ALEXANDRE SANTOS DE MORAES, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense
O governo Bolsonaro é ambicioso na escolha de seus inimigos. Arriscaria dizer que é culpa da inocência, mas não posso negar a ignorância ou a absoluta falta de opção. Prova disso foi ter escolhido Paulo Freire como adversário. Os ataques são compreensíveis e coerentes, já que o Patrono da Educação Brasileira foi o perfeito oposto de tudo aquilo que eles são ou poderão ser: inteligente, trabalhador, humanista e mundialmente prestigiado. Não menos importante, Paulo Freire foi de esquerda e sempre defendeu a democracia. Essas duas variáveis não são acidentes do destino ou feliz coincidência pra quem luta contra o autoritarismo e a ganância, mas o alicerce de toda sua genialidade. Nesse 15 de outubro, dia das Professoras e Professores, é fundamental recordá-lo como homenagem e como símbolo de luta contra o atraso.
Ao longo de sua vida, Paulo Freire escreveu dezenas de livros e artigos. Trata-se do intelectual brasileiro mais lido e conhecido da história. Sua principal obra, a Pedagogia do Oprimido, é a terceira mais citada nas Ciências Humanas do mundo, superando clássicos como Vigiar e Punir, de Michel Foucault, e O Capital, de Karl Marx. A inteligência de Freire rendeu inúmeras homenagens e prêmios no Brasil, Europa, África e Estados Unidos: foram pelo menos 35 títulos de Doutor Honoris Causa ao longo de sua vida ou in memoriam. Foi filiado ao Partido dos Trabalhadores e atuou como Secretário de Educação de Luíza Erundina durante seu mandato na Prefeitura de São Paulo (1989-1991). Dedicou-se, sobretudo, à alfabetização, sempre atento à necessidade de ensinar a ler não só a língua, mas também o mundo. Além de refletir a respeito, Freire praticou a Educação, pois a prática é o critério da verdade.
A paranoia obscurantista que tenta a todo custo demonizar seu legado intelectual só pode ser explicada pelos seus próprios textos. Contra o ódio daqueles que defendem, por exemplo, o projeto Escola sem Partido, Paulo Freire responde que ensinar exige respeito à liberdade do ser do educando: “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. Contra a lógica cada vez mais perniciosa de uma educação técnica, voltada exclusivamente para a formação de mão de obra, Freire defendia uma pedagogia humanista, que ensinasse não apenas conteúdos, mas a pensar o lugar que cada um de nós ocupa no mundo: “Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo”.
Contra o que chamava de “educação bancária”, que sepulta a criatividade de educandos e educadores, Paulo Freire defendia a necessidade de manter vivo nos estudantes o gosto da rebeldia, que aguça a curiosidade e estimula a capacidade de se arriscar e se aventurar.
Outra grande lição de Paulo Freire, seguida por milhares de profissionais do magistério hoje homenageados, é que a Educação não é um processo unilateral, verticalizado, ao gosto daquilo que militares gostariam de ver em escolas militarizadas. Ensinar e aprender são anverso e reverso da mesma moeda: aprendemos enquanto ensinamos e ensinamos enquanto aprendemos. Os estudantes não são, na pedagogia de Freire, objetos passivos que devem se subordinar com disciplina aos professores e ao mundo. Mas, sobretudo, Freire sempre defendeu uma educação popular, emancipadora, que fosse capaz de libertar simultaneamente o oprimido e o opressor, capaz de recuperar a liberdade deles roubada e a humanidade que um mundo centrado na lógica da acumulação e na manutenção das desigualdades insiste em recusar. Por isso Paulo Freire foi de esquerda, como todos aqueles que prezam pela autonomia e que lutam contra as opressões.
Vê-se com clareza a inocente ambição de Bolsonaro e seus ministros da Educação. Em breve, eles passarão. O futuro lhes reserva apenas a nota de rodapé da História. Paulo Freire, por sua vez, continuará gigante, imenso, com o prestígio intocado, e todos os ataques que sofre serão apenas mais um dado que enobrece sua já extensa biografia. O mesmo vale para nós, professores e professoras que seguimos conscientes da necessidade de educar para a liberdade e democracia, contra tudo e contra todos, sempre amparados no imperativo ético que nos fez escolher e permanecer nessa profissão cada vez mais difícil.
Escola Municipal Oswaldo dos Reis, em Itapema, de onde professor foi demitido por discutir texto sobre tortura, classificado como crime hediondo e inafiançável. (Foto: Arquivo da Prefeitura de Itapema)
Era a Semana do 55° aniversário da Ditadura Militar brasileira. A quadra de Educação Física da Escola Municipal de Educação Básica Oswaldo dos Reis estava perigosa com as reformas inacabadas. O professor da disciplina, Willian Meister, se viu levado a desenvolver um conteúdo pedagógico em sala com os alunos do sétimo ano. Decidiu apresentar um texto poético sobre a ditadura para discussão dentro do projeto de incentivo à leitura que integra todas as disciplinas. O texto escolhido foi o do poeta paraibano Alex Polari, preso e torturado pelos militares aos 20 anos, suplício que inspirou um conjunto de poemas sobre os porões da ditadura. Polari tornou-se célebre também pelas cartas que escreveu à estilista Zuzu Angel, revelando-lhe ter testemunhado o assassinato, sob violenta tortura, do filho Stuart Angel Jones, desaparecido político que ela procurava obstinadamente há quatro anos. Na carta, Polari descreve os requintes de crueldade sofridos pelo jovem até o último suspiro, calvário de horror que ele conseguiu espiar por um buraco na parede do cárcere.
As cartas e poemas sobre a tortura na obra de Polari, hoje seguidor do Santo Daime, fazem parte indelével da literatura memorial sobre o Golpe de 64. Já foram inclusive objeto de encenação em especial da rede Globo sobre Zuzu Angel. Embora esses fatos sejam de amplo conhecimento público, a aula provocou a ira de um pai de aluno, o radialista e ex-militar do Exército, Marcelo Fidêncio, que compareceu ao gabinete da prefeita Nilza Simas (PSL) para prestar queixa contra o conteúdo da leitura. Foi o pretexto para Willian Diógenes Meister receber uma advertência por conduta inadequada da direção da escola pública, localizada no bairro Várzea, no município de Itapema, Litoral Norte de Santa Catarina. Na terça-feira, véspera do Dia do Trabalhador, quando deveria renovar o seu contrato como professor Admitido em Caráter Temporário (ACT), a secretária municipal de Educação, Alessandra Simas Ghiotto, irmã da prefeita e ambas aliadas do Governo Bolsonaro, comunicou-o da dispensa do posto que ocupava de forma intermitente desde 2012 através de concurso público. O último contrato se referia ao seletivo do final de 2017, quando ficou em segundo lugar na sua área para escolha de vagas nos dois anos seguintes.
Professor Willian Meister, ao lada da esposa, também professora: livros em vez de armas. (Foto: arquivo pessoal)
Em linguagem de ACT, não renovar o contrato significa demissão. Casado com a também professora Alessandra Silva, dois filhos e desempregado, o professor não pensou um momento sequer em se curvar à arbitrariedade. No mesmo dia, entrou com representação no Ministério Público de Santa Catarina – MPSC denunciando a direção da EMEB Oswaldo dos Reis e a Secretaria de Educação da prefeitura por improbidade administrativa, assédio moral e violação da liberdade de cátedra.
DESEMPREGADO NO PRIMEIRO DE MAIO
Formado em Educação Física e dedicado à pedagogia, Willian Meister declarou em entrevista aos Jornalistas Livres que o caso dos poemas sobre tortura, classificado como crime hediondo, foi o ápice de um longo processo de perseguição político-ideológica. Assessorado pelo advogado Luiz Fernando Ozawa, ele explica o teor do documento jurídico: “Nossa representação ao MP contra a minha demissão denuncia vários indícios de assédio moral, com farta documentação, ocorridos desde o início do ano, que levaram a gestão da escola a cometer crime de improbidade administrativa”, afirma ele, que atua como militante social nas áreas de direitos humanos, políticas públicas e meio ambiente, hoje não mais filiado a nenhum partido.
Marcelo Fidêncio, ex-militar do Exército que denunciou professor por abordar tema da tortura. (Foto do perfil do Facebook)
A representação argumenta que a demissão fere o princípio da legalidade porque está baseada em uma advertência irregular, amparada unicamente na queixa do pai contra a discussão de um texto sobre a ditadura. No dia 14/04 último, coincidentemente data do 43° assassinato de Zuzu Angel, a reprimenda foi formalizada pelo diretor da escola sem direito à defesa, como pressupõe a lei, segundo afirma o professor: “Não fui ouvido, ninguém mais foi ouvido, não houve direito ao contraditório”, afirma, lembrando que os textos foram contextualizados e discutidos com os alunos para que levassem a uma compreensão histórica do período da ditadura. Acusado pelo pai de ministrar um conteúdo inapropriado para a disciplina, afirmou que o incentivo à leitura está previsto no projeto pedagógico interdisciplinar da escola.
O advogado alega também quebra do princípio da impessoalidade, sustentado no fato de que a dispensa se caracteriza como punição a adversário político. Explica-se: em 2012, Willian Meister se candidatou a prefeito de Itapema pelo PSoL e, novamente em 2016, quando fez oposição à chapa vencedora do PSD, encabeçada por Nílza Simas. Eleita, a prefeita nomeou sua irmã Alessandra, também do PSD, ao cargo de secretária municipal de Educação e ambas se engajaram na campanha pela eleição de Bolsonaro (PSL), alinhadas com o diretor da escola, Emílio César da Silva (também presidente do Conselho Municipal de Educação de Itapema).
Dois dias antes de receber a advertência, Meister soube pelo diretor que havia uma denúncia anônima de um pai “youtuber” à prefeita Nilza Simas por questões político-partidárias. Por conta disso, a secretária de Educação, irmã da prefeita, solicitou ao diretor e à supervisora que gerassem um relatório para apresentar ao “pai-denunciante”, mas não houve consulta ao denunciado. Desde a sua chegada à escola, em 2018, começaram os desentendimentos com Emílio que, segundo a representação, começou a deixar claro que a sua presença era indesejável na instituição. “No início, com divergências de ideias, metodologias e práticas, em discussões dentro dos limites do processo educacional. Porém, a partir do início do ano letivo de 2019, o diretor passou a intensificar suas ações no sentido de expulsar Meister de ‘sua’ escola, usando da burocracia para constranger o professor, seus alunos e suas práticas de ensino”.
O professor demitido garante que não vai se submeter à sanção sem recorrer à justiça porque tem muito respeito e afeto pelos alunos e pela instituição, tanto é que escolheu a mesma escola onde trabalhou no período da seleção anterior, em 2016. “Quero levantar a cabeça e retornar à sala de aula. Acho importante passar essa mensagem à comunidade escolar de que o poder político cometeu excessos contra o professor, mas isso depende da interpretação do judiciário. Vou aguardar confiante”. Ainda que o tema seja forte, considera necessário conscientizar adolescentes e jovens sobre a tortura como crime contra a humanidade, considerado hediondo, inafiançável, imprescritível e não suscetível à anistia pelo Art. 5º, inciso XLIII da Constituição Federal.
ESCOLA SEM TORTURA
Governada por um militar reformado, o comandante Carlos Moisés, Santa Catarina tem sido cenário de assédios constantes de partidários do Projeto Escola Sem Partido a escolas e professores, como ressalta também a representação ao MP/SC. Deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL), que se declara antifeminista e uma das baluartes desse projeto, embora sua inconstitucionalidade já tenha sido atestada pelo STF por violar a liberdade de ensino, estabeleceu sua base na região do Litoral Norte, à qual pertence o município de Itapema.
Foto de Otávio Magalhães (O Globo), que comprova o assassinato de Zuzu Angel pelo coronel Perdigão (de branco, encostado no poste)
Há 43 anos, fortemente impactada pela carta do poeta Alex Polari, Zuzu Angel deslanchou sua campanha nacional e internacional contra as atrocidades da ditadura militar e o assassinato do seu filho, cujo corpo nunca foi devolvido pelos militares. Só se calou ao morrer no dia 14 de abril de 1976, num sinistro acidente na Estrada da Gávea (Rio de Janeiro), na saída do túnel que hoje leva seu nome. O acidente é atribuído a uma sabotagem criminosa no seu Karmann Ghia executada pelo coronel do Exército Freddie Perdigão, identificado como torturador por vários presos políticos no governo Geisel. Além de vários outros indícios, ele foi flagrado numa foto jornalística ao lado do carro capotado, revelada somente em 2014, pelo ex-agente de repressão Cláudio Guerra.
Em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade, o advogado José Bezerra da Silva, outra testemunha da morte de Stuart, relatou que assistiu, no dia 14 de junho de 1971, à sessão de suplício final em que o jovem foi amarrado pela boca ao cano de descarga do jipe de um oficial militar e arrastado. Bezerra, que era soldado da Aeronáutica na época, reclamou da covardia e em resposta foi levado para a guarda e torturado. Por conta do espancamento, sofreu uma hemorragia no tórax e passou por uma cirurgia e ainda em recuperação foi arrancado da cama pelo tenente, seu chefe, para nova sessão de tortura. Parece que a prática de eliminar do cenário mães, poetas, militantes, jornalistas, professores e até militares que insistem em dar o testemunho das crueldades indecorosas do regime autoritário às futuras gerações voltou à cena nessa marcha-ré da história brasileira.
Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)
Por Alex Polari
Poesia de Alex Polari denuncia a própria tortura e a de outros jovens nos porões da ditadura. (Foto: Socialista Morena)
Eles costuraram tua boca com o silêncio e trespassaram teu corpo com uma corrente. Eles te arrastaram em um carro e te encheram de gases, eles cobriram teus gritos com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora e os gemidos tinham a cadência dos passos dos sentinelas no pátio. Nele, os sentimentos não tinham eco nele, as baionetas eram de aço nele, os sentimentos e as baionetas se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir se descobre ali, naquela sala. Um sentido totalmente diferente de morrer se morre ali, naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios e ligaram nosso destino à mesma eletricidade. Igualmente vimos nossos rostos invertidos e eu testemunhei quando levaram teu corpo envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta houve a chuva que não molhou a noite que não era escura o tempo que não era tempo o amor que não era mais amor a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas, meus cabelos foram se embranquecendo e os dias foram se passando.
Abaixo, cenas do especial da Globo sobre Zuzu Angel, no qual sua filha, Hildegard, fala do impacto da mãe ao receber a carta de Alex Polari, em maio de 1975, dando detalhes sobre a tortura e a morte de seu filho Stuart:
O professor Willian Meister, de Itapema, apresentou ontem no MP uma denúncia de perseguição político-ideológica praticada, segundo ele, pela direção da escola onde trabalhava e pela secretária de Educação da prefeitura de Itapema. Na terça-feira, Willian não teve o contrato de trabalho temporário renovado porque, segundo a secretaria, aplicou conteúdos inadequados. O professor havia lido com os alunos um texto-poema sobre tortura na ditadura militar.
Willian dava aulas de educação Física na escola Básica Municipal Oswaldo Reis, na Várzea. Há cerca de 10 dias, como estava chovendo, a quadra estava em reforma e a última aula integrava um projeto de incentivo à leitura dos alunos, ele apresentou a uma turma da sétima série a coletânea de textos “A Tortura na Poesia de Alex Polari”.
O poeta paraibano Alex Polari foi um dos muitos presos políticos do Brasil e foi quem, por exemplo, alertou a socialite e estilista Zuzu Angel que o filho Stuart havia sido preso, torturado e assassinado pela ditadura. Zuzu, na busca pelo filho, também foi assassinada pela ditadura. O professor diz que recebeu uma advertência sobre isso, mas sequer lhe apontaram detalhes de uma suposta denúncia de pai e que não teve direito à defesa.
A Secretaria de Educação confirmou que a não renovação do contrato de trabalho de Willian tem a ver com o caso. “As denúncias foram realizadas por pais dos alunos referentes a prática e conteúdos abordados que não estavam de acordo com o planejamento pedagógico da disciplina de educação física”, informou a nota.
Na representação contra a prefeitura e a direção da escola, Willian pede à promotoria que saia em defesa ao chamado direito de cátedra, que permite ao professor conduzir as aulas sob seu ponto de vista. Também pede a abertura de um inquérito civil para apurar crime de improbidade administrativa. “Esses ataques à educação, à liberdade de cátedra e à atuação do professor não são normais e não podem ser aceitos dentro de um estado democrático de direito”, argumenta.
A coletânea de texto de Alex Polari, usada pelo professor, pode ser lida no link: encurtador.com.br/vKQY3
Pai que denunciou professor é ex-militar
O trabalho em sala de aula despertou a ira do ex-militar Marcelo Fidêncio, pai de um aluno de 12 anos. Foi ele quem, por duas vezes, procurou a escola e a secretaria de Educação para reclamar do professor.
Marcelo sabe do programa de incentivo à leitura. Mas não concorda com o conteúdo do texto apresentado por Willian. “O texto dizia palavrões, que as crianças que ficavam enfileiradas para cantar o hino nacional eram retardadas e endemonhados”, diz o pai, que também não gostou do fato do professor ter citado que um prefeito de Balneário Camboriú (Higino Pio) chegou a ser torturado pela ditadura.
“Ele é professor de educação e poderia ter dado texto sobre o Pelé ou sobre qualquer coisa”, entende o pai, que ainda acusa o professor de ter feito uma pressão generalizada nos alunos quando descobriu a denúncia e mesmo sem saber quem era o autor o chamou de “covarde” em sala de aula.
A deputada eleita em Santa Catarina, Ana Campagnolo (foto), que ficou conhecida nas redes sociais ao criar um “disque denúncias” contra professores, pede que alunos filmem aulas de ‘professores e doutrinadores’ para denunciar discursos ‘político-partidários ou ideológicos’.
Em recente decisão, a desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Maria do Rocio Luz Santa Rita, suspendeu o julgamento de primeira instância, que proibia a prática e havia determinado que Campagnolo retirasse as publicações que versavam sobre o assunto de suas redes sociais.
No voto, a magistrada afirmou que a deputada é uma ouvidora social” em defesa de alunos “vítimas de abusos ou excessos em sala de aula”. Além disso, ela afirma que não há irregularidade na gravação de aulas, muito embora o uso de celular seja proibido nas salas do estado.
O movimento ideológico “Escola Sem Partido” avança e, com ele, um verdadeiro esgoto de pensamentos obscuros tem vindo à tona: refutação da teoria da evolução, por quem defende o criacionismo (origem da humanidade através de Adão e Eva), afirmações de que o planeta é plano e que vacina faz mal, ou que a Pepsi Cola é adoçada com células humanas de fetos abortados.
Junta-se esse estranho “caldo putrefato” aos escândalos envolvendo Flávio Bolsonaro, seu ex assessor (descoberto pelo COAF por movimentar mais de sete milhões de reais nos últimos cinco anos) e o possível envolvimento com as milícias do Rio, e não precisa pensar muito para compreender os motivos que levaram o Deputado Federal e ativista dos direitos LGBTI, Jean Wyllys, a desistir do mandato e abandonar o país: o ovo da serpente chocou!! Mas Marielli segue viva e combatendo, não podemos desistir, jamais.
Veja um dos vídeos do canal de Ana para entender melhor:
– Yll? Você já se perguntou…. bem, se alguém viverá no terceiro planeta?
– No terceiro planeta não pode haver vida – pacientemente explicou o Sr. K – nossos cientistas descobriram que há muito oxigênio em sua atmosfera
Ray Bradbury. Crônicas marcianas
Quando falamos de esquerda e direita, testemunhamos uma história semelhante à do livro de ficção científica Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle: um território áspero, onde muitos discursos e práticas sobreviveram a seus criadores, mas sua ressignificação e sua defesa acabaram jogando a favor dos lados antagônicos. Tendo a confusão como regra, esta sociedade de macacos construiu seu mundo com base na fadiga do pensamento crítico e na substituição deste por uma fé cega no “progresso” que as classes dominantes pregavam, assim invisibilizando as formas e as maneiras que permitiram a germinação e a reprodução de dominações e explorações em sua sociedade.
Pensar as direitas em nossa região latino-americana e caribenha nos sugere compreender os tempos políticos para além das situações eleitorais, que são espaços confusos e distorcidos, onde se jogam dinâmicas de “marketing político” e falsas polarizações que colocam feminismos como Feminazis, ou que confrontam os trabalhadores entre si, evitando a abordagem crítica dos processos que estruturam nossas sociedades, que são os acordos das elites.
No momento em que são escritas estas linhas, vivemos processos, na América Latina e no Caribe, de reconfiguração da correlação de forças em distintos níveis, que não conseguem encontrar sua interpretação na mera disputa eleitoral. O resultado é que a disputa eleitoral torna-se muito rasa, impossibilitando aprofundar as latências que permitiriam entender o surgimento das posições e dos sujeitos que configuram as opções de disputa em espaços culturais, políticos, econômicos e sociais.
Democracias em alta-tensão
Assim, podemos identificar uma primeira contribuição desta exploração: compreender que as direitas são propostas de sociedade e que os seus temas transcendem espaços eleitorais, de modo que as conformações das direitas também estendem seus territórios a espaços não-partidários e não-eleitorais (empresas, fundações etc.). Por esta razão, é necessário aprofundar a compreensão e análise das direitas em longos períodos de constituição, para mostrar suas relações e suas disputas com os contextos do sistema capitalista.
Testemunhamos uma transição que questiona as formas e os modos de democracia representativa, onde a confusão de significados e sequestro dos sentidos são espaços em tensão que disputam diversos sujeitos individuais e coletivos. Em nossa sociedade, palavras como paz, trabalho ou família, encontram, nas discussões das mais diversas naturezas, uma variedade de significados e de sentidos contraditórios, que vão desde uma posição progressista até converter-se em um argumento conservador.
Esta situação levou a uma constante polarização no interior das nossas sociedades, enriquecida por uma simplicidade que proporciona uma visão dicotômica em benefício das latências dominantes enraizadas, desse modo a hegemonia encontra os caminhos para consolidar o seu projeto em torno das elites da democracia de baixa intensidade.
Assistimos uma era política dominada pelo processo eleitoral, que reduz a maioria das estratégias e posições para meros discursos e práticas eleitorais. Esta tendência corroeu seriamente nossas ligações entre sujeitos, até chegar a simplificar nossas relações político-culturais para meras ações e encontros instrumentalizados, comícios ou conversas, sem processos pedagógicos ou problematização de nossas realidades.
Seguindo este cenário, podemos ver a preeminência de marketing político em nossas ações, ou seja, o domínio da forma como mensagem, despolitizando-se seu conteúdo e respondendo a um conteúdo meramente estético, através de estereótipos dominantes para buscar uma falsa simpatia e empatia de setores da sociedade.
Mas, enquanto essas duas tendências se acomodam em alguns espaços, muitos setores não tradicionais de política, como igrejas neopentecostais, entre outros grupos de fundamentalismo religioso, também conseguiram posicionar-se com um maior fortalecimento do conservadorismo. Podemos caracterizá-los com dois elementos desde onde é composta sua posição, uma pseudo-lei natural e uma moral inerente ao ser humano, este é o processo que podemos encontrar através da articulação que surgiu como movimento contra a “ideologia de gênero”.
Direita: Quais territórios e articulações lhe dão forma?
Uma vez neste ponto, é importante problematizar uma questão, ante o domínio da democracia representativa e sua carga eleitoral, as direitas são apresentadas como atores em disputa, mas diante do exposto, as direitas não são atores per se, mas concebem propostas de sociedades, é assim que podemos caracterizar algumas continuidades (capitalismo, patriarcalismo e colonialismo) que se manifestam nesses projetos:
• a primazia do individualismo que encontra três espaços onde sua presença e prática são evidentes; a raiz do consumismo que reduz o indivíduo a consumidor, o aumento do personalismo como forma de gestão política ou a marca como elemento distintivo em política, anulando assim as formas e os modos coletivos dialógicos.
• totalização do mercado, e ligada a esta mudança causada pelo capitalismo, vemos todos os dias os direitos adquiridos assistirem a uma metamorfose que os converte em serviços disponíveis para clientes, despolitizando sua gestão. É assim que o esvaziamento da política na democracia representativa e o cancelamento da incidência da maioria na gestão encontram seu lugar na centralidade da tecnocracia, despolitização da administração nas mãos dos peritos.
• sintomaticamente descobrimos que a concentração e o controle dos meios de comunicação tem sido uma constante que tem proporcionado o posicionamento ideológico das elites e seu projeto dominante, combatendo as dissidências e construindo seus sentidos, mas também criminalizando e apropriando-se da narrativa, onde a judicialização da política é a amostra mais sutil na consolidação de sentidos e narrativas dominantes.
Contudo, nos últimos 30 anos, temos visto como a cooptação e ressignificação de práticas pela direita conseguiram posicionar formas e modos que têm disputado nossas sociedades, gerando algumas adaptações:
• o surgimento de um assistencialismo social focado na financeirização da política, uma forma de se transformar as articulações em meras transferências bancárias, permite a despolitização do diálogo como espaços de construção democrática, alienando contradições sociais da pobreza, por exemplo.
• a preeminência de um discurso pós-ideológico que busca ignorar as relações socioculturais, econômicas e políticas como produtores de sentidos, e reduzir tudo a leis pseudo-naturais de matriz social darwiniana como referência, um exemplo disso é a propagação de posicionamentos relacionados à “Escola Sem Partido”.
• o surgimento de um CEOcracia, a administração do público sob a dinâmica empresarial, como a forma que a “gestão” converte a política em gerenciamento de resultados e, uma vez mais, despolitiza os espaços.
• O surgimento de tendências fundamentalistas religiosas neopentecostais causou uma emergência de atores com influência eleitoral dos postulados da teologia da prosperidade, que tem impactado a relação entre fé e política centrada na ideia do chamado divino de governar o reino por cristãos e a luta contra o mal que corrompe a sociedade (direitos sexuais e reprodutivos, diversidade sexual, por exemplo), a disputa tem gerado uma agenda religiosa sobre assuntos não-religiosos, alcançando uma posição moral conservadora.
• judicialização da política: se argumentamos que cada vez mais o espaço político é apequenado, é identificável como a “justiça” assume um papel de mediador do que era política, mas assistimos como se tornou um instrumento de controle, por parte das elites dominantes, onde os andaimes existentes respondem mais à lógica da reprodução, e, portanto, o fenômeno da ideologia corrupção: é a capacidade narrativa de vincular processos de ações ilegais como sinais de tendência política.
Esta descrição nos leva a pensar que pouco mudou e que estas sociedades que testemunham supostas mudanças de época, estão enfrentando o que nunca perdeu lugar na acumulação por espoliação: o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.
As continuidades e adaptações que descrevemos, não só nos posicionam perante a necessidade de compreender os ciclos de acumulação, senão também de luta e resistência que têm permitido contestar a hegemonia de certos sentidos e práticas, colocando em evidência as rupturas do tecido social como o crescimento da xenofobia, do racismo, da violência contra as mulheres e à diversidade sexual, mas também os processos de concentração de riqueza em poucas mãos.
É necessário disputar a partir de diferentes territórios corpos, uma vez que tentamos mostrar que as direitas não são apenas partidos políticos a derrotar: são projetos de dominação e exploração que ampliam suas formas e modos através de nossas sociedades, organizações, coletivos, que constroem sentidos e práticas em benefício da desapropriação dos bens comuns e da acumulação concentrada de capital.
A abertura e integração das direitas em nossas sociedades e sua participação nos processos democráticos formais nos levam a questionar os elementos que são disputados na construção dos sentidos e práticas, que não passam necessariamente de forma protagônica pelas instituições e pelos processos formais, mas correspondem a latências que estão “por baixo” em constante disputa e reposicionamento.
O planeta dos macacos é uma metáfora para uma sociedade que tecia sua existência através da história dominante: a segurança do mito, a totalização do inimigo como aquele outro ente estranho, alienígena e dominado que não pode nos contaminar, e o poder da disciplina. Isso nos chama a refletir sobre as propostas de sociedades que vivemos e sentimos, mas também aquelas que tentamos construir, especialmente quando elas trazem as histórias imaculadas, mas as práticas gestantes de continuidade.
* Luís Andrés Sanabria Zaniboni é assistente do centro de Estudios y Publicaciones Alforja
** Tradução por César Locatelli. Revisão por Lucila Longo
Se não fosse a ação ideológica de boa parte do judiciário brasileiro criminalizando a atividade política e perseguindo de forma ilegal e/ou sem provas militantes e parlamentares de partidos mais à esquerda, não teríamos tido o golpe de estado e nem eleito presidente, senador e deputados, sujeitos tão toscos, truculentos e corruptos como a #Bolsofamiglia. A porção mais visível e atuante dessa parcela do judiciário, além do juiz de Curitiba e dos asseclas que convocou para o governo, talvez seja o recém-criado grupo que se intitula Ministério Público Pró-Sociedade. A entidade surgiu no congresso de mesmo nome realizado em Brasília no final de novembro. Logo depois, eles lançaram o que dizem ser um “manifesto” com os princípios e propostas de atuação do grupo. Em texto divulgado em suas redes sociais, o professor e mestre em Filosofia e em Línguas Neolatinas Roberto Ponciano, desconstrói o tal “manifesto” falácia por falácia. Veja a seguir a análise de Ponciano e, ao final, um link para o texto completo do MP Pró-Sociedade
Capa do livro de Roberto Ponciano resultante de sua dissertação de mestrado em Filosofia
Soube, estupefato, do lançamento de uma organização do Ministério Público, Federal e estaduais.
Sim, estupefato, porque primeiro o Ministério Público, que devia ser o fiscal da lei, está organizando-se partidariamente a favor da “escola sem partido”. E digo partidariamente porque todo este manifesto é fascista.
A sociedade civil não pode assistir calada à degeneração do Ministério Público, aceitar que o Ministério Público vire uma corporação fascista dentro do Estado, com atribuições que não lhe pertencem e com manifesto político de ultra-direita assinado pelos seus membros.
É bom lembrar que, tanto no caso do fascismo italiano, como no caso do nazismo alemão, o Poder Judiciário foi garantidor do Estado fascista. Ao contrário das revoluções, nos quais o Estado é destruído e refeito de fora para dentro, no fascismo e no nazismo, as corporações de ultra-direita comem o Estado de dentro para fora, normalizando e normatizando leis de exceção como se isto fosse norma do Estado. Assim, o Ministério Público, em lugar de vigiar os direitos difusos e as garantias legais, as liberdades democráticas e os direitos humanos, se torna chicote do Estado de Exceção e parte integrante da máquina de tortura física e psicológica do Estado. Assustador ver membros do Ministério Público assumirem isto publicamente e publicarem manifesto anunciando que farão parte de um novo DOPS, cujo objetivo será perseguir professores, servidores públicos e até a atividade artística!
O tal manifesto é obra de ignorantes, de uma burrice que ficará guardada e documentada para as gerações futuras, como prova da vergonha de quem o fez e assinou. Demonstra que, a contrário senso do que se pensa, os concursos que restringem às provas a normas de Direito, podem aprovar pessoas muito toscas, com nível cultural muito baixo, que demonstram rancor e ressentimento e tomam como tarefa vigiar e punir a atividade cultural e artístico. Uma das características do nazi-fascismo é a perseguição e a demonização do adversário político. Não há alternativa a não ser comer toda a maçã depois de mordê-la, então, vou discutir o manifesto, cada pedaço e demonstrar como ele é um manifesto de um lado tosco e burro, de outro lado fascista e ilegal, já que pretende que o MP seja artífice do Estado de Exceção e não fiscal do Estado Democrático de Direito.
Vamos ao tosco manifesto:
O texto já começa com uma inútil frase em latim. É um texto caracteristicamente fascista de perseguição, vigília e morte à inteligência. Que aliás, é consigna fascista desde a Guerra Civil Espanhola. Começa com a antropomorfização da sociedade, que vira um ente a ser defendido, por um outro ente, o MP. E confunde agente político, função constitucional do MP, com entidade de transformação social, que tem que ver com a sociedade civil (este um conceito sociológico e não esta tosca antropoformização buscada no texto pelos ignorantes que o escreveram), que esta sim, através dos agentes de transformação social, ou seja, o movimento social organizado, busca a transformação da sociedade.
O texto que tenta fazer este salto do MP, agente político com atividades restritas e determinadas pela CF, e transformá-lo num sujeito coletivo de disputa social (o que seria uma aberração), cai em contradição logo adiante. Ao arrogar-se como entidade de vigília da sociedade, o MP teria que entrar na disputa da sociedade civil (o que o parágrafo nega), para logo em seguida, num salto mortal ilusionista, voltar a esta disputa, como espécie de poder moderador e vigilante da sociedade partindo de “princípios naturais”. E aí se mostra a torpeza, a burrice, a falta de cultura de quem escreveu o texto.
O MP que será doravante “vigia da sociedade” nega qualquer ideologia e arremata com a “citação de uma frase”, uma ilação, dizendo que o capitalismo e o conservadorismo são fatos naturais”, e que nem o conservadorismo nem o capitalismo são “ideológicos”, e que assim, seriam defensores de coisas belas. A frase que chama o capitalismo e o conservadorismo de “naturais, belos e não ideológicos” é a demonstração cabal da ignorância de quem escreveu este texto. Primeiro porque não sabem o que é ideologia. Efetivamente nunca discutiram um sistema filosófico. Não sabem qual e a relação entre o ser e a coisa em si. Não sabem que efetivamente o mundo, para o homem, seja ele de esquerda ou de direita é sempre uma representação (Schopenhauer por exemplo, ou Kant), então tudo que se diz do mundo é ideologia. Como diria Marx, parafraseando Hegel, a ideologia é sempre uma visão invertida do mundo. Qualquer ideologia, porque a coincidência entre o ser e o fenômeno seria o fim da história. Anti-históricos, não filosóficos, ignorantes de tudo, constroem uma frase sem sentido e acham que fizeram um manifesto.
Conservadorismo de per si precisa ser definido. Que tipo de conservadorismo? Chega-se até à homofobia? Conservar o que? O que há de belo para ser conservado? E o capitalismo é “um fato concreto”. Como fato concreto? Não é um processo histórico? De que capitalismo eles falam? Do que nasceu sobre os escombros da sociedade feudal? Nada foi mais revolucionário do que o capitalismo. E de que tipo de capitalismo eles falam? O da Suécia, Finlândia e Noruega do Wellfare State? O dos Estados Unidos? Ou o do Haiti e da Nigéria? Falar de coisas históricas como “naturais é demonstração crasse de ignorância”. Mas o festival de horrores continua.
“No mesmo sentido, também não é ideologia a Globalização: ela é um processo natural que derivou da revolução das comunicações, informática, dos transportes, e da tecnologia em geral. Não se confunde com o Globalismo e a confusão que vem sendo feita entre eles nos parece proposital e com intenções questionáveis.”
O padrão baixo de pensamento do manifesto é integral. De uma linha a outra é um show de ignorância. Contraditar “globalização a globalismo” parece que explica algo, mas é apenas uma tautologia. Globalização é um processo histórico, contraditório e que efetivamente não se refere somente a uma revolução na área tecnológica e de comunicações, e que tem resistência dos povos e das populações afetadas por elas. Mas porque o manifesto é um conjunto de frases feitas e sem sentido?
É proposital, porque efetivamente tentam “decifrar” em uma frase um conceito que está em disputa, falar em “globalismo” sem definir nada, é uma forma de sustentar a tautologia sem ter que explicar que, no fundo, o que defendem é a recolonização do Brasil, por exemplo, a proliferação da monocultura extensiva transgênica e que envenena nosso povo e mata nossas plantas nativas, ao mesmo tempo que são contra qualquer progresso em costumes. Discutir gênero, para eles, seria “globalismo”, e eles irão combater, já a Monsanto e a Bayer construírem monopólio sobre a nossa agricultura, seria a globalização inevitável. Nesta burrice propositada há um ato político. Calar onde deveriam agir e agir onde não é prerrogativa do MP. Mas o show de horrores continua.
“Ideologias são aquelas que, em suas nuances, com base em idéias sem fulcro firme na realidade, portanto necessariamente distorcidas, buscam impor por formas variadas – sangue, destruição da cultura, da religião, da moral, do Direito, e outras – revolução que destrua o passado para refazer o presente a partir de experiências de engenharia social cujas cobaias são os indivíduos. É ideologia, também, o Globalismo, um movimento que visa a submeter soberanias nacionais a um poder central, seja regional ou mundial, de burocratas não eleitos pelo povo, isto é, que relativiza soberanias, tornando-as, no máximo, uma relativa autonomia: o que suprime, na prática, as culturas e, com elas: as Liberdades.”
O trecho acima seria reprovado em qualquer redação do ENEM. Falta coesão, coerência, lógica. É um texto sem sentido, primeiro porque não define o que seja ideologia. Um conjunto de adjetivos sem sentido tenta ocultar a ignorância de quem escreveu (e, por tabela) de quem assinou o texto. Depois de não definir o que seja ideologia e tentar demonizar qualquer ideologia (ideologia é toda superestrutura de narrativa, todo conjunto acabado e sistemático de ideias, ou seja, cristianismo é ideologia, conservadorismo é ideologia, platonismo é ideologia, marxismo é ideologia, liberalismo é ideologia), num outro incrível salto mortal se abre uma “definição” (a parto de fórceps) que não define nada. Tenta dizer que ideologia seria algo que tenta destruir o passado. Bem, para quem já tentou passar a ideia de que o capitalismo é natural, quando o capitalismo foi a ideologia, ou o conjunto de ideologias mais destrutivo da história na própria definição de Marx em “Manifesto do Partido Comunista”: A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revolucionário.
Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu impiedosamente os variegados laços feudais que atavam o homem ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre os seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insensível “pagamento à vista”. Ela afogou os arrepios sagrados do arroubo religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da plangência do filisteísmo burguês, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Ela dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas em documento ou valorosamente conquistadas, colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio.
A burguesia, em uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada por ilusões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada, direta, seca.
A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas as atividades até então veneráveis, contempladas com piedoso recato. Ela transformou o médico, o jurista, o clérigo, o poeta, o homem das ciências, em trabalhadores assalariados, pagos por ela. A burguesia arrancou às relações familiares o seu comovente véu sentimental e as reduziu a pura relação monetária.
A burguesia revelou como o dispêndio brutal de forças, que a reação tanto admira na Idade Média, encontrava a seu complemento adequado na mais indolente ociosidade. Apenas ela deu provas daquilo que a atividade dos homens é capaz de levar a cabo. Ela realizou obras miraculosas inteiramente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, ela executou deslocamentos inteiramente diferentes das Migrações dos Povos e das Cruzadas.
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios.
A necessidade de um mercado cada vez mais expansivo para seus produtos impele a burguesia por todo o globo terrestre. Ela tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte, construir vínculos por toda parte.
Através da exploração do mercado mundial, a burguesia configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, ela subtraiu à indústria o solo nacional em que tinha os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam sendo aniquiladas diariamente. São sufocadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que não mais processam matérias-primas nativas, mas sim matérias-primas próprias das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não apenas no próprio país, mas simultaneamente em todas as partes do mundo. No lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades, que requerem para a sua satisfação os produtos dos mais distantes países e climas. No lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surge um intercâmbio em todas as direções, uma interdependência múltipla das nações. E o que se dá com a produção material, dá-se também com a produção intelectual. Os produtos intelectuais das nações isoladas tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais vai se formando uma literatura universal2.
Através do rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, através das comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para dentro da civilização. Os módicos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela põe abaixo todas as muralhas da China, com que ela constrange à capitulação mesmo a mais obstinada xenofobia dos bárbaros. Ela obriga todas as nações que não queiram desmoronar a apropriar-se do modo de produção da burguesia; ela as obriga a introduzir em seu próprio meio a assim chamada civilização, isto é, a tornarem-se burguesas. Em uma palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.
A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Ela criou cidades enormes, aumentou o número da população urbana, em face da rural, em alta escala e, assim, arrancou do idiotismo3 da vida rural uma parcela significativa da população. Da mesma forma como torna o campo dependente da cidade, ela torna os países bárbaros e semibárbaros dependentes dos civilizados, os povos agrários dependentes dos povos burgueses, o Oriente dependente do Ocidente.
A burguesia vem abolindo cada vez mais a fragmentação dos meios de produção, da posse e da população. Ela aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. Consequência necessária disso tudo foi a centralização política. Províncias independentes, quase que tão-somente aliadas, com interesses, leis, governos e sistemas aduaneiros diversificados, foram aglutinadas em uma nação, um governo, um interesse nacional de classe, uma fronteira aduaneira.
Em seu domínio de classe que mal chega a um século, a burguesia criou forças produtivas em massa, mais colossais do que todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de continentes inteiros, canalização dos rios para a navegação, populações inteiras como que brotando do chão – que século passado poderia supor que tamanhas forças produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social!
Nós vimos portanto: os meios de produção e de circulação, sobre cujas bases a burguesia se formou, foram gerados na sociedade feudal. Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de circulação, as relações nas quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em uma palavra, as relações feudais de propriedade, não correspondiam mais às forças produtivas já desenvolvidas. Elas tolhiam a produção, em vez de fomentá-la. Transformavam-se assim em outros tantos grilhões. Precisavam ser explodidas, foram explodidas.Em seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição social e política que lhe era adequada, com o domínio econômico e político da classe burguesa.
Querer que um dos signatários do manifesto ou quem escreveu o triste e tosco texto tenha lido algo de Marx é demais. Como é um manifesto pró ignorância, pretendem preliminarmente refutar o que não conhecem. Não leem nada, não conhecem nada, debatem o que nunca leram, tentam evitar o que não sabem o que é. Talvez queiram revogar até a lei da gravidade e ensinar o criacionismo em lugar da teoria da evolução. É a burrice disfarçada de erudição em direito. E o pior, numa tentativa esdrúxula e indisfarçada de, a partir de um texto tão tosco, de elogio à ignorância, justificar a censura em escolas, universidade e até na arte. A definição de arte como “belo” é algo pueril e infantil, arte é um conceito em transformação e em disputa, na verdade a arte é sempre transgressora ou subversiva, seja nos Estados Unidos ou na extinta União Soviética, até porque é impossível resumir ou restringir o tempo e a subjetividade poética, ou dar cânones definitivos a artistas sempre revolucionário ou antissistêmicos (sejam artistas de esquerda ou direita) como Wilde, Baudalaire, Maiakovsky, Nélson Rodrigues, Cervantes. O que os liga? O que os une? O que faz cada arte ser sublime e transcedental em seu tempo? Com certeza não um conceito pueril de “belo”. Estes signatários deste texto reacionário tentarem ser fiscais da arte e das ideias no Brasil é um perigo á Inteligência, à cultura, às manifestações artísticas. Temem o que não conhecem, e são ressentidos pela falta de cultura e talento. É um manifesto de ressentidos (outra característica do fascismo, o ressentimento). O mais tosco é que eles demonizam e chamam de “globalismo” qualquer ponto fora da curva que ameace a trinca do discurso fascista, “Deus, família e religião”.
Por último e não menos insano, o fecho:
“Concordamos que se deve buscar um Ensino de qualidade, voltado para a capacitação e desenvolvimento das habilidades individuais e não para a formação de militantes de qualquer visão política. E que Educação é uma prerrogativa da família.”
Concordam com quem, cara pálida? Concordamos entre nós, signatários de um manifesto protofascista, que o MP deve ter uma função inconstitucional? Que procuradores que, claramente pelo texto acima não tem a mínima ideia do que é educação, nem ideologia, nem cultura, nem arte, devem ter a função agora de vigiar, punir e perseguir professores? Ensino de qualidade sem escola de pensamento crítico é uma tolice. Não existe. Nenhuma escola no Brasil tem por objetivos formar militantes políticos. Isto é uma aberração do pensamento fascista brasileiro. O mesmo MP que diz combater qualquer ideologia assina um manifesto dizendo-se conservador, e, portanto, ideológico. Não querem escola crítica e querem sim uma escola ideológica, mas uma escola ideológica que naturalize o fascismo e persiga qualquer pensamento crítico.
O texto é vergonhoso e deve ser rebatido por todo e qualquer democrata no Brasil. O país corre risco de fascistização imediata, se os aparelhos ideológicos de Estado virarem corporações de vigilância e perseguição. Quem discute política educacional (sim, Política, com P maiúsculo, o que não tem nada que ver com política partidária) são os educadores, munidos de preparação técnica para discutir os projetos pedagógicos. É um risco ao Estado Democrático de Direito quando membros do MPU se tornam inimigos da democracia e pretendem atacar a liberdade e a autonomia das instituições educacionais e das universidades.
*Roberto Ponciano é professor, mestre em Filosofia e Mestre em Letras Neolatinas, Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.
O deputado federal pelo PSL-RJ, Daniel Silveira, aquele que quebrou a placa com nome de Marielle Franco colocada na Cinelândia, no Rio de Janeiro, gravou um vídeo no último sábado, dia 24, ameaçando Andrea Nunes Constâncio, a diretora do Colégio Pedro II, localizado em Petrópolis (RJ), de fiscalizar e entrar na escola sob sua gestão sem autorização, assim como, segundo o deputado, ele pode fazer em qualquer outro estabelecimento.
“Diretora, eu sou um deputado federal, e o meu caráter é fiscalizador. Eu posso entrar em qualquer estabelecimento sem permissão. Entenda isso. Que isso fique muito claro. Não é você que pode me proibir. Logo você, que há dois anos entregou as chaves da escola Pedro II para vagabundos da esquerda invadirem a escola e atrapalharem as aulas”, disse Silveira, se referindo ao período de ocupações das escolas feitas pelos secundaristas entre 2015 e 2016.
Na época, os estudantes reivindicavam uma Educação Pública com mais qualidade, mais inclusiva e humana, já que o projeto de reorganização escolar previa fechamento de escolas, separação de ensinos, migração escolar de estudante sem consulta aos pais, ensino à distância, demissão e perda de direitos de professores, entre outras questões. Ou seja, um processo de precarização escolar para futuramente entrar em processo de privatização.
Ainda em vídeo, o deputado continuou sua ameaça à diretora, em tom sarcástico e palavras inclusive de baixo calão. “Se você tem todo esse medo, que um deputado federal esteja na sua escola, ainda mais com a minha vertente conservadora que combate a ideologia socialista comunista, isso me cheira a merda. E, se me cheira a merda, eu vou fazer um favor para você. A sua escola será a primeira a ser auditada. Eu vou solicitar uma auditoria desde o princípio da sua gestão, e ver se está tudo certinho, e se você realmente detém a moralidade como diz que detém.”
Silveira também manda um recado a toda a classe trabalhadora da Educação, frisando a diferença de tratamento a professores conforme suas vertentes políticas, criminalizando a esquerda, como se fosse proibido ter ideologia. “Professores tem o meu respeito. Professores de esquerda tem o meu desprezo. Eu quero deixar isso muito claro”.
No final do vídeo, ele pede para que compartilhem a ameaça até chegar à diretora e manda um último recado. “Eu quero que esse vídeo chegue muito claro pra que você entenda, diretora, que o marxismo cultural não será implantado, e não existirá mais escola com partido. Iremos criminalizar”.
A Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino no Estado do Rio de Janeiro (Feteerj) e os Sindicatos Filiados emitiram uma nota em defesa e apoio à diretora do CENIP, Andrea Nunes, no site da Feteerj.
“A Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino no Estado do Rio de Janeiro (Feteerj) e os Sindicatos filiados repudiam a virulenta e absurda declaração feita pelo recém-eleito deputado federal Daniel Silveira (PSL) contra a professora Andrea Nunes Constâncio, diretora do Colégio Estadual Dom Pedro II em Petrópolis, o CENIP.
A declaração mostra o total despreparo do recém-eleito parlamentar que, não contente em desqualificar os profissionais de educação, ainda faz ameaças à diretora. O CENIP é um colégio tradicional de Petrópolis, cujos servidores há décadas batalham contra a falta de investimentos e os baixos salários.
Na verdade, a professora Andrea pode ter certeza de que o ataque e ameaças que sofreu serão respondidos por todas as professoras e professores de nosso estado.
A Feteerj e os Sindicatos Filiados à Federação desde já se colocam à disposição da professora Andrea para ajudar nas medidas políticas e jurídicas cabíveis que o caso vai requerer.