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  • Plano Municipal de Educação de São Paulo: os bastidores de uma derrota anunciada

    Plano Municipal de Educação de São Paulo: os bastidores de uma derrota anunciada

     

    Com apenas 2 votos a favor de manter as expressões de gênero, diversidade e orientação sexual no Plano Municipal de Educação de São Paulo, os vereadores da capital paulista protagonizam um grande retrocesso no acesso a direitos humanos, pautados pelas demandas de uma igreja católica retrógrada e atrasada

    Com fotos de Ennio Brauns

    Na contra-mão da história, São Paulo — a quarta maior cidade do mundo e a maior da América do Sul — perde a oportunidade de construir uma democracia em que todas as pessoas são contempladas independente de etnia, credo, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Ao mesmo tempo, em São Francisco, Califórnia (EUA), o curso “História do movimento LGBT” é instituído no ensino médio das escolas públicas.

    Perdemos feio. Ou melhor, a democracia e a luta pelos direitos humanos no Brasil sofreram uma derrota fragorosa: 2 votos contra e 42 a favor do texto final do PME-SP (Plano Municipal de Educação de São Paulo), que retirou expressões como “gênero”, “orientação sexual” e “diversidade” de seu escopo. Mas essas questões permanecem no ambiente escolar junto a uma grande parcela da população com grandes dificuldades de frequentar as salas de aula. Porque é na escola que o preconceito, a discriminação e a violência misógina e homotransfóbica é reproduzida e disseminada.

    Os 11 ônibus que chegaram na frente da Câmara paulista logo nas primeiras horas da manhã, traziam um pequena multidão. Munidos de um trio elétrico, fiéis e padres se revezavam em canções e discursos em “defesa da família”(hetero, cisgênera e católica). De fora a fora do carro alegórico, um cartaz imenso com a bandeira brasileira exprimia também uma posição política: a igreja católica, que apoiou o golpe militar de 1964, retoma sua posição no conturbado cenário de instabilidade política e econômica ao lado daqueles que querem golpear a ordem democrática para propor o deposição da presidenta eleita pela maioria do povo brasileiro. Aos poucos um cenário nefasto vai sendo montado onde uma questão dialoga com a outra: ao mesmo tempo em que os discursos clamam pela defesa da família, fiéis são convocados a comparecer na manifestação do dia 16/8, do movimento de oposição “Vem pra rua”, que pede o impeachment.

    A igreja católica, agora assumindo integralmente a direção da “guerra santa”, em parceria com políticos conservadores, aparelhou a Câmara Municipal, criou um palanque em frente ao órgão público que deveria representar e contemplar tod@s @s cidad@os para proclamar que tem poder sobre as decisões de um Estado que se diz laico mas se dobra ao “poder divino”. Não é à toa que um grande crucifixo repousa firme e sólido sobre as cabeças dos políticos no plenário.

    Dom Odilo, o grande maestro dessa sórdida sinfonia teocrática neofascista, ligou para o presidente da Câmara e marcou audiência com os relatores para impedir que a “ideologia de gênero” fosse implantada nas escolas. Essa, sim, é uma elaboração ideológica de má-fé para manipular fieis desinformados que repetem frases desconexas sobre um tema que não compreendem e nem vão compreender. Lotaram a entrada com camisetas brancas mas não era paz que queriam, não era o amor que seu mestre Jesus Cristo ensinou o que levava aquela gente a se juntar. Foram armados com discursos de ódio, praguejando e cuspindo frases como: “Você vai queimar no inferno!”. No caminhão conseguido às pressas para as pessoas que defendiam os direitos humanos, algumas lideranças lgbts, feministas e ativistas em geral se revezavam para pelo menos neutralizar a violência do ataque fundamentalista. Travaram uma verdadeira batalha com ofensas aos gritos dentro e fora da Câmara. Lotaram o plenarinho e a parte que lhe cabia da galeria.

    O final daquela história a gente já conhecia. Sabíamos que íamos perder. Mas não daquela forma vergonhosa. Não para nós, população vulnerável. O que aconteceu é uma vergonha para o Brasil. Políticos, como sempre, cederam não só à pressão moralista conservadora da igreja, mas também às propostas que contemplam seus umbigos e partidos… Lamentável. Os tradicionais partidos de direita foram coerentes com seu histórico de desrespeito aos direitos humanos, mas o que causou revolta e muitos posts nas redes sociais foi a decisão do PT, que mais uma vez deixou de contemplar uma de suas maiores bandeiras com medo de se envolver em pautas que trouxessem mais desgaste político. Ficou em cima do muro até o último instante, quando capitulou, e por unanimidade disse SIM ao texto racista, misógino e homotransfóbico do PME-SP. Justificou sua adesão ao texto final como um recuou para não perder as conquistas mais amplas como qualidade da educação, relação professor x aluno, e mais creches… Ventila-se nos bastidores que houve uma negociação entre a prefeitura e Dom Odilo sobre as creches conveniadas de propriedade da igreja católica. Se são boatos ou não, saberemos na sequência. Disseram também que é possível avançar e reconquistar o que foi perdido mudando a linguagem nas emendas que forem apresentadas na próxima eleição do dia 25 . Papo para boi dormir. Já era! Se perdemos agora, perderemos depois… É fato!

    Depois que PT chegou no “fechamento de questão”, a vereadora petista Juliana Cardoso, única guerreira a assumir integralmente as atividades em defesa das populações vulneráveis, criando o ato do dia 5/8, que lotou a platéia do Salão Nobre da Câmara de ativistas e representantes de entidades de direitos humanos e comunidade científica, teve que ceder e votar contra suas convicções por ser líder da bancada dos vereadores do PT. De outra forma, seu voto seria caracterizado como quebra de fidelidade partidária.

    O PT foi criado sobre duas grandes correntes: sindicalistas da CUT e militantes de esquerda católicos das CEBs, adeptos da teologia da libertação. Essa formação católica do partido é evidente até hoje. Todos os vereadores petistas são católicos praticantes e se elegeram majoritariamente com votos da comunidade católica. Quatro deles são ligados à comunidade católica da Zona Sul, a mais conservadora, que tem tomado a frente na “guerra santa”. Não é de se espantar a unanimidade do voto a favor.

    Eu me pergunto quantas mulheres precisarão ser agredidas e estupradas? Quantos gays, lésbicas e bissexuais precisarão ser acuados com chacotas cotidianas? Quantas travestis, mulheres transexuais e homens trans precisarão ser expulsos das escolas para que os representantes eleitos pelo povo reflitam sobre a necessidade fundamental de se transmitir noções de direitos humanos voltados para a igualdade e identidade de gênero, e respeito à orientação sexual de cada criança? Quantas vidas valem a viabilidade política e econômica de projetos políticos?

    Até a Rede Globo, que sempre defendeu valores tradicionais, colocou duas lésbicas com um filho formando uma família homoafetiva numa novela de horário nobre. Já está em fase de pesquisa a nova novela que tratará do tema da transexualidade, bem agora, com esse levante conservador da igreja atacando as garantias de acesso à cidadania da população lgbt .

    A realidade é que os partidos de esquerda não mobilizaram suas bases, principalmente os setoriais lgbts, não fizeram nenhum chamamento para levar militantes pra fazer frente aquela invasão católica da Câmara Municipal. Bastava 0,001% da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. É muito estranho ver que a esquerda ainda não abraçou a causa lgbt, por razões históricas. Nos anos 80, o nascente ativismo homossexual e o feminismo foram acusados de dividir a luta maior dos trabalhadores, de serem frutos de resquícios burgueses, que não levavam em consideração os efeitos da opressão dos patrões sobre os trabalhadores… Houve até lideranças da esquerda que fizeram declarações do tipo: “o trabalhador bate na mulher porque é oprimido pelos patrões.”

     

     

  • Parada LGBT BH 2015: um local de (R)existência e identidade

    Parada LGBT BH 2015: um local de (R)existência e identidade

     

    Parada LGBT BH 2015: um local de (R)existência “As pessoas sabem que a gente existe, mas elas querem jogar a gente de lado” — diz Anyky Lima, presidente da Cellos MG e representante estadual da ANTRA

    A capital mineira entardeceu com a imensidão das cores da diversidade invadindo a Praça da Estação e as ruas neste domingo, 19 de julho. Mais de 50 mil pessoas saíram de suas casas para desfilar contra o preconceito e a invisibilidade que sofrem os movimentos que integram a sigla LGBT.

    Pedro Gontijo / Jornalistas Livres

    A mobilização daqueles que a sociedade nega e põe à margem deve ser diária. Anyky Lima, presidente do Cellos MG e representante mineira da ANTRA (Associação Nacional das Travestis e Transexuais), ressalta o poder desta data como o símbolo da batalha diária de ser LGBT: “Nós usamos este dia para reivindicar direitos e para mostrar que a gente existe e que a travesti é um ser humano. A Parada pra mim é um dia de luta, como outro qualquer, que a gente luta o ano inteiro e a vida inteira, mas além de ser um dia de luta é um dia de felicidade, que a gente vai pra rua mostrar que a gente existe.”

    Mostrar-se ao olhar do outro que interpela e questiona a existência LGBT e seu direito de pertencer à sociedade, para Anyky, é o desafio: “A travesti e a transexual tem que ocupar todos os espaços. Eu tô aqui representando mas eu quero que outras meninas apareçam e ocupem este espaço. É uma coisa que você tem que conquistar, ninguém vai te dar de mão beijada”.

    Nicole Marinho / Jornalistas Livres

    Esbanjando sempre um sorriso, Anyky ressalta que “já tiveram muitas coisas boas por aqui, casamentos, avanços na área da saúde, tudo aqui é um recomeço e a gente vai lutando para conquistar mais avanços a cada dia”. Mas também questiona os avanços e retrocessos dos últimos tempos: “o nome social não é uma lei, é uma portaria, então pra mim ele não tem muito valor, tem lugares que as pessoas não respeitam”.

    A Parada LGBT de Belo Horizonte contou com apresentações artísticas e falas dos principais movimentos envolvidos e autoridades apoiadoras da causa. Nilmário Miranda, Secretário de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania de Minas Gerais, também manifestou seu repúdio ao preconceito. “Eu participo das Paradas há mais de 20 anos, o movimento foi crescendo, virou uma multidão e um movimento social. Mais de 30 cidades fazem paradas hoje em dia, e houveram conquistas muito boas no judiciário, na sociedade e na mídia para romper esta discriminação. Acho que o nosso objetivo é acabar com toda forma de preconceito, que faz muito mal a uma sociedade.”

    Pedro Gontijo / Jornalistas Livres

    Pós-abertura, três trios elétricos se alinharam para fazer o percurso que trouxe o grito e também toda a alegria e energia dos movimentos LGBT às ruas da cidade. A Parada seguiu pela Rua da Bahia até a Av. Afonso Pena rumando sentido à Av. Professor Moraes.

    Ao lado dos trios, as reivindicações eram semelhantes. Aléxia Star, drag queen há 2 anos, indica para a sociedade: “vamos nos conscientizar, vamos nos tratar com respeito que é o que estamos precisando para um mundo melhor e com paz”. A transformista Eli Moon compartilha da mesma ideia, retomando o intuito da data: “hoje em dia a Parada do orgulho LGBT tem perdido muito foco, na verdade a gente não pode perder o intuito, a Parada existe para que a gente peça respeito”.

    Pedro Gontijo / Jornalistas Livres

    O tão pedido respeito vem aos poucos, mas o avanço da aceitação fica nítido quando se nota a presença, ainda que sutil, dos ativistas do Movimento em Cores, Doutra Forma e Redenção Pedro II, ligados a igrejas que veem as pessoas LGBT com amor. “A gente queria quebrar o preconceito que a igreja tem com todo este movimento, porque somos cristãos e Jesus não tem preconceito, então quem é de Jesus também não tem. Quem julga as pessoas, não tem tempo para amá-las”, explica Esther Roth, representante do grupo cristão que levou diversas bandeiras à Parada.

    Pedro Gontijo / Jornalistas Livres

    Em união à fala de Esther, a drag queen Aléxia também enxerga esperança para o conflito entre algumas religiões e o movimento LGBT. “Na verdade isso é um movimento, as pessoas estão vindo aqui para criar um mundo sem preconceito”. O contraponto é feito pela Presidente da Associação das Prostitutas de Minas Gerais, Cida Vieira: “essa marcha é uma marcha muito importante e nos permite falar sobre a “Putafobia”, que existe no mundo inteiro e não é vista”.

    Nicole Marinho / Jornalistas Livres

    A prostituição é pauta fundamental à Parada, e segundo Cida, a discussão ainda não acontece como deveria. “Nós invadimos as paradas , porque quando você fala em LGBT existem as profissionais do sexo, gays, lésbicas, trans. Nós, profissionais do sexo, muitas vezes somos bissexuais também”. Quando questionada, Cida diz que sua presença na Parada tem uma razão gritante: “Contra a violência dos profissionais do sexo, tendo em vista vários assassinatos sem estatística. A profissional existe e somos assim reais”. Crítica, Cida pede por mais direitos e visibilidade: “hoje a gente está discutindo também com o LGBT e passando o Luiz XV nesta sociedade que nos usa e não nos assume”.

    Ao fim da Parada, os paetês parecem seguir de volta pra caixa, o fazem e eles continuam a reluzir, porém, distantes. Ainda brilhando em resistência, eles deixam claro que não se pode ofuscar aqueles que nasceram pra brilhar.

    Pedro Gontijo / Jornalistas Livres 

     

  • Marcha contra despejo de 8 mil famílias chega à Prefeitura de Belo Horizonte

     

    Mandado de reintegração de posse foi assinado no dia 19 de junho pelo governador de Minas Gerais; irregularidades no processo barram o despejo dos moradores

    Foram mais de 30 quilômetros percorridos em 8 horas. Moradores das ocupações Vitória, Rosa Leão e Esperança, que ficam na região Norte de Belo Horizonte, marcharam até o centro da capital nesta quinta feira (2). Eles saíram logo pela manhã e chegaram até uma agência da Caixa Econômica Federal por volta das 2 da tarde.

    Eles foram até o local protocolar um ofício feito pelas famílias contra o financiamento pelo banco do programa Minha Casa, Minha Vida, que pretende construir mais de 11 mil apartamentos de 43 metros quadrados no local conhecido como Mata do Izidora, onde ficam as ocupações.

     

    O detalhe é que os prédios serão construídos em cima dos escombros das mais de 4 mil casas que os moradores fizeram nos dois anos de ocupação. Muitos desses moradores fizeram empréstimos para erguer as residências, todas feitas de alvenaria.

    Movimentos sociais e as famílias criticam o projeto de habitação do governo, que foi proposto aos moradores depois que eles já haviam ocupado as terras, que segundo eles estavam abandonadas há cerca de 30 anos. Frei Gilvander, da Pastoral da Terra, também afirma que o projeto de construção das habitações não obedeceu à lei em muitos pontos.

    A ordem de despejo foi assinada pelo governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, no dia 19 de Junho. A Polícia Militar só não enviou suas tropas para a realização do despejo graças a mobilização de coletivos, como o Margarida Alves. Os advogados conseguiram suspender a ação por 15 dias e nesta semana o STJ concedeu uma liminar que afirma que o governo de Minas e a PM não estão preparados para realizar o despejo.

    As famílias querem a abertura das negociações para uma saída justa, já que o programa Minha Casa Minha Vida não contemplará todas as famílias que vivem nas ocupações.

    Os moradores afirmam que se a reintegração de posse for cumprida, eles vão resistir. Eles estão cientes do direito à moradia, previsto na Constituição da República. Além disso, vários indícios de irregularidades também estão barrando o cumprimento do despejo, dentre eles, o de grilagem de terra. São quase 10 mil hectares, com áreas públicas e privadas, além de uma área de preservação ambiental.

    Na manifestação, a determinação de cada um podia ser vista nas falas e nos olhares. Com apoio das famílias do Dandara, Maria Guerreira e Paulo Freire, as famílias demonstraram que as ocupações de Belo Horizonte estão unidas para conquistar suas moradias.

    Com falas de desabafo e esclarecimentos, os representantes das ocupações manifestaram repúdio à criminalização por parte da grande mídia. “Quero falar que nas ocupações não tem vagabundo, não! Porque estamos aqui, ó, caminhando mais de 30Km. Se tivesse vagabundo não estaríamos aqui!. Nós não vamos aceitar essas mentiras por parte da mídia.”, protestou uma das lideranças, Charlene Egídio.

    Depois de um almoço servido no local, a marcha seguiu até a porta da Prefeitura de Belo Horizonte, considerada pelos movimentos uma das principais responsáveis pelo despejo das famílias.

    Já perto das cinco horas da tarde, unidos em direção à casa do executivo municipal, os ocupantes alcançaram a Avenida Afonso Pena. Neste momento, já avistava-se o destino final de mais um dia de luta.

    O valor de cada suor escorrido nos rostos das mulheres e homens da Mata do Izidora fica claro quando Léo, do movimento MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), afirma que “as ocupações construíram mais casas do que o Minha Casa, Minha Vida, desde seu surgimento, em 2008”.

    Acordar com o despertar do sol e partir rumo ao centro de Belo Horizonte, a pé, justifica todo o esforço de centenas de pessoas. Elas querem que a sociedade e o governo se sensibilizem com a causa delas.

    Mantendo o costumeiro padrão das manifestações que acontecem em frente à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, nenhum representante do governo compareceu. Resistentes e determinados, todos os ocupantes permaneceram em frente ao prédio até que, em conjunto, voltaram para seus lares, esperando a garantia de dormirem tranquilos sem o risco de despejo iminente.

  • População na Irlanda aprova casamento igualitário e coloca em xeque o poder da Igreja

    População na Irlanda aprova casamento igualitário e coloca em xeque o poder da Igreja

     

    Foto: Pedro Machado

    62% dos irlandeses disseram sim em uma decisão inédita tomada por decisão popular

    Quem andou pelas ruas da Irlanda nos últimos meses se deparou com uma disputa de espaço entre placas de Sim e Não. Isso porque o dia 22 de maio de 2015 já entrou para a história do país. Um referendo inédito no mundo colocou nas mãos da população o poder de decidir pela aprovação, ou não, do casamento civil igualitário, o famoso casamento gay.

    Foto: Caio Bibiano

    Com 62%, a vitória do Sim foi chamada de “esmagadora” por jornais irlandeses e também em um comunicado do tradicional partido de esquerda, o Sinn Féin.

    A Irlanda, que até 1993 criminalizava a homossexualidade, acaba de entrar para o grupo de apenas 20 países, que desde 2010 inclui o Brasil, onde pessoas do mesmo sexo estão asseguradas perante a lei para se casar.

    Na Irlanda, o voto não é obrigatório. Mesmo assim, mais de 3,2 milhões de eleitores foram às urnas no país, e em somente uma região, entre as 43 áreas de votação, o Sim perdeu. A adesão da juventude foi massiva e importante para a campanha chamada Yes Equality. A mais famosa drag queen da Irlanda, Panti Bliss, codinome para o ativista irlandês Rory O’Neill, 47, lembra que os últimos meses foram difíceis para gays, lésbicas e transexuais irlandeses. “Quando andávamos pelas ruas e víamos as placas de Não, parecia algo pessoal, pois as pessoas estavam falando sobre você e muitas vezes te desvalorizando”.

    A campanha pela igualdade ganhou ainda mais visibilidade quando, no começo deste ano, o atual ministro da saúde, Leo Varadkar, assumiu publicamente sua homossexualidade. Pelas ruas, voluntários se empenharam em pedidos de voto, reuniões, comícios e, inclusive, batendo de porta em porta. Panti conta que foi encorajador ver a comunidade gay se unindo e recebendo apoio de mães, estudantes e heterossexuais.

    União Civil versus Casamento Igualitário

    Na Irlanda, desde 2010, gays e lésbicas já podem praticar a união civil, porém, há diferenças entre união civil e casamento como a proteção do segundo pela Constituição e a adoção de crianças, o que levantou grande parte da polêmica entre Sim e Não.

    Foto: Caio Bibiano

    Com a vitória do Sim, anunciada em clima de festa no Dublin Castle, região central de Dublin, capital do país, na tarde do último sábado, 23, o passo seguinte será a alteração do artigo 41 da Constituição. A partir de então, haverá uma especificação, na qual o casamento se dará, de acordo com a lei, entre duas pessoas sem distinção de sexo. O governo estima que entre todos os trâmites, a atualização deve entrar em vigor em cerca de três meses.

    Na Irlanda, toda emenda constitucional é colocada em votação pública. Também na última sexta-feira, 22, irlandeses decidiram por manter a idade mínima de 35 anos para ser presidente do país, indo contra a proposta de redução para 21 anos de idade.

    Pesos e Medidas

    De um lado, a campanha em prol do casamento igualitário pedia igualdade de direitos, ressaltando que se trata de um casamento civil e, portanto, não afetaria matrimônios religiosos. Do outro, a campanha pelo Não reivindicava o direito de uma criança ter um pai e uma mãe, entre outros argumentos.

    O período de campanha foi marcado por polêmicas de diversas naturezas. Em placas espalhadas pelo país, uma imagem sem autorização foi associada ao Não. No entanto, pai e mãe que aparecem na fotografia se manifestaram em um comunicado oficial, esclarecendo que além de não terem permitido o uso da imagem, apoiam o casamento igualitário.

    Entre os argumentos do Não, insinuaram, por exemplo, que a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo poderia abrir uma brecha e que, no futuro, poderia ser aprovada uma lei para barriga de aluguel, o que criaria um tipo de mercado para “encomenda de crianças”.

    Tradição Religiosa

    Com a vitória do Sim, há preocupação por parte da Igreja Católica, que já esboça uma reação à resposta do plebiscito irlandês considerando fazer “uma revisão da realidade”, de acordo com entrevistas concedidas pelo bispo Diarmuid Martin. Posicionamentos de católicos como o do auditor fiscal Rob Hanlon, 26, é um exemplo. Para Hanlon, “a orientação sexual de uma pessoa não pode defini-la aos olhos da lei. Não há motivos para eu poder casar e alguns dos meus amigos não”, diz.

    A juventude questionou paradigmas de tradição na hora de votar. Andrew Keneddy, professor, 26, diz, “eu não considero opiniões religiosas em questões sobre igualdade”, afirmou.

    “A sua religião não deve afetar a felicidade dos outros. Se eu tiver filhos homossexuais quero que eles possam se casar com quem amam e sejam vistos como um casal perante a Constituição”.

    Hillary Fagan, jornalista e membro do grupo religioso Mothers and Fathers Matter, diz que na própria Constituição consta que “nenhuma autoridade é maior que a da família”, e o casamento seria o início da criação de uma família. “É a união entre um homem e uma mulher com o objetivo de procriar. Não queremos que isso seja alterado”.

    Para a enfermeira e eleitora do Não, Lucy McDonald, 57, a preocupação em “proteger as crianças” a motivou a votar contra o casamento igualitário. Mesmo motivo de sua colega de profissão, Karen Ludden, 24. “Não sou contra gays, mas devemos preservar o direito natural de crianças terem um pai e uma mãe”, diz.

    Foto: Acássia Deliê

    A influência do cristianismo na Irlanda é confirmada por números. No último censo, de2011, 90% da população se declarou cristã, sendo 84% da Igreja Católica Apostólica Romana. O cristianismo está enraizado na cultura irlandesa de modo que a festa mais conhecida do país é a comemoração do Dia de São Patrício, santo católico e padroeiro da Irlanda. Além disso, a maior parte das escolas públicas é administrada por membros da Igreja.

    Uma vez que a Igreja Cristã considera a homossexualidade pecado, organizações religiosas envolveram-se diretamente na campanha em prol do Não, entre outros motivos, baseadas nas suas convicções de fé. O pastor Samuel Mawhinney, da Igreja Presbiteriana, diz que a definição de casamento dada por Deus, no livro Gênesis, da Bíblia, corresponde a uma união entre um homem e uma mulher. “Jesus reforçou isso nos evangelhos e o apóstolo Paulo usou o casamento entre homem e mulher para representar a relação entre Jesus Cristo, o noivo, e a Igreja, a noiva. Para mim, isso é casamento”.

    Mawhinney não hesita em justificar sua campanha em crença religiosa. Porém, rebate o argumento de que a Igreja não deve se envolver em uma questão sobre direitos civis. Para ele, uma vez inserida na sociedade, a Igreja também deve participar do debate. “Mesmo entre cristãos, muitos acreditam que Estado e Igreja devem ser totalmente separados. Eu acredito que Deus está na sociedade, mesmo que a sociedade ignore o que Ele diz.”

    “A Irlanda não é governada pela Igreja Católica”, Panti Bliss

    Em um texto para o jornal irlandês The Independent, Panti defendeu que a Irlanda não é um país governado pela Igreja Católica. E depois de visitar o Dublin Castle, onde o anúncio oficial do governo irlandês foi feito em uma tarde de sol com direito a arco-íris no céu, a drag queen foi recebida com salvas de palmas e clima de festa em seu pub, Pantibar, na região central da cidade. Uma multidão se aglomerava no cruzamento aos gritos de “Queen of Ireland” (Rainha da Irlanda), que também escreveu, “essa é uma luta de mais de 40 anos, e eu sinto como se tivesse pedido a Irlanda em casamento, e todos me disseram sim!”.

    Colaboraram: Fernanda Machado e Mariana Gasparetti

    Foto: Pedro Machado

     

  • Paraná em chamas

    Paraná em chamas

    O massacre a que Curitiba assistiu no 29 de abril

    A série de explosões começou a ser ouvida pouco antes das três da tarde. Quem estava a distâncias que chegavam a seis quilômetros, por exemplo, conseguia ter uma ideia clara de que as coisas no Centro Cívico, a praça dos três poderes do Paraná (mais a Prefeitura de Curitiba), não estavam para brincadeira. Os estrondos eram resultado da ação violenta de policiais militares contra servidores públicos, a maioria professores da rede estadual.

    Há dois dias, eles protestavam contra uma série de medidas de arrocho que a Assembleia Legislativa começava a colocar em segunda e última votação naquele momento. No final da tarde, sabia-se que houve pelo menos 107 feridos — dois policiais e 105 servidores. O placar medonho retrata um verdadeiro massacre.

    Já à noite, sabia-se que os feridos, aumentaram para 150, segundo informações oficiais do SAMU. Oito deles seguiam em estado grave por causa de mordidas de cães policiais e tiros com balas de borracha.

    Na segunda-feira, com o registro de escaramuças entre PMs e servidores, mas em escala menor do que a de hoje, o fatídico e já histórico 29 de abril, os deputados já haviam aprovado em primeira votação, por 31 votos favoráveis contra 21 o tal pacotaço, encaminhado pelo governador Beto Richa (PSDB) para melhorar as finanças do Estado, cujos balanços festejados por ele mesmo durante sua campanha à reeleição, no ano passado, apontavam para uma contabilidade em céu de brigadeiro.

    Por mais de uma hora e meia, as bombas de gás e de efeito moral mostraram do lado de fora do parlamento estadual que eram a verdadeira garantia para a votação definitiva de hoje no interior do prédio, fazendo valer a vontade de Richa e de sua equipe de governo, comandada pelo baiano Mauro Ricardo Costa, importado pelo tucano para seu segundo mandato e já conhecido pelos serviços prestados na área fazendária da Prefeitura de de Salvador (BA), gestão de ACM Neto (DEM), e no governo de São Paulo, na gestão de José Serra (PSDB). A sessão prosseguia, sem final previsto, até a conclusão desta reportagem.

    No entanto, à medida em que as bombas, os cães, as balas de borracha e os cassetetes caíam sobre os manifestantes armados apenas com gritos e palavras de ordem, deputados preocupados com a onda de violência que se desenrolava na praça principal, em frente a Assembleia, batizada de Nossa Senhora da Salete (trágica ironia), chegaram a sair do prédio para pedir calma aos policiais. A exemplo de servidores públicos feridos, com quem ficou lado a lado durante a confusão e barbárie generalizada na praça, o deputado Rasca Rodrigues, do PV, saiu no prejuízo e foi mordido por um dos cães da tropa de choque da PM, além de ter aspirado gás de pimenta e lacrimogênio. Voltou ao prédio com sangue escorrendo pelo braço.

    Proibidos de se aproximar da Assembleia Legislativa por grades e um cordão humano de 1.500 policiais, a maioria deslocados de batalhões do interior e sem garantia de pagamento de suas diárias, restou aos manifestantes fazer o caminho de volta, diante da intensa repressão policial que se iniciou. Eles voltavam correndo em direção à avenida Cândido de Abreu, a principal via de ligação com o Centro Cívico. Não estavam sozinhos.


    Muitos vinham carregando, como feridos da guerra campal, pelos braços e pernas, manifestantes desacordados e feridos.

     


    O prédio mais próximo em que eles poderiam ficar à espera de socorro, foi a Prefeitura, comandada atualmente por Gustavo Fruet (PDT), atual desafeto de Richa, que lhe negou candidatura a prefeito, em 2012 pelo PSDB, vindo a se candidatar e ganhar o poder da capital, como azarão.

    O hall de entrada e salas próximas, onde o IPTU e tributos municipais são cobrados, foram transformados em hospital de campanha. Vídeos de smartphones com os feridos deitados, sangrando e sem camisa passaram a ser veiculados na internet. Mesas de trabalho viraram maca, e as poucas que chegavam, apareciam por meio das escassas equipes do SAMU, que estavam em dificuldades para se aproximar do Centro Cívico, por conta do bloqueio policial de ruas próximas, e à multidão em fuga por calçadas e a avenida principal.

    O expediente em toda a Prefeitura foi interrompido para que se desse cabo do atendimento aos feridos. Só ali foram acolhidos 35, muitos deles machucados no corpo, da cabeça aos pés, pelas balas de borracha das carabinas da tropa de choque e outros com dificuldade de respiração por inalação dos gases de dispersão, além dos atingidos de praxe pela força dos cassetetes. Testemunhas entre os manifestantes relataram ter visto um helicóptero com policiais atirando bombas em voos rasantes, no que seria o primeiro ataque aéreo feito contra seus próprios civis em território nacional.

    Uma creche municipal que fica no Centro Cívico, a poucas quadras da praça onde a guerra prosseguia, testemunhou de dentro de suas paredes todo o terror protagonizado pelos policiais. Se a seis quilômetros, o barulho das bombas se fazia surpreender, como exposto no início deste relato, pode-se ter uma ideia da intensidade dos estrondos e do eco provocado dentro da creche infantil, exposta ao barulho das explosões e dos gritos dos manifestantes, apoiados por potentes carros de som, além do incômodo nauseante da fumaça dos gases de dispersão. O choro tomou conta das crianças, funcionários e professores, que não tinham a quem recorrer, restando torcer para que tudo terminasse o mais breve possível, o que não aconteceu.

    Do ponto de vista militar, a polícia cumpriu, mesmo com o uso de força excessiva, a missão de deixar afastados da Assembleia os manifestantes, o que não havia conseguido em fevereiro, quando Richa tentou colocar o pacotaço em votação pela primeira vez, ocasião em que foi rechaçado pela presença de 20 mil manifestantes e um mês de greve dos professores, a maior categoria de servidores do Estado, com 50 mil profissionais. Naquela ocasião, os deputados da bancada governista tiveram que entrar na Assembleia dentro de um vetusto e gigante camburão policial de cor preta. Tentaram encaminhar a votação do restaurante da assembleia, pois o plenário havia sido ocupado, mas tiveram medo da reação dos manifestantes e adiaram o intento.

    Como se percebe, era questão de tempo para Richa assimilar o recuo, reorganizar a tropa, tanto a da fiel Assembleia, como a das balas, bombas e porretes, para fazer valer seu projeto que tira vários direitos do funcionalismo, como o corte de licenças de parte dos professores, o livre uso de recursos dos fundos estaduais, inclusive o do poder Judiciário, aumento da alíquota do ICMS de mais de 90 mil produtos, e mudanças no setor de previdência dos servidores, que os obrigarão a pagar um índice extra caso queiram manter seus salários integrais acima de R$ 4,6 mil.


    O preço político a ser pago para os principais atores do episódio, como Richa e seus colaboradores no governo e na Assembleia, ainda é tão nebuloso e maleável quanto a fumaça de cor branca das bombas que tomou conta do Centro Cívico e fartamente captada pelos celulares dos prédios próximos.


    Antes que o leitor estranhe esse direcionamento nessa parte do texto, um pouco de história recente da política local. Em 30 de agosto de 1988, a PM reprimiu no mesmo Centro Cívico, um protesto de professores da rede estadual, no então governo de Álvaro Dias, na época no PMDB, e hoje senador filiado ao PSDB. Muitos decretaram o fim de sua carreira política, marcado pelo pisoteio da cavalaria em professores desarmados, mas Álvaro segue firme na lida. Tirando duas derrotas circunstanciais ao governo paranaense, contra Jaime Lerner, em 1994, a novidade política daquele ano, e Roberto Requião, em 2002, apoiado por nada menos do que o presidente Lula, o bamba da vez, Dias é o senador com mais mandatos eleitos. Ganhou, por exemplo, com ampla folga mais oito anos em 2014. Já havia sido eleito em 2006 e em 1998, portanto, depois da pancadaria de 88.

    Richa tem um destino mais incerto, mas nem por isso menos favorável. Richa encarna o antiesquerdismo visceral de boa parte do eleitorado paranaense atual. Com o tempo, como todo político, pode ser beneficiado pela diluição natural do episódio dantesco, assim como aconteceu com Álvaro Dias. A diferença é que, pelo tamanho do massacre e sua presença constante na internet (ferramente inexistente na época de Álvaro), Richa poderá passar o que resta do seu segundo mandato tentando explicar os “comos” e “por ques” de tanta violência contra profissionais da Educação. E mais: boa parte da população paranaense, assim como a brasileira, ainda marca sua rotina diária em frente à televisão pelo noticiário das emissoras de sinal aberto. Nesta noite, Richa pode ser beneficiado ou não pelos filtros editoriais e critérios supostamente jornalísticos (“não abusar das imagens, tem muita criança assistindo neste momento”, pode ser um deles, sim) lançados à mão por editores e cúpulas das emissoras.

    A administração de Richa enfrenta também profunda investigação sobre supostos pagamentos de propina a servidores da Receita Estadual de Londrina, no Norte do Paraná, sua cidade natal, por empresas pressionadas a se verem livres de qualquer fiscalização e cobrança dos agentes do fisco. Um dos jornalistas mais premiados do Brasil, ao investigar o caso, teve que sair da cidade, pois recebeu a informação que seria morto em falso assalto a uma churrascaria que frequentava. O primo de Richa, Luiz Abi, é suspeito de estar por trás de fraudes de licitação para consertos de carros do governo, assunto que o jornalista ameaçado, James Alberti, da afiliada da Globo, no Paraná, também investigava em Londrina. Abi foi preso, a pedido do Ministério Público, mas atualmente responde ao processo de suspeita de corrupção em liberdade.

    Beto Richa é filho de José Richa (morto em 2003). Richa pai teve papel de destaque na época da redemocratização, quando Tancredo Neves foi eleito presidente da República, no colégio eleitoral de janeiro de 1985. Se os militares da linha dura decidissem impedir a posse ou não reconhecessem o resultado da eleição indireta feita no Congresso Nacional, Richa pai havia se comprometido a participar de um plano para abrigar Tancredo no Paraná e resistir contra uma eventual tentativa de golpe, colocando a sua Polícia Militar, para proteger o novo presidente civil. Hoje, trinta anos depois, a mesma corporação, sob o desígnio de outro Richa, faz o caminho inverso, o da violência desenfreada, sem qualquer ligação com as garantias democráticas tão defendidas pelo próprio pai, como ficou explícito na tarde desse 29 de abril, marcada pelo frio e garoa que caiu no centro do poder da Capital do Paraná.


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  • Parlamentares versus parentes

    Parlamentares versus parentes

    Brasília, 16 de abril de 2015, terceiro dia de Mobilização Nacional Indígena no 11º Acampamento Terra Livre. É hora de mais de 500 indígenas se pintarem para a guerra, descerem até o poder legislativo da República e ocuparem o Congresso Nacional, organizados em fila indiana para passar pelo cordão de isolamento da Polícia Legislativa. E lá vou eu de novo, junto com esse povo que (não) sou eu, pisar naquele chão de elite branca que (não) é meu.

    Foto: Mídia NINJA

    Rompido o cordão de isolamento, a rampa do Congresso Nacional é do povo indígena — o que valeu apenas para aqueles que tivessem nome e sobrenome passados à Câmara pela organização da Mobilização Nacional Indígena.

    Foto: Mídia NINJA

    Como a provar que todo dia é dia de demagogia nas duas casas legislativas do Brasil, deputados e senadores são uníssonos em comemorar e homenagear o Dia Nacional do Índio, o 19 de abril, data solitária paliativa num oceano de 364 outros dias. A Câmara dos Deputados recebe com carinho e reverência o espetáculo multicolorido de “parentes” vindos de avião, ônibus e carro das cinco regiões do Brasil com S.

    Foto: Mídia NINJA

    A casa toda se levanta para cantar, em português, o Hino Nacional Brasileiro. Alguns indígenas cantam junto, outros mantêm silêncio (ir)reverente.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Assentados nos postos rotineiramente ocupados pelos deputados, @s índi@s batucam a internet dos parentes brancos e produzem a cena espetacular de ocuparem, uma vez na vida, os assentos mais poderosos do país que antigamente era só deles. A Rede Globo e demais emissoras (multi)nacionais ignoram solenemente o espetáculo extraordinário de cores e significados.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Enquanto isso, nos subterrâneos, os astutos senhores atualmente liderados pelo peemedebista Eduardo Cunha preparam o bote apelidado PEC 215. Sob a tarja de Proposta de Emenda à Constituição, a 215, esse é o eufemismo ruralista-especulativo para designar o estupro (mais um estupro) que pretende sequestrar do poder executivo para o legislativo (ou seja, para os homens — e algumas mulheres — de Cunha e do também peemedebistaRenan Calheiros) a tarefa de (não) demarcar e homologar terras para os habitantes originários do Brasil que foi ficando com Z.

    (“Parente” é o termo amoroso pelo qual os descendentes indígenas de nosso país se tratam e se reconhecem uns aos outros.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Superstar entre os parentes na sessão matinal na Câmara, a ex-senadora acreana Marina Silva, da (não-)Rede e do (não-)PSB, é estrela maior entre uma constelação de cocares, penas de pássaros e tons não-pálidos de peles humanas. A terceira colocada nas eleições presidenciais de 2014 diz que “não sabia que iria falar”, antes de observar que esta é sua primeira aparição pública desde a campanha e de sacar de um papel apontamentos para um discurso de forte identificação e empatia com os parentes presentes.

    O discurso é mais brando que o que Marina fez menos de 24 horas antes na plenária pública da tenda de circo do acampamento instalado no gramado da Esplanada dos Ministérios, no qual reafirmou lealdade às causas indígenas, criticou as incoerências político-eleitorais e a política de demarcações da presidenta Dilma Rousseff e afirmou ter se aliado “a uma das candidaturas” do segundo turno de 2014 por causa, entre outras, do compromisso da candidatura em questão em não apoiar a PEC 215.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Na Câmara, Marina demonstra que as demarcações diminuíram drasticamente nos governos petista, em comparação aos governos tucanos pré-2003, e troca a ordem dos fatores: não menciona a aliança que fez no segundo turno, mas nomina o tucano Aécio Neves em pessoa, dando conta de um suposto compromisso do senador mineiro com a não-aprovação da PEC anti-indígena pró-ruralista.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    A demagogia pró-indígena dos congressistas recende a antídoto para a feia cena de dezembro passado, quando a Câmara usou de violência para impedir a entrada dos parente numa sessão da “casa do povo” (leia aqui como a mídia tradicional inverteu a notícia, acusando índios de “invasores” e agressores). Sob os crucifixos católicos que adornam os plenários laicos de Câmara e Senado, agora tudo é paz, todos amam os índios, tudo é festa preparatória para a chegada do 19 de abril.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    O músico paraibano Chico César toma o microfone para saudar os “parentes” e entoar uma canção provocadora decalcada das epopeias folk do (não)parente do norte Bob Dylan.

    Pajelanças à parte, o tratamento “diferenciado” se conserva. No início da sessão, mais deputados que índios ocupam as tribunas (onde está a Rede Globo, que ainda não chegou para dar holofotes indigenistas aos representantes do povo?). Mais indígenas que congressistas são relegados às últimas falas.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Irredutível diante do dominador, o cacique caiapó (e mato-grossense) Raonidiscursa em sua própria língua. ”O homem branco não quer ouvir o que temos a dizer”, lamenta ao microfone um cacique faminto do almoço que começa a tardar.

    Foto: Mídia NINJA

    (Na noite de quarta-feira, depois de ouvir Marina discursar, assisti a uma minúscula reportagem da Globo do Distrito Federal sobre a marcha indígena do dia. Não houve nenhuma ínfima menção à PEC 215, menos ainda ao que ela significa. O locutor afirmou que a passeata era a favor da reforma agrária — termo que não ouvi da boca de nenhum indígena nesses dias. A manifestação interrompeu o trânsito, sublinhou a Globo, que, definitivamente, não é — ou não quer ser — parente de ninguém que seja não-branco. Sim, nós somos racistas, sinhozinho.)

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Os parentes não se mostram convencidos pela encenação parlamentar. Balançam chocalhos (arcos e flechas foram proibidos de entrar), fazem algazarra contra o pretendido estupro à Constituição de 1988, forçam no grito manso os deputados a vestir a camiseta “não à PEC 215″ que trouxeram como presente de índio para branco. ”Veste! Veste! Veste!”, exigem com firmeza inclusive de uma inicialmente hesitante Marina Silva. A parenta que quase foi presidenta acaba por cobrir parte do vestido verde-amarelo-elegante com a camisa que diz ser sua para sempre.

    Foto: Mídia NINJA

    O festim demagógico se repete como farsa na parte da tarde, no auditório do Senado. A segunda casa legislativa se revela mais exclusiva, exclusivista, restrita e restritiva que a Câmara. Agora a polícia legislativa não quer permitir nem mesmo a entrada dos chocalhos. Na iminência de ser privados de mais uma parte importante de suas identidades, índias e índios ameaçam ir embora para o acampamento, e dali para casa. A comissão de Direitos Humanos do Senado consegue desenlaçar o impasse: os chocalhos entram no salão azul dos brancos homens (e algumas mulheres).

    Foto: Mídia NINJA

    Sob o crucifixo católico que (como na Câmara) adorna o topo da mesa diretora, o aparentemente parente João Capiberibe, do PSB do Amapá, preside uma sessão à qual pouquíssimos parentes-de-Senado estão presentes. Homens e mulheres pintados, seminus e calçados de havaianas tomam assento nas cadeiras paulistas em que cotidianamente se refestelam, lado a lado, os senadores José Serra, Aloysio Nunes (PSDB) e Marta Suplicy (PT ou ex-PT?).

    Foto: Mídia NINJA

    Parente paranaense, me vejo sentado na cadeira do conterrâneo Roberto Requião (PMDB), antes de notar que, no Senado, ele se senta lado a lado com os irmãos-adversários de aldeia Gleisi Hoffman (PT) e Álvaro Dias(PSDB). Não é só no aldeamento demarcado: também no parlamento os parentes rivais são forçados (forçados?) a dividir o mesmo lugar no espaço uns com os outros.

    São tristonhos os primeiros discursos de senadores na tribuna. “Veste! Veste! Veste!”, os agora cerca de 80 parentes no Senado constrangem os parlamentares a assumir a camisa-emblema que só na hora do voto eles revelarão no duro se é ou não é a sua. Capiberibe e um senador do PR de Tocantins se (des)ajeitam na camisa anti-PEC. Os chocalhos balançam, felizes, mas não necessariamente crédulos. O paraibano Cássio Cunha Lima, do PSDB, aparece sorridente para cumprimentar conterrâneos indígenas, mas não cobre peito com o “não à PEC 215″. Os chocalhos sabem a hora de emudecer.

    Foto: Mídia NINJA

    Um cacique põe o dedo na ferida de poderosos sejam executivos, legislativos, judiciários, laicos ou religiosos, em discurso que não será ouvido pelos ausentes Marta, Serra, Aloysio, Aécio, Renan, Requião, Gleisi, Álvaro: “Não adianta falar que defendem os índios, os LGBTs, os quilombolas ou as mulheres, se vocês não defendem de verdade”. Dos assentos onde poderiam estar os senadores, os chocalhos gritam, misturados a trinados que evocam os pássaros das florestas brasileiras com S.

    Foto: Mídia NINJA

    Capiberibe anuncia que vai se ausentar da presidência da sessão para acompanhar uma ainda mais exclusiva delegação indígena ao encontro do vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB. É o mais perto que os parentes chegarão da presidenta Dilma nesta jornada, pelo menos até o instante em que este #JornalistaLivre tem de debandar da “casa do povo” e do convívio com parentes e (não-)parentes, para voar de volta à terra adotiva dos bandeirantes de São Paulo.

    (Você viu no Jornal Nacional da quinta-feira 17 se Dilma ou Temer recebeu nossos parentes indígenas? Você viu nossos parentes na tela da Globo?)