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Tag: feminismo

  • 2019 desejante

    2019 desejante

    por Natasja Garonne

    *ilustrações por helio carlos mello – interversão e mixagem na obra de Caribé e Tom Zé.

     

     

     

    – É que faz oito dias que não durmo na minha casa, por isso eu achei que poderia estar exagerando nos dates. 8 noites, 6 camas diferentes. Passei a tarde em casa para lavar a roupa e tal. Mas logo estou de saída de novo.

    Era um dos meus amigos sendo super sincero. Será que estava exagerando? Será que estava tentando mascarar a fase ruim que vivemos em 2019, passando mais tempo dedicado à felicidade sexual das pessoas? Eu perguntei se ele achava que estava apenas consumindo sexo ou se estava realmente dando algo bom às companheiras. Ficou com a segunda resposta, cada uma com um jeito diferente de dar e receber prazer, boas conversas, pessoas que tem encontrado com frequência nesse último ano. Ótimo. Então, esqueça o socialmente estabelecido e distribua esse prazer, foi meu conselho.

    Por isso fiz um balanço do que aconteceu em 2019 na minha própria vidinha mais ou menos. Foi o segundo melhor ano da minha vida sexual, e faz trinta anos que tenho uma. Não foram só caras diferentes e interessantes que me deram o prazer de ter prazer comigo. Foram as experiências mais radicais de experimentação não convencional de práticas – eu nem posso dizer “na cama” porque realmente não foram.

    Será que estamos transando assim, como se não houvesse amanhã, para esquecer o bolsonarismo por algumas horas? Será que é assim que podemos suportar os dias em tudo está sendo destruído em termos de liberdades civis e direitos sociais? Será que é dando que a gente está conseguindo sobreviver à avalanche obscurantista de 2019?

    Olha, estou convencida do contrário. Acho até que o bolsonarismo é uma reação bizarra e patética a uma transformação que vem vindo no vento. Os discursos histriônicos pela família convencional, rosa e azul, homem que é homem, mulher recatada, masculinidade violenta é que parecem tentar responder a nossos avanços. A preocupação dos dirigentes do governo brasileiro hoje é que os jovens não “virem gays”. Para que teriam que defender o que está estabilizado? Por que ser arauto de uma verdade que ninguém questiona? Se eles investem tanto em reforçar esses padrões é porque já estão amplamente questionados.

    Enquanto uma parte da população mergulha num backlash obscurantista, repressor e numa caretice sem tamanho, o Brasil está aí fazendo golden shower, e isso o presidente percebeu como poucos. O presidente é o maior fiscal de cu da República no presente século. Mas o seu trabalho não está sendo tão fácil, ele revelou esses dias um enorme cansaço, porque eu acho que cu foi a palavra do ano.

    No meu animado ano, passei a receber pedidos de parceiros hétero para explorar eroticamente o lugar que nunca toma sol. Comecei meio tímida, mas quando me dei conta, tinha virado uma espécie de rainha do pegging. Para quem não sabe, pegging é quando a mina pega o cara por trás, também chamado na nossa língua de “inversão”. Penetração mesmo, do feminino no masculino, por aquele portal sensível erótica e politicamente. Vale de um tudo, a depender do desejo e do consentimento: um dedo, dois dedos, um plug, um brinquedo, maior, maior, maior ainda, vai que eu aguento, sou homem, pô. Até que alguém me pediu um fisting. Alguém não, vários alguns, mais um estava na minha frente, já posicionado. Eu pensei, gente, acho que não vai rolar, imagina, eu? Mas o brasileiro não desiste nunca, e coloquei a mão inteira.

    Sei que agora uma boa parte dos leitores teve uma reação corporal de defesa. Tipo oloko. E uma parte está procurando se tem meu email nos créditos.

    Mas eu queria tentar comunicar que sou totalmente normal vivendo diferente. Tenho profissão exigente, sou casada, faço almoço de domingo, limpo casa, me depilo, organizo ceia de Natal, uso até aliança (estou vendo aquele ali que já se perguntou se estava com ela ou sem no momento do fisting). Não tenho tatuagem e faço luzes no cabelo. Mas no ano passado abrimos o relacionamento. E foi então que, tendo passado um tempo fora do mercado, voltei e o pegging estava na moda. Não só o pegging, mas todo tipo de fetiche. O brasileiro do escritório, da faculdade, do carro engarrafado na marginal. Meus amigos de esquerda. Meus peguetes Faria Limers. Não vou dizer que gente que votou 17 também, mas não duvido, embora a esses eu peça gentilmente, no texto do aplicativo, que não falem comigo. A geral está experimentando com o rabo. Curiosos a respeito de troca de papeis, dominação feminina, mulheres no comando.

    Eu estou falando de gente careta, com identidade sexual hétero cis. Gente que tem filho, namorada. Gente que está nos aplicativos de encontro comuns, gente muito baunilha em quase tudo. Cada vez mais não monogâmicos, cada vez mais “mente aberta”, o que parece ser o código para a prática. Tem os que chegam com “Olha, eu não quero fazer isso todo dia, mas eu te achei uma pessoa bacana, eu queria experimentar”. Tem os “Já pedi para minha namorada, mas ela ficou muito tímida, eu queria experimentar direito. Você tem uma cinta?”. E tem os que já me chamam de Rainha.

    Você nem sabe, mas capaz que encontrou seu colega de escritório ou o pai do coleguinha da escola do seu filho usando um plug anal por aí, no banheiro da firma ou no supermercado, como parte de um jogo de erotização que não pertence mais só a um segmento muito escondido e a comunidades discriminadas.

    Também tenho visto os nossos filhos. Eu não tenho filhos, mas vocês têm. E eles estão na idade de descobrir, não é? Tentamos entender se nossos filhos são hétero ou LGBT, mas estamos levando um tempo enorme para entender. E a frase do ano, nesse sentido, eu ouvi de uma estudante da faculdade: “Briguei com a minha mãe porque ela quer que eu diga se eu sou lésbica ou não. Para que eu tenho que saber dizer isso?”

    O monitor de uma das minhas turmas na faculdade fez o inventário desejoso da sala. Pegava este, aquele e o outro, e esse aqui já mandou um inbox. Eu disse que era para parar com isso, monitor não pode ficar misturando as coisas. Ele ficou mal ao perceber que eu tinha razão. Aí, para dar uma descontraída, eu comentei “mesmo porque esse aqui eu acho que não é gay”. Ele me olhou com cara de quem está explicando para a tia avó como faz para usar os recursos do celular. “Não tem isso não, adoro pegar hétero”. Então, no mínimo uns dez anos defasada nas minhas concepções de sexualidade, eu estabeleci que só podia pegar depois que acabasse o semestre.

    Ainda nesse ano que termina, soube de alguns casais de amigos que abriram o relacionamento. Coisa que a gente não conta para todo mundo. Mais um campo de experiências intenso, prazeroso e dolorido. Aqueles amigos que fui à festa de casamento e dancei flashback, com óculos amarelo e boá de carnaval. Então, agora os dois filhos já cresceram um pouco e o cachorro está velhinho, estão tentando coisas novas. Descobri que tem grupos no facebook, aplicativos, redes abertas, redes fechadas. Gente indo junto aos encontros de swing, gente mantendo contas ativas nos aplicativos. Duas séries do Netflix fizeram sucesso na classe média branca que está tentando escapar daquela família que já não cola mais: Eu, Tu e Ela e Wanderlust. Foi por comentários meus sobre essas séries que alguns amigos vieram inbox dizer que também estavam nessa.

    Lembrei do livro do Zuenir Ventura sobre 1968, em que abre a narrativa contando de divórcios improváveis se sucedendo como dominó. Algo implodia nos valores repressores da vida privada em termos mundiais, às vésperas de tudo se tornar enormente repressivo na vida pública do país. Parece que as pessoas estavam reagindo a algo, de modo individual, porém simultâneo.

    E eu tive a impressão de ter vivido algo parecido em 2019. Cada um com seu cu, fazendo parte de um movimento de desconstrução mundial da interdição sobre a qual se assentou a masculinidade moderna: homem é o que penetra e nunca é penetrado.

    Eu sei que muita gente vai dizer que isso não significa nada, é só olhar a corte bon vivant de Maria Antonieta às vésperas da Revolução Francesa. O que faz revolução é fome, não é cu de homem. É, está certo. Mas a libertinagem, como valor da aristocracia, foi uma das principais correntes de crítica dos valores privados burgueses, elevados a política de Estado na época vitoriana.

    E a normalização do divórcio como uma prática aceitável foi um dos marcos mais importantes na luta pela conquista de direitos civis pelas mulheres no século XX. Se muita gente abre a relação ao mesmo tempo, estamos deslocando e ampliando o sentido de ser um casal e formar uma família, assim como a concepção de posse do corpo e do desejo do outro envolvida nos valores do casamento.

    Penso hoje que os reacionários também percebem o que estamos fazendo mais ou menos escondido, na esteira de um pequeno orifício aberto pelo feminismo e pela luta LBGT. Estão nervosos e agressivos. Percebem que as coisas estão mudando rápido no plano das relações entre os gêneros e com o gênero. Está mudando a experiência de muitos casais hétero. Enquanto os reacionários interditam, nós liberamos.

    Talvez, tão importante quanto multidões gritarem para Bolsonaro ir tomar lá como forma de expressar desaprovação à sua política repressiva e retrógrada, seja começar a destruir na prática os fundamentos dessa masculinidade agressiva fascista. De todo modo, transar diferente ou gritar na rua, sozinhos, não serão suficientes para sustentar as transformações que queremos no mundo. Vai ser preciso lutar em todas as frentes. E também atrás. Eu quis registrar que começamos de vários lados.

      

    Natasja Garonne, blogueira e Domme, escreve no blog Rapport de Dra. Natasja

     

     

  • NILCEA FREIRE (1953-2019): “A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL”

    NILCEA FREIRE (1953-2019): “A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL”

    Nilcea Freire, que nos deixou neste sábado (28/12), vítima de câncer, aos 66 anos, foi uma mulher extraordinária, muito à frente de seu tempo. Médica, feminista, reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi ministra de Políticas para as Mulheres do Governo Lula, cargo análogo ao ocupado atualmente pela pastora evangélica Damares Alves –e só por aí já se pode fazer uma idéia do quanto o País ficou mais fanático, mais intolerante, mais triste, mais ignorante.

    Reitora da UERJ entre 2000 e 2004, Nilcea –pela primeira vez na história do Brasil implantou com a política de cotas (reserva de vagas para alunos negros de baixa renda e formados por escolas públicas). Embora as cotas estivessem em consonância absoluta com a reivindicação do movimento negro, a sua implantação em uma das principais universidades do País deu ensejo a uma violenta onda de repúdio que varreu toda a grande mídia brasileira e boa parte dos círculos intelectuais. Para estes, o ingresso de negros e estudantes de baixa renda no ambiente elitista da academia afigurava-se como uma afronta ao preceito do mérito.

    Previu-se a derrocada do ensino superior, o caos, a falência da formação em terceiro grau. Mas, em vez disso, os novos ingressantes no ensino superior abriram linhas de pesquisa inéditas, trouxeram experiências ainda desconhecidas para o coração acadêmico, transformaram-se em vetores de uma universidade renovada e muito mais inclusiva, colorida e diversa. Logo as cotas tornaram-se paradigma no ensino superior, obrigando mesmo as mais vetustas instituições de ensino brasileiras, como a USP, a também criarem ações afirmativas para a inclusão de novas parcelas sociais em sua comunidade de professores, alunos e funcionários. Nilcea, corajosamente, mostrou o caminho.

    Mulher de esquerda desde a juventude, Nilcea militou nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro nos anos da Ditadura Militar. Por causa disso, amargou o exílio no México, entre 1975 e 1977. Em 1989, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores, partido em que permaneceu até 2016. Em 27 de janeiro de 2004, Nilcea foi empossada Ministra-Chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Luiz Inácio Lula da Silva –inaugurou-se aí um período de impressionante mobilização feminista.

    Delicadeza e resolutividade com a dor dos outros

    A 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em julho do mesmo ano, reuniu mais de 120 mil mulheres de todo o país. No final de 2004, saiu do forno o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que impulsionou os mais relevantes avanços com vistas aos direitos das mulheres: Lei Maria da Penha, criação do ‘Ligue 180’ e do Pacto Nacional de Enfrentamento a Violência, garantia de direitos às trabalhadoras domésticas, políticas focadas na melhoria das condições de vidas das trabalhadoras do campo e para as mulheres negras, promoção da memória da mulher brasileira e articulação em torno da garantia de direitos sexuais e reprodutivos, inclusive fazendo uma clara defesa da autonomia da mulheres nesse campo, foram também marcos de sua gestão.

    Em uma palestra realizada em julho de 2015, Nilcea falou sobre as mortes de mulheres em decorrência de abortos realizados na precariedade da clandestinidade e da pobreza. Foi uma fala grave e crua, que cobrava da sociedade brasileira a coragem de elaborar políticas públicas que pudessem impedir as perdas de vidas de mulheres pela desassistência e desamparo. Nada de Jesus na goiabeira, nada de meninos de azul e meninas de rosa. Nada de gritos. Nilcea passou a vida a exigir atenção à dor de quem sofre. E o fez com delicadeza e sentido de responsabilidade. Por isso, ela foi imprescindível. Por isso estamos tão tristes hoje.

     

    https://youtu.be/RrvPUzbEzXo

     

     

  • Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode

    Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode

    Por Daiane Noves

    _ Com licença senhor agressor, desculpa interromper essa surra que o senhor está aplicando nessa mulher que está caída no chão, é que eu sou do movimento feminista e preciso fazer umas perguntas antes de decidir ou não se eu vou defender esta mulher, tudo bem?
    _ Claro, mas eu posso continuar batendo nela enquanto respondo?
    _ Pode sim. Ainda não sabemos se ela mereceu ou não, vai que ela mereceu. Não queremos ser injustas.
    _ Tá.
    _ Essa mulher está sob efeito de substâncias psicoativas ilícitas?
    _ Sim. Na verdade, sóbrio, sóbrio, ninguém aqui tá.
    _ Entendo. Outra pergunta: ela é bolsonarista né?
    _ É sim. Mas nessa galera aqui todos somos né, gata. Mito, B17!
    _ Entendo. Soube também que ela estava com a arma da namorada anteriormente.
    _ Sim. Mas a namorada já havia guardado. Com ela armada eu não estaria batendo né, senão ela atiraria em mim. Mas vou usar o fato de ela ter estado armada antes para legitimar isso aqui como defesa, saca?
    _ Tem outras pessoas armadas aqui né?
    _ Sim.
    _ Mais uma pergunta: foi ela que começou?
    _ A de mão ou a de boca? Pq eu tava humilhando ela mó cota, ela tava toda com raivinha, mexi com a mina dela também. Aí ela veio pra cima de mim. Olha o tamanho da s4p4t4o. É óbvio que eu ia arrebentar ela.
    _ Mas sabendo disso, pq o senhor só não se defendeu ou segurou ela?
    _ Ah, ela quer ser homem né, tem que apanhar que nem homem, pô.
    _ Mas o senhor sabe que é uma mulher, com compleição física e força bem inferior que a sua. Vc sabia que ia sair ileso e ela arrebentada, não?
    _ Claro. Mas eu quero mostrar pra morena lá que eu sou alfa tá ligado?
    _ Mas se fosse um cara?
    _ Se fosse um cara nem tinha mexido com a mina dele, pô. Mas como é uma mina, que ainda é s4p4t4o, e ainda fez uso de drogas, e ainda revidou as minha provocações vindo pra cima de mim? Acha que vou só conter ela? Vou arrebentar mesmo.
    _ O senhor viu que ela já estava no chão?
    _ Vi, eu sou bem forte, né?
    _ Então pq o senhor continua batendo nela?
    _ Pq é facião bater em mulher, nocaute certeiro. Quero dizer, mulher não, s4p4t4o.
    _ Entendi. Mas a questão é que o senhor tá criando um problema ético para o feminismo, além desse monte de hematomas nela. Pq, veja bem: ela segue filosofia de direita e a gente já não gosta dela, ela não performa feminilidade e ainda fica agindo toda pá para performar masculinidade, já não nos parece como a vítima perfeita e cândida, fala mal do ativismo e tem um auto-ódio imenso, nenhum senso de classe. Dificil detectar misoginia e lesbofobia quando não é a vítima ideal, pô.
    _ Ah, moça, faz assim então, se ninguém me segurar, eu continuo chutando ela aqui caída e mato logo. Ninguém liga pra lesbocídio, essas estatísticas nem saem. Resolvo o meu problema e o de vcs. Pode ser?
    _ Pô, senhor agressor. Fechou. A gente muda o lema para ‘Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode.’
    _ Ah, genial. Qualquer coisa, cê manda um ‘ela que lute’ ou um ‘bem-feito’ ou ‘sem tempo pra mina reaça’, mas acho que não vai precisar não. Ela mereceu, ela tava pedindo.
    _ Verdade né. Desculpa atrapalhar o espancamento ae. Boa surra pro senhor.
    _ Valeu. Ow, cê é uma “morena muito bonita”.
    _ Que isso, não tá vendo meu namorado ali?
    _ Ow, que vacilo, perde perdão lá pra ele. Cê falou que é feminista e eu já pensei que vc tbm namorava s4p4t4o, eca. Aí a gente não respeita não. E se vir cobrar a gente arrebenta, não quer ser homem?
    _ Tá certo. Deixa só eu terminar a minha postagem aqui do “não sou obrigada a ter sororidade com reaça”, péra. Como é mesmo o novo lema que falei agora pouco?
    _ Sei lá, era tipo ‘nada justifica um cara jantar uma mina no soco’…
    _ Não, lembrei, era ‘Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode.’
    _ Isso.
    _ Desculpa incomodar a surra do senhor.
    _ Que isso, tamo junto. B17.


     

    Veja também: Não deve existir “eu avisei” pra vítima de lesbofobia

  • Pra quando o carnaval chegar – Representatividade, segurança e inclusão feminina

    Pra quando o carnaval chegar – Representatividade, segurança e inclusão feminina

    Pra quando o carnaval chegar – Representatividade, segurança e inclusão feminina

    Por *Humberto Meratti, Revisão Jéssica Souza

    Mais de 60 mulheres de aproximadamente 50 blocos do Carnaval de Rua de São Paulo estão à frente de uma iniciativa inédita para garantir ações que possam ser efetivadas, já no próximo ano, visando garantir a segurança e a integridade de mulheres e crianças durante a maior festa de rua da cidade: a Comissão Feminina do Carnaval de Rua de São Paulo. Em sua última reunião, realizada em outubro, o grupo, que vem se articulado desde agosto, propôs pautas, levantou questionamentos, gerou discussões e ouviu desabafos sobre a condição feminina que vão além do Carnaval.

    A ampliação da representatividade feminina nas esferas decisórias da organização do Carnaval de Rua era um desejo antigo de mulheres como: Andrea Lago, do Cacique Jaraguá; Silvia Lopes, do Nois Trupica Mas Não Cai; Paula Klein, do Agora Vai e a Baby Amorim, do Ilú Obá de Min, que há anos reivindicavam uma maior participação, além de movimentos como o Manifesto Carnavalista e o coletivo Arrastão dos Blocos.

     

    Para Juliana Matheus, fundadora do bloco Filhas da Lua e integrante do Jegue Elétrico, “a escassez da participação feminina gerou diversos questionamentos no Fórum de Blocos e provocou uma articulação para que finalmente houvesse a criação de um grupo capaz de dialogar diretamente e de forma unificada com a Prefeitura e as secretarias envolvidas na construção do Carnaval 2020”.

    “A comissão já tem quatro Grupos de Trabalho organizados: Assédio, Comunicação, Redução de Danos e Segurança”, detalha Thais Haliski, do bloco Cerca Frango. “Entre as reivindicações da Comissão estão ações como a distribuição gratuita de água; atendimento médico e policial; conscientização sobre a lei Maria da Penha; policiamento feminino; vagões para mulheres nos trens e no Metrô nos dias de Carnaval; campanhas infantis para cuidados, participação e planejamento dos pais para o Carnaval; entre tantos outros assuntos de relevância”. Além de Juliana e Thais, o grupo conta, ainda com Clarice Sá (Cacá), da Bateria de Rua e Renata Guimarães, da Confraria do Pasmado, na “comissão de frente” do grupo, atualmente com 49 representantes de blocos de rua.

    A comissão destaca ainda que, o olhar feminino contribui para ampliar a perspectiva de quem produz o Carnaval, apontando novos elementos na luta pela construção de um ambiente mais inclusivo, seguro e acolhedor a todos, fortalecendo assim a democratização do processo de ocupação do espaço público.

    Segundo Ronaldo Bitello, membro da Comissão do Carnaval de Rua da Secretaria Municipal de Cultura, é fundamental que haja a participação das mulheres na gestão dos blocos. “Acredito que, independentemente de serem ou não diretoras de blocos, a formação dessa comissão permite trazer um olhar feminino para contribuir nas decisões, e especialmente agregando a política pública do setor”, comenta.

    Encontro do Fórum dos Blocos (out/2019)

    De acordo com José Cury Filho, do Bloco “Me Lembra Que Eu Vou”, a formação desta Comissão significa uma maior representatividade da sociedade civil e das próprias mulheres na organização direta do Carnaval de Rua, onde não existem mulheres por exemplo, ligadas à Prefeitura de São Paulo. Segundo ele, “as pautas têm questões amplas sobre as mulheres, trazidas pela própria comunidade feminina que vive diretamente destas ações, questões que vão além das próprias campanhas de cidadania, além dos seus direitos resguardados em leis, evitando o assédio, o constrangimento, o preconceito, devido nossa sociedade ainda possuir o machismo estrutural, principalmente durante este período”.

    O movimento já conquistou o reconhecimento e a legitimidade de suas ações junto à Secretaria de Cultura, Secretaria de Direitos Humanos e demais órgãos, incluindo a Polícia Militar do Estado, mesmo sabendo do difícil diálogo entre alguns setores públicos.

    Saiba mais sobre a Comissão Feminina do Carnaval de Rua em sua página no Facebook: https://www.facebook.com/CFCRSP/

    *Humberto Meratti é gestor cultural e ativista.

  • 200 mil mulheres e dissidências debatem realidade possível no 34º Encontro na Argentina

    200 mil mulheres e dissidências debatem realidade possível no 34º Encontro na Argentina

     

    Por Fernanda Paixão, do Coletivo Passarinho, em Buenos Aires

    Com fotos de Vivian Ribeiro e Nuria Alvarez

     

     

    O que não se nomeia, não existe.

    Essa máxima atravessou os debates do 34ª Encontro Nacional de Mulheres, evento anual em que se encontram mulheres e dissidências em uma cidade diferente da Argentina a cada edição. Cerca de 200 mil participantes conformaram o Encontro e habitaram a cidade de La Plata neste último fim de semana, durante os dias 12 a 14 de outubro. E se a questão da linguagem  e a importância de nomear como um ato político foi uma constante nesse Encontro, o desfecho desta 34ª edição pode ser considerado exitoso: a partir de agora, o grito uníssono é por um Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans, Travestis, Bissexuais e Não-Bináries.

     

    O que melhor caracteriza os encontros são a coletividade organizada e afetiva e a participação popular, tanto nas inúmeras atividades e marchas nas ruas e nas praças quanto nas dezenas de grupos de discussão nas universidades e escolas sobre temáticas que interpelam às diversidades. Não é à toa que conta, em grande parte, com cobertura colaborativa: o encontro massivo de mulheres e dissidências de diversas nacionalidades debatendo para construir perspectivas e repensar propostas políticas e combater o patriarcado capitalista heteronormativo parece não ser fato noticioso para as grandes mídias argentinas.

     

     

    Das divergências

     

    Apesar de ser organizado horizontalmente, há uma forte divisão na comissão organizadora entre as que querem manter o nome original, desde sua primeira edição, em 1986, e entre quem segue a campanha “Somos Plurinacional”, que defende a mudança oficial por um nome mais inclusivo e democrático. Dessa forma, estariam nomeadas, devidamente representadas e com suas existências reivindicadas xs migrantes, os povos originários e as dissidências sexuais.

     

    Portanto, um evento tão abrangente em seu conteúdo é permeado por embates partidários e posturas obsoletas que reproduzem as práticas patriarcais que são denunciadas pelas próprias diversidades que participam e compõem os encontros. As grandes divergências que geram os conflitos centrais do Encontro são derivados de uma lógica que a maioria que os conforma quer combater: o conservadorismo, o pensamento colonizador, a opressão do capitalismo e do patriarcado. Em diversos grupos de debate e nos discursos nas praças foi enfatizado categoricamente que o que não se nomeia, não existe. Nomear –ou escolher não nomear– é um ato político.

     

    A cada Encontro fica mais claro que as concepções de “mulher” e “nacional” ficaram no tempo, e não correspondem ao que se dá a cada ano. A comissão organizadora liberou comunicados que deixavam clara a divergência, fincando a bandeira do “Encontro Nacional de Mulheres” como um “nome histórico” referente ao evento. A campanha Somos Plurinacional defende, por sua vez, que a ideia de “nacional” exclui xs migrantes e povos originários e a palavra “mulher” reforça o binarismo patriarcal que não dá conta das diversidades que conformam o encontro. Ainda assim, há um segundo nível de debate, já que os povos originários não seguem a ideia de Estado e, portanto, não se veem unanimemente representados no termo “nação” e, por outro lado, as chamadas dissidências também rechaçam a invisibilização de sua autenticidade ao serem agrupados em um termo tão abrangente e que acaba se esvaziando.

     

     

    Xs silenciadxs tomam a palavra

     

    Muito ainda há que se debater. Nesse aspecto, o Encontro é um espaço extremamente fértil: foram 114 grupos de discussão com temáticas urgentes, essenciais para construir novas maneiras de pensar, de descolonizar os corpos e as mentes, de relacionar-se unxs com xs outrxs a partir de um lugar novo. Em 2019 deu-se o primeiro grupo temático sobre pessoas não-binárias que, como muitos outros, teve que de desdobrar em dois, três ou quatro salas. Nos encontros também é onde se percebe a demanda que existe por certos temas. Na abertura do segundo dia de discussão, x mediadorx abriu a sessão esclarecendo a importância da mudança oficial do nome do Encontro, porque “o que não se nomeia, não existe”, e que ficava determinado uso da linguagem inclusiva em todo o âmbito da discussão. “Se alguém errar, tudo bem, estamos em desconstrução. É só se corrigir e seguir”, pontuou.

     

    A palavra tem peso e um enorme valor nesse contexto de encontro. Todxs estão em desconstrução e em constante reflexão ao mesmo tempo que promovendo mudanças sociais, seja em um âmbito macro ou micro. A palavra é política, o pessoal é político. Os relatos pessoais compartilhados, gatilhos de lágrimas, sorrisos de cumplicidade e abraços de contenção e por identificação se unem aos questionamentos de falta de representatividade institucional, de amparo legal, de políticas públicas, de direitos sobre o próprio corpo e poder de decisão.

     

    No ato político de tomar a palavra e reivindicar existências, há um movimento de descolonização do pensamento também em relação às próprias formas de relacionar-se afetivamente. Os grupos de discussão desta temática se desdobraram em pelo menos seis grupos, em salas lotadas. Predominaram reflexões sobre formatos de relacionamento, sobre o próprio desejo, o autoconhecimento, sem as amarras e etiquetas sociais, vinculados à responsabilidade afetiva.

     

    Através da fala e da escuta, em um grande e coletivo processo de empatia e compartilhamento, se constroem sentidos e se geram novos pontos de vista. Em um depoimento emocionado no grupo de não-bináries, umx jovem profundamente tocadx por ter em volta a tantas outras pessoas com quem se podia identificar, enfatizou: “Só conheço a uma pessoa não-binária, e na minha cidade é muito difícil, são muito conservadores. Criem laços de confiança, se apoiem, conversem com essas pessoas. É muito importante.”

     

     

    Apesar dos desencontros

     

    Superando as censuras e os inúmeros problemas logísticos do evento  em La Plata, entre dias de chuva e frio, a atmosfera de encontro e coletividade encheu as ruas. Nesses dias de encontro, predomina a realidade de uma vida possível, as ruas repletas de cânticos no lugar do medo, com debates construtivos e a potente vontade de construir um mundo igualitário.

     

    No sábado, primeiro dia do 34º Encontro, a abertura dos grupos de discussão foi seguida de uma marcha contra os travesticídios, que já expressava a notável quantidade de participantes reunidxs para esta edição. Diversas atividades culturais fecharam a primeira noite e, no domingo, deu-se continuidade aos grupos de discussão para, depois, fechar as conclusões que seriam lidas no palco do Estádio Ciudad, no dia seguinte. A tarde de domingo foi reflexo do poder da coletividade, em rádios abertas, apresentações artísticas e assembleias nas praças, banhadas pela luz do sol inesperado em um fim de semana inteiro previsto com chuvas torrenciais.

     

    O Encontro foi, e continua sendo, um grande transformador da história do movimento feminista argentino há 34 anos, com poucas iniciativas comparáveis em outros territórios. Dele, nasceu a campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, de grandes proporções e visibilidade internacional – que quase culminou na aprovação da lei no ano passado, em 2018.

     

    O desfecho foi igualmente uma mistura de tensão e comemoração. Os portões abriram uma hora mais tarde, o que provocou um alvoroço de uma multidão correndo para ocupar o espaço de audiência do estádio. Os agrupamentos políticos levavam enormes bandeiras e lutavam por posicionar-se o mais próximo possível do palco. A confusão resultou em pessoas machucadas, algumas caíram com os empurrões, e, outra vez, um clima anti-sororidade contradisse o propósito do Encontro.

     

    Mas o ponto alto do conflito no evento de fechamento foi a tentativa de impedir o inevitável: o grito em uníssono pela mudança oficial do nome do evento. O público cantava em coro, enquanto integrantes da campanha Somos Plurinacional eram impedidas de falar a respeito no microfone do palco, dedicado, naquele momento, à leitura das conclusões de cada grupo de discussão.

     

    Ao passarem com dificuldade por uma barreira de algumas integrantes da comissão organizadora contrárias à mudança do nome, as jornalistas Claudia Vasquez Haro, professora e militante trans, e Zulema Enríquez, quechua  e também docente, anunciaram o caráter inclusivo do evento e a mudança do nome, apoiadas por uma multidão que não deixava de soar o cântico “plurinacional e com as dissidências”. Por aplausômetro, ficou decidido que o encontro era plurinacional e das dissidências, da mesma forma que assim se decidiu a próxima sede do Encontro: na província de San Luis.

     

    “Estamos muito felizes de poder abarcar todos os corpos que habitam esse espaço”, disse Claudia, em entrevista após o anúncio do novo nome. “Isso mostra que temos um feminismo potente, que reúne todas as diversidades, a pluriculturalidade e expressões de forma horizontal. Todas as particularidades que temos, de diferentes mulheres, feminidades e corpos dissidentes, faz o movimento feminista na Argentina ser o mais potente da região latino-americana e caribenha. Estamos felizes que essas questões foram discutidas em todos os grupos de debate, pelas redes sociais, na mídia, e que esse 34º Encontro termina sendo plurinacional.” No palco, Zulema enfatizou: “O feminismo não é mais branco e europeizado, os feminismos são favelados, indígenas, comunitários, trans e travestis, são afro, são do povo.”

     

    A mensagem final deste encontro pode ser lida como um chamado a seguir discutindo, questionando e transformando, até encontrar palavras que correspondam, para dar sentido e linguagem ao movimento das bases e dos pensamentos que, na prática, já está acontecendo. A linguagem é construção e um preciso reflexo da nossa expressão.

     

  • Vem aí a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas

    Vem aí a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas

    Via Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

     

    De 09 a 13 de agosto acontece, em Brasília, a Marcha das Mulheres Indígenas, que reunirá 2 mil mulheres dos mais diferentes povos, de todo o Brasil.

    Com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, o objetivo é dar visibilidade às ações das mulheres indígenas discutindo questões inerentes às suas diversas realidades, reconhecendo e fortalecendo os seus protagonismos e capacidades na defesa e na garantia dos direitos humanos, em especial o cuidado com a mãe terra, com o território, com o corpo e com o espírito.

    A realização do encontro foi deliberada durante a plenária das mulheres no ATL em abril de 2019. Desde então lideranças de todas as regiões do país iniciaram o processo de mobilização das mulheres e a captação de recursos para a realização do encontro.

    O encontro será realizado com recurso próprio das indígenas, apoio de organizações parceiras e com as doações arrecadadas nessa vakinha! Sua contribuição é fundamental para garantir a chegada das lideranças até Brasília e a realização do encontro.
    Você também pode colaborar doando milhas de viagens, mantimentos, cobertores e colchonetes para quem está em Brasília. A arrecadação será realizada pela APIB, mais informações em apibbsb@gmail.com

    #MarchaDasMulheresIndigenas #MulheresIndigenas