceano Inteiro Afetado

    É importante lembrar que o rio não é só água em movimento, mas também funciona como transporte de nutrientes para o mar, que acabam sustentando diversos organismos. Coincidentemente, na foz do Rio Doce, ocorre também o encontro de correntes marinhas do Sul e do Norte, formando um “rodamoinho” de água de cerca de setenta quilômetros de diâmetro. Esta área é rica em nutrientes e também reúne espécies marinhas de todo o mundo. Por isso, segundo o diretor da Estação de Biologia Marinha Augusto Ruschi, o biólogo e ecólogo André Ruschi, a foz do Rio Doce se torna uma dos maiores pontos de desova de peixes marinhos do mundo.

    É o maior criadouro do Oceano Atlântico. Todos os grandes peixes do Oceano, do hemisfério sul e norte, vêm para lá se reproduzir, sendo um fenômeno impar. É uma das regiões marinhas mais importantes do planeta e, da costa brasileira, é a mais sensível de todas”. A chegada de diversos rejeitos da mineração significa um risco para todo o ecossistema do oceano. Como ainda resta a chance da presença de metais pesados na lama, há a possibilidade de contaminação da imensa biodiversidade do local. Todos os seres vivos, desde o minúsculo plâncton ao gigante marlim, podem acabar envenenados por estes elementos.

    Recuperação?

    Restam ainda muitas dúvidas em relação a como e quanto o ambiente será afetado pela lama da Samarco. Mas uma merece destaque: é possível recuperar o estrago? Ainda é muito cedo para afirmar com certeza, porém se estipula que o volume de água do rio talvez será o primeiro a normalizar.

    “A natureza é muito mais forte do que podemos imaginar. Com o passar do tempo e muito lentamente os rios vão se recuperando. A vida dos tributários vai voltar a ocupar o rio e ele, em uma ou duas décadas, vai se recuperar. O que é muito tempo.” afirma o coordenador do Centro de Pesquisas Hidráulicas, Carlos Barreira Martinez. No entanto, para que isto ocorra é necessário que a lama se dilua e escorra para outras áreas, o que só é possível com a ação da chuva. A estiagem que a região sudeste enfrenta é um agravador deste cenário, atrasando muito uma possível revitalização do Rio Doce.

    Obviamente, a biodiversidade animal e vegetal da região não pode esperar décadas para ver o rio novamente. “O conjunto de seres vivos vai estar todo ameaçado e vários desses organismos vão desaparecer, ainda que, vamos esperar, seja localmente. Eventualmente alguns desses organismos podem ter a chance de voltarem a colonizar essas áreas. Para que isso aconteça, vai precisar de tempo. No entanto, outros organismos não vão ter a chance de colonizar porque requer um tempo muito mais longo para que as cadeias alimentares se restabeleçam”explica o professor do ICB da UFMG, Francisco Barbosa. Ele estima que o começo dessa recuperação só irá acontecer em um futuro distante, precisando de 20 a 30 anos para a maioria dos diversos processos se sucederem.

    Mas, se este prazo já é muito grande no continente, no oceano, ele é ainda maior. O especialista em biologia e ecologia marinha, André Ruschi lembra que a chegada de nutrientes ao oceano depende dos ciclos da maré, definidos pelos movimentos dos astros, como a lua e o sol: “A cada onze anos, com as enchentes, as cheias carregam grandes quantidades do material do rio para o mar”.

    Como a região também é onde ocorre a confluência de espécies e correntes de todo o Oceano Atlântico, sendo uma das áreas de maior biodiversidade no mundo, o impacto, segundo o cientista, representará um atraso de séculos ao ecossistema.

    Foto: Douglas Resende e Rafael Lage
  • Os retratos de Mariana

    Os retratos de Mariana

    O fotógrafo Bruno Bou explica sua estética a partir dos encontros e a potencialidade na construção dessa linguagem.

    “a partir dessa linguagem descobriremos o curto caminho entre realidade e a ficção, no qual aquele desejo de superar essa realidade é exatamente possível quando para além de dedicar nossas vidas exclusivamente à arte, dedicamos a arte à vida..”

    O jornalismo me parece interessante quando, mais preocupado que transcrever a realidade, busque digeri-la. Pela mídia não haveria mais razão para se viver e sabemos que políticas são todas as atividades do ser humano. As escolhas e a fotografia são, portanto, necessariamente políticas.

    No sentido de superar essa realidade, o preto e branco caminha eliminando a saturação de cor e nos atentando aos atos ou, se preferir, àquelas escolhas. Mais que defender o p&b no campo fotográfico, devemos proteger as pessoas, sobretudo em uma tragédia. Negligenciar os fotografados me colocaria em pé de igualdade com quem busca esquivar-se da culpa nessa tragédia. Por isso, mais importante que tratar a foto é concebe-la — respeitando e aceitando suas condições com os fotografados e as deles.

    Se pensarmos o modo de captação das imagens, perceberemos que os personagens por estarem próximos, aceitam os retratos. Isso nos aproxima da naturalidade e ao desejo de uma foto enunciativa sobre o cotidiano que busca mesmo no caos a beleza. Esta ai toda a potencialidade da esperança e de seguir em frente forjando uma nova realidade. O momento pode ressignificar uma situação e convencer a todos que o que se tem vale a pena.

    Se irmos mais adiante nessa análise, percebemos que além dos cidadãos serem peça central da narrativa, o ambiente que lhes cerca não foi esquecido. O corte das fotos valoriza os objetos no centro em uma linha horizontal. Esse formato não é 2×3, padrão das câmeras, mas sim 16×9, que diminui a altura valorizando a largura, o que faz trabalhar com mais atenção a composição da foto sem deixar de ambientar o espectador.

    Contextualizar é tudo quando se deseja que caminhem com suas próprias pernas. Admitir sua narrativa como parcial é não subestimar quem a recebe, respeitando sua capacidade. Pois na vida há regras e na fotografia nem tanto, mas sem a liberdade se tem a eterna subserviência. Como diria Sérgio Vaz, “A arte que liberta não pode estar na mão de quem escraviza”.

    Certo que o trabalho aqui apresentado não ressarce as famílias atingidas pelas barragens, mas a direção da caminhada é mais importante do que o tamanho do passo. E quando nos apropriamos da fotografia para nos auxiliar em uma abordagem, nos permitimos conhecer um novo mundo — nesse caso extremamente triste — e a partir dessa linguagem descobriremos o curto caminho entre realidade e a ficção, no qual aquele desejo de superar essa realidade é exatamente possível quando para além de dedicar nossas vidas exclusivamente à arte, dedicamos a arte à vida, como disse um tal Augusto Boal. E esse é um exercício diário.

    Veja mais desta série em: http://www.bouhaya.com/um-n0me-mariana/