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  • Ditadura Nunca Mais: Aberta a última caixa da Vala Clandestina de Perus!

    Ditadura Nunca Mais: Aberta a última caixa da Vala Clandestina de Perus!

    Por Karina Morais / Jornalistas Livres

     

    O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) concluiu ontem (13 de dezembro) a abertura da última caixa com os remanescentes ósseos da Vala Clandestina de Perus, do total de 1049 caixas.

    A vala foi descoberta em 04 de setembro de 1990, no Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, Zona Norte da capital paulista. O cemitério foi construído em 1971, durante a gestão de Paulo Maluf. Entre “indigentes” e presos políticos, foi lugar de escoamento dos corpos não identificados ou dos que não se pretendiam identificar.

    Fotografia: Reprodução/Instituto Lula

    Em meio à efervescência política, face ao processo de redemocratização do país, as suspeitas acerca do lugar ganharam fôlego e, logo no início da década de 1990, confirmou-se enquanto terreno de desova dos perseguidos pelas forças repressivas do Estado. Com o apoio da prefeitura de São Paulo, sob gestão de Luiza Erundina, as investigações lograram espaço, sobretudo por conta da criação da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus.

    Com o término de seu mandato e em meio a uma série de intervenções externas na perspectiva de cercear os trabalhos, o andamento das investigações foi bastante comprometido. Mais tarde, em 2014, houve uma nova conquista acerca do caso. Por meio de parceria firmada entre a prefeitura de São Paulo, na ocasião sob gestão de Fernando Haddad, o Ministério dos Direitos Humanos e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), criou-se o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/UNIFESP), na perspectiva de estimular e promover pesquisas e formação acerca dos Direitos Humanos, bem como atuar na investigação de práticas de violência institucional. Desse processo surge o Grupo de Trabalho Perus (GTP), sob a incumbência de analisar as ossadas encontradas na vala clandestina.

    O GTP foi fundamental tanto para novas identificações de desaparecidos políticos, quanto para a consolidação de um campo forense intrinsecamente comprometido com a tão almejada, complexa e permanente luta por memória, justiça e verdade.

    Entre avanços e retrocessos: Bolsonaro e as políticas de silenciamento da história

    Se é verdade que houve conquistas importantes, é verdade também que segue em curso uma política de austeridade mais interessada em manter seus cadáveres nos porões da história. Em 11 de abril deste ano, o Presidente Jair Bolsonaro assinou o Decreto 9.759 que “Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”. O decreto impede a continuidade dos trabalhos da equipe de identificação do caso de Perus, o que significa, na prática, extinguir o GTP e a sua capacidade de gerar novos dados e seguir nos informando sobre o caso.

    De todo modo, seu desmonte não é novidade em uma gestão governada por um chefe de Estado que ovacionou, em rede nacional, o general Carlos Brilhante Ustra. Um militar que institucionalizou a prática de tortura no Brasil e adotou técnicas bem “refinadas”, como colocar ratos em vaginas de mulheres ou pôr crianças em contato com a mãe torturada. Além dos já conhecidos eletrochoques, afogamentos, atropelamentos e espancamentos, inclusive de mulheres grávidas.

    Não é novidade que o Decreto parta de um Chefe de Estado que estimula a comemoração do aniversário de início da Ditadura Militar no Brasil. Que, enquanto parlamentar, satirizava o assassinato dos presos no Araguaia, inclusive em fotografias com cartazes com frases como “quem procura osso é cachorro”, colocando-se claramente contra a investigação dos casos de tortura e a identificação dos corpos.

    Fotografia: Reprodução/Brasil de Fato

    O Presidente não é apenas um saudosista da ditadura por sua trajetória militar, é também quem defende o armamento público, ao passo em que vota pelo congelamento de verbas para saúde e educação. É também quem defende a privatização das universidades públicas e tem empregado uma série de medidas na perspectiva de sucatear a produção acadêmica e barrar o desenvolvimento de novas pesquisas.

    Desde 1970, na Vala de Perus camuflou-se a vida de diversos desaparecidos políticos, assassinados durante a Ditadura Militar no Brasil. Incontáveis são as famílias que não puderam velar os corpos de seus pais, filhos e netos, perseguidos e assassinados. O desmantelamento do GTP insere-se em uma articulação mais ampla de Jair Bolsonaro e do grupo político que o sustenta. No último mês, mais uma luta foi travada quando a União anunciou a proposta de retirar as ossadas da responsabilidade da UNIFESP e levá-las para Brasília, sob a justificativa de enxugar os gastos. É certo que, uma vez extinguido o grupo de identificação e concluída a transferência dos remanescentes ósseos para Brasília, os trabalhos se encerrariam. Manter-se-ia para sempre, nas tumbas clandestinas de nossa história, parte de um passado ainda não revelado.

    A importância do comprometimento social das pesquisas

    Os desafios são muitos e o caminho na busca da verdade segue árduo e longo. De todo modo, neste final de semana comemoremos a abertura da última de 1049 caixas com os corpos encontrados na Vala, não mais clandestina, de Perus. Confira a nota do CAAF a respeito disso:

    “Hoje, dia 13 de dezembro de 2019, após 5 anos de recebimento dos remanescentes ósseos da Vala de Perus no CAAF/Unifesp, temos a satisfação de comunicar que realizamos a abertura da última das 1.049 caixas.

    Nestes anos construímos uma forte institucionalidade (Ministério dos Direitos Humanos, Prefeitura de São Paulo e Unifesp), por meio de uma ação judicial movida pelo Ministério Público Federal, e, sempre, com a participação direta e decisiva dos familiares de mortos e desaparecidos políticos da Ditadura.

    O trabalho, inicialmente denominado Grupo de Trabalho Perus (GTP, grupo extinto pelo atual governo Bolsonaro), produziu protocolos únicos de análise de uma vala desta complexidade, colaborou com a formação de profissionais, estreitou laços com os movimentos sociais de denúncia da violência de Estado, entre outros ganhos.

    Identificamos dois militantes políticos, presos, torturados e assassinados pela Ditadura, no Doi-Codi do Exército, em São Paulo. São eles: Dimas Antônio Casemiro e Aluizio Palhano.
    Na próxima etapa, reabriremos 26% das caixas, as quais contém mais ossos misturados de outros indivíduos, exigindo um processo de reassociação dos ossos que não pertencem aos indivíduos principais destas caixas.

    Que este seja um passo colaborativo no sentido de constituir no país uma antropologia forense autônoma e independente de apuração da violência do Estado.

    Que novas identificações possam ser confirmadas e possamos restituir às famílias seus entes queridos e ao Brasil sua história de luta.

    Um grande abraço da equipe de análise dos remanescentes ósseos da Vala de Perus.”

    Fotografias: Prof. Dr. Edson Teles (CAAF/UNIFESP)

    Leia mais sobre esse assunto nos links abaixo:

    https://jornalistaslivres.org/bolsonaro-quer-transferir-ossadas-da-vala-de-perus/

     

    https://jornalistaslivres.org/torre-das-donzelas-a-historia-a-memoria-e-o-cinema/

  • “Torre das Donzelas”: a história, a memória e o cinema

    “Torre das Donzelas”: a história, a memória e o cinema

    Por Karina Morais, para o Jornalistas Livres                                                                                             

     

    “Torre das Donzelas” é o nome que ficou conhecido o Presídio Tiradentes, em São Paulo, durante a Ditadura Militar no Brasil. O nome decorre em função de um de seus pavilhões, destinado à presas políticas, como a ex-presidenta Dilma Rousseff, que lá permaneceu por mais de três anos.

    Na perspectiva de mantê-lo isolado, o local foi construído fora dos limites da cidade e conta com um longo histórico de repressões: foi criado ainda no período colonial, em 1852, enquanto Casa de Correção, para onde eram levados os negros escravizados pegos em fuga. Na jovem República, durante a ditadura Vargas, passou a receber presos políticos, função que se repetiu entre o final da década de 1960 até o início da década de 1970, com a Ditadura Militar.

    O espaço foi desativado em 1972 por conta das obras no metrô, para a abertura da estação Tiradentes. De sua edificação, quase nada sobrou. No local, mantém-se apenas um arco de entrada, enquanto remanescente de suas estruturas, sendo patrimônio histórico tombado pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. O local entrou também para o “Guia dos Lugares Difíceis de São Paulo”, publicação organizada pelo Prof. Dr. Renato Cymbalista e lançado no último mês, na Casa do Povo, em São Paulo, na perspectiva de elucidar os espaços de conflito na cidade. Ainda que apenas um pórtico tenha sido mantido, sua preservação é importante pois registra na cidade a memória da dor e da opressão, sumariamente invisibilizadas nas linhas da história.

    Neste ano, em um contexto em que saudosistas dos anos de chumbo falam abertamente sobre fechar o Congresso, instaurar um novo AI-5 e comemorar o início do período ditatorial, a “Torre das Donzelas” se tornou nome de um dos mais importantes longa-metragens produzido desde o Golpe de 2016. Dirigido por Susanna Lira e estreado no último 19 de setembro, o documentário conta com diversos relatos de mulheres que foram confinadas ao Presídio Tiradentes, enquanto presas políticas, durante a Ditadura Militar. Relatos exclusivos de Dilma Rousseff e de suas companheiras da prisão são tratados no documentário, abordando temas como o cotidiano no cárcere, os métodos de tortura e as redes de solidariedade, compondo um rico e minucioso registro de história oral.

    Se você é de São Paulo, ainda não conferiu ou quer prestigiar esse importante trabalho mais uma vez, a oportunidade é essa! O Sindicato dos Advogados de São Paulo (SASP) promoverá, na próxima quinta-feira (05/12), às 18h30, uma exibição gratuita do longa contando com a presença de algumas das “donzelas”, que debaterão o tema com os convidados. O evento integra a programação do CineSASP e o sindicato está localizado na Rua Abolição, 167 – centro. Anote aí na agenda!

    Nós, Jornalistas Livres, temos clareza que a história não é linear, mas de avanços e retrocessos e de que a disputa pela memória é, sobretudo, uma ferramenta política.

    #DitaduraNuncaMais

     

    Arte sobre a exibição do documentário, “Torre das Donzelas”
  • Nota da APIB sobre o uso de força contra o Acampamento Terra Livre (ATL)

    Nota da APIB sobre o uso de força contra o Acampamento Terra Livre (ATL)

    Do site da APIB

    Em defesa do direito de livre manifestação e chega de repressão.

    “Seguindo a intenção de exterminar os povos indígenas do Brasil, o governo Jair Bolsonaro intensifica sua posição de quando ainda era parlamentar, quando afirmou em 15 de abril de 1998, que “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.

    Na manhã de hoje recebemos a notícia de que o seu ministro Sérgio Moro publicou a Portaria n. 441 que autoriza o uso da força nacional de segurança na esplanada dos ministérios e na praça dos três poderes durante os próximos 33 dias. Tal medida foi incentivada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e tem como um dos motivadores a realização do Acampamento Terra Livre (ATL), que acontecerá em Brasília nos dias 24 a 26 de abril. Não é demais mencionar que o Decreto 5289/2004, que fundamenta a mencionada portaria, dispõe como ação a ser desenvolvida pela Força Nacional de Segurança, com apoio de servidores civis, o exato oposto ao que se pretende com o uso da força, ou seja, apoiar a ações que visem à proteção de indivíduos, grupos e órgãos da sociedade que promovam e protejam os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

    O ATL é um encontro de lideranças indígenas nacionais e internacionais que visa a troca de experiências culturais e a luta pela garantia dos nossos direitos constitucionais, como a demarcação dos nossos territórios, acesso à saúde, a educação e a participação social indígena. Nosso acampamento vem acontecendo a mais de 15 anos sempre em caráter pacífico buscando dar visibilidade para nossas lutas cotidianas, sempre invisibilizado pelos poderosos. Se é do interesse do General Augusto Heleno desencorajar o uso da violência, que ocupe os latifúndios que avançam sobre nossos territórios e matam os nossos parentes.

    Do que vocês têm medo? Por que nos negam o direito de estar nesse lugar? Por que insistem em negar a nossa existência? Em nos vincular a interesses outros que não os nossos? Em falar por nós e mentir sobre nós?

    Nosso acampamento não é financiado com dinheiro público como disse o presidente Jair Bolsonaro, ele é autofinanciado com a ajuda de diversos colaboradores e só acontece por conta do suor de tantas e tantos que o fazem acontecer. Infelizmente o governo não se dispõe a nos ouvir e não ajuda com nada, o que ao nosso entendimento deveria ser o seu papel. É necessário acabar com a farra com o dinheiro público e isso não se fará com o congelamento do salário mínimo, ou cortes em saúde e educação. Se fará com o fim da corrupção, dos cheques, dos motoristas laranjas ou de tantos outros escândalos que vemos por aí.

    Parem de incitar o povo contra nós! Não somos violentos, violento é atacar o direito sagrado a livre manifestação com tropas armadas, o direito de ir e vir de tantas brasileiras e brasileiros que andaram e andam por essas terras desde muito antes de 1500.

    Que saibam: A história da nossa existência, é a história da tragédia desse modelo de civilização referendado pelo atual governo que coloca o lucro à cima da vida, somos a resistência viva, e nos últimos 519 anos nunca nos acovardamos diante dos homens armados que queriam nos dizer qual era o nosso lugar, agora não será diferente. Seguiremos em marcha, com a força de nossa cultura ancestral, sendo a resistência a todos esses ataques que estamos sofrendo.

    Diga aos povos que avancem!”

  • 1964, o Brasil entre armas e livros: a macabra sessão de cinema da Alesp

    1964, o Brasil entre armas e livros: a macabra sessão de cinema da Alesp

    Do Opera Mundi via Diário do Centro do Mundo

    POR JOANA MONTELEONE

    Um grupo de deputados abriu as portas do auditório Paulo Kobayashi, dentro da Alesp, para a exibição do filme 1964, o Brasil entre armas e livros. O filme é da Brasil Paralelo, uma produtora que tem se especializado em reescrever a história do Brasil a partir de ideologias, distorções e mentiras. O evento foi organizado pelo deputado do PSL Douglas Garcia, que atacou a comunidade LGBT num dia e acabou por se assumir homossexual na sequência, e Castello Branco, também do PSL. Ainda na mesa, se encontravam o Cabo Anselmo, informante da ditadura, o delegado Paulo Sérgio Oppido Fleury (filho do delegado Fleury, do Dops) e o ex-delegado Carlos Alberto Augusto. Anselmo, Fleury pai e Carlos Alberto, todos muito envolvidos com os crimes da ditadura militar.

    Na plateia estavam apoiadores da ditadura e do presidente Bolsonaro. Não houve qualquer debate ou polêmica, já que os presentes apoiaram os integrantes da mesa quando os mesmos homenagearam com aplausos e palmas o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador paulista que dirigiu o DOI-Codi, o órgão responsável pelo sequestro, tortura e morte de opositores da ditadura, localizado na rua Tutoia. Foi no DOI-Codi, por exemplo, que o jornalista Vladimir Herzog morreu, depois de uma sessão de tortura em 25 de outubro de 1975.

    O filme exibido no auditório é recheado de incongruências, distorções e mentiras históricas, que não vale a pena abordar, tão batidas que são – e tão inconsistentes e contestadas por historiadores comprometidos com os fatos. Não passam nem por detector de mentiras, nem por uma análise mais apurada.

    O principal objetivo da sessão era marcar um território, recolocar a Alesp – e o auditório Paulo Kobayashi – sob as asas da ditadura. Foi na Alesp, com muitas sessões no auditório, que tomou lugar a Comissão da Verdade Estadual Marcelo Rubens Paiva, encabeçada pelo geólogo e então deputado estadual Adriano Diogo. Nas audiências públicas neste auditório, ficou claro o papel na ditadura militar, as técnicas de tortura foram explicitadas com depoimentos e documentos, os agentes da repressão foram nomeados, as vítimas puderam contar suas histórias de terror nas mãos dos agentes do Estado. Durante uma das audiências da comissão, foi lançado o livro A casa da vovó, uma biografia do Doi-Codi, do jornalista Marcelo Godoy, vencedor do prêmio Jabuti de 2015. O livro, do que qual fui editora, juntamente com Haroldo Ceravolo Sereza, é o mais contundente relato de como funcionava a repressão e o que acontecia exatamente na delegacia da rua Tutoia.

    Marcelo Godoy conversou com os próprios agentes, policiais civis, policiais militares e militares do Exército, que trabalharam lá. Muitas vezes esses depoimentos foram anônimos, tamanho terror que causam inclusive nos torturadores até hoje. Histórias de violência gratuita e morte foram reveladas, como a do arquiteto e artista plástico Antonio Benetazzo, que depois de torturado, deveria ter sido morto. Seu corpo estava no carro, pronto para ser protagonista de um falso acidente, quando acordou. Os responsáveis por essa ação, então, voltaram ao sítio na zona sul da cidade de São Paulo, onde Benetezzo passara a última noite, e voltaram a golpeá-lo no rosto, provavelmente com um tijolo, até terem certeza de sua morte. Em seguida, foi levado a um ponto de ônibus, à espera do melhor momento para o “teatrinho”, como os integrantes do DOI chamavam esse tipo de operação: quando um caminhão estava passando, seu corpo foi lançado, numa simulação de suicídio. Um caminhão passou por cima dele. No inquérito aberto na delegacia para o caso de atropelamento, o motorista afirmou que estranhou que o rosto de Benetazzo estivesse tão desfigurado, uma vez que não tivera a sensação de ter passado por cima de sua cabeça. O delegado que registrou o BO, codiretor do teatrinho, explicou: talvez o corpo tenha subido e batido no assoalho do caminhão quando a roda passou por cima dele. O motorista, então, não ousou insistir em contestar a autoridade.

    O livro de Godoy foi lançado no dia 11 de dezembro de 2014, no mesmo auditório Paulo Kobayashi na Alesp, numa sessão presidida pelo deputado Adriano Diogo. Na plateia, muitas vítimas da ditadura, entre elas Amelinha Teles, torturada por Ustra, e sua filha Janaína Teles, que, criança, viu sua mãe ensanguentada, após um espancamento na chamada “cadeira do dragão”. Janaína e seu irmão Edson foram sequestrados pelos policiais do DOI e enviados para a casa de um tio delegado em Belo Horizonte, sem o consentimento dos pais, aonde ficaram em cárcere privado até serem resgatados por outros familiares.

    Em determinado momento do evento, entrou, tentando ser solene, o ex-delegado Carlos Alberto Augusto, também conhecido como Carteira Preta ou Carlinhos Metralha. Chegou vestindo um smoking dos anos 1970, com um capacete antigo, usado em 1932 – numa alusão à intentona paulista que tentou derrubar Getúlio Vargas. Ele veio acompanhado de outros delegados e policiais do interior do Estado, todos armados, dentro do auditório, fazendo questão de exibir seus coldres e pistolas. Na parte em que o público podia fazer perguntas, Carlos Alberto pegou o microfone e passou a dizer impropérios desconexos, afirmando que Janaína e Amelinha mentiam. O vídeo com a sessão pode ser visto aqui.

    Imediatamente, Marcelo tomou o microfone e passou a descrever alguns dos atos praticados pelo Carteira Preta, incluindo o Massacre da Chácara São Bento, nos arredores de Recife em 1973. Na ocasião, morreram 6 militantes da VPR, incluindo Soledad Viedma, grávida de 6 meses do Cabo Anselmo, o mais conhecido agente infiltrado na esquerda, que também estava presente na sessão de cinema macabro de dia 8 de abril de 2019. Desde o lançamento do livro, nenhum fato descrito do volume foi contestado por nenhum agente da repressão. Não podem alegar desconhecimento, pois na ocasião Carlos Augusto levou dois exemplares, um deles para o coronel Ustra, que ainda vivia.

    A Comissão da Verdade usou diversas vezes o auditório Paulo Kobayashi. Em muitas sessões, apoiadores da ditadura assistiram, mudos, à fala de historiadores e depoimentos de vítimas – foram mais de mil depoimentos e muitos casos esclarecidos. A entrega do relatório final, em março de 2015, foi feita numa sessão abarrotada, sendo aplaudidos de pé os diversos oradores que falaram naquele dia.

    Usar o auditório hoje para passar um filme que exalta a ditadura militar e seus torturadores, recheado por mentiras e fatos distorcidos largamente já contestados por vítimas e historiadores, tem vários significados macabros.

    O primeiro significado, e mais evidente, é a tentativa de apagamento da história recente do país: 1964 não foi um golpe, nunca tivemos uma ditadura, ninguém nunca foi torturado (apenas alguns excessos foram, talvez, cometidos pela esquerda), mas, paradoxalmente, o golpe, a ditadura e a tortura que não existiram livraram o país do fantasma do comunismo. Os acontecimentos que envolveram a ditadura militar – a repressão e morte de militantes de esquerda, de líderes camponeses, de sindicalistas, de índios – está fartamente comprovada por depoimentos de vítimas e torturadores, e também por documentos produzidos pelo próprio regime, que incluem relatórios de espionagem e tortura, organogramas das agências de espionagem nas empresas e instituições públicas (as ASIs e DSIs), filmes, fotos, programas de rádio e televisão. O que o regime militar fez está fartamente documentado – e isso inclui também dos diversos casos de corrupção, mas essa é outra história. Muitos documentos foram destruídos no apagar das luzes do regime, mas muitos dos que sobreviveram estão disponíveis para pesquisadores e historiadores.

    O segundo sentido é a importância que a Comissão Nacional da Verdade teve para esclarecer os fatos, elucidar casos, apontar documentos e histórias falsas. A comissão poderia ter ido mais longe – mas ela foi muito, muito longe na visão dos que hoje estão no poder. A multiplicação das comissões da verdade pelo país – estaduais (como a extremamente bem-sucedida de São Paulo), municipais, empresariais, institucionais, escolares etc. – mostrou uma face ainda mais terrível ditadura. É esta a face que querem distorcer ou esconder com mentiras, documentos requentados e falas polêmicas em filmes como o 1964, o Brasil entre armas e livros e best sellers que se tornam séries de TV e “referência” para Youtubers, como o Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 

    Querem esconder com tudo isso que a repressão foi uma política de Estado. Querem dar a entender que foram alguns poucos casos e que estava em curso uma guerra de uma facção contra outra, a direita e os militares contra a esquerda e os grupos armados. Nada mais falso. Não existiu uma guerra a não ser aquela do Estado contra seu próprio povo. Todas as Comissões da Verdade do país mostraram que o Estado organizou e pôs em prática as políticas de repressão feitas não apenas contra uma minoria que tentava fazer ações armadas para derrubar os militares, mas contra líderes sindicais, camponeses, índios, homossexuais e diversas condutas consideradas, de forma muitas vezes delirante, de “desviantes” e  “subversivas”.   O Estado considerou seu próprio povo o inimigo interno a ser derrotado e exterminado. Em boa medida, cumpriu a meta de atacá-lo sem dó ou piedade.

    Todos os fatos que demonstram o terror do Estado foram comprovados pela ciência da história, por meio de documentos e depoimentos ao longo das últimas décadas. O que está em curso não é uma simples disputa de narrativa – porque tal disputa pressupõe que existam dois lados que podem ter razão. Nesse caso, não: o que está em jogo é aceitarmos ou não o pressuposto da realidade.

    A história, ensinou Bloch com seus textos e ações, se faz e se conta com fatos e argumentos, não com mentiras e falsificações. Há os morrem pela história, e os que matam para escondê-la.

    Trecho do filme 1964, o Brasil entre armas e livros (imagem: reprodução)
  • 1964: comemorar jamais

    1964: comemorar jamais

    Por Juliana Cardoso

     

    Uma dúvida tomou conta do País às vésperas de 31 de março. Os quarteis iriam acatar a decisão judicial que proibiu comemorações na data do golpe que implantou a ditadura civil-militar?

    Encaminhada há pouco mais de semana pelo governo Bolsonaro ao Ministro da Defesa, a ordem presidencial para celebrar a “data histórica” provocou reações imediatas no Judiciário. O Ministério Público Federal recomendou às Forças Armadas se abster de promover qualquer ato alusivo aos 55 anos do golpe que destituiu o presidente João Goulart.

    Nas ruas de várias cidades do Brasil, atos de resistência contra a ditadura foram agendados. As manifestações tinham como foco rememorar os 21 anos do regime de exceção, além de prestar homenagens póstumas aos mortos e desaparecidos.

    Para além das forças reacionárias que tentam reescrever a história, negando a existência da ditadura, a questão central no momento é: há motivos para comemoração de um período marcado por 475 mortes e desaparecidos reconhecidos oficialmente, além de mais de mil indígenas exterminados? Período em que centenas de brasileiros foram obrigados a se exilar para escapara das torturas e de mortes?

    Existem razões para aplaudir uma página da nossa história onde foram suprimidos os direitos de reunião? Onde a liberdade de expressão era controlada? Onde vigorava a censura a imprensa? Onde as manifestações artísticas tinham de ser submetidas ao crivo de censores? Onde as violações aos direitos humanos virou regra? Onde o povo não podia eleger presidente, governador e prefeitos nas capitais?

    Como se não bastasse há hoje, sobretudo disseminadas nas redes sociais as fake news que enaltecem os governos militares associando-os ao sucesso no campo econômico. Mas não custa recordar alguns números.

    Em 1964 o salário mínimo era de R$ 1.232 e em 1983 o seu poder de compra foi reduzido para R$ 563. O Brasil da ditadura viveu crises de estagnação econômica como o da hiperinflação que em 1979 chegou a 77%. E em 1984 atingiu 223%.

    Há ainda aqueles hoje que repetem mantras de ter sido período sem corrupção. Mesmo sob censura, a imprensa conseguiu registrar grandiosas obras sob suspeita e superfaturadas como Ponte Rio/Niteróí, Hidrelétrica Itaipu, Transamazônica e Paulipetro.

    Se pelo passado não temos o que comemorar, no presente não é muito diferente. Desde a deposição da presidente Dilma Rousseff em 2016, o Brasil está mergulhado num estado de exceção, onde garantias constitucionais estão sendo atropeladas. E direitos sociais conquistados ao longo de décadas de lutas estão sendo abolidos na esfera trabalhista e previdenciária. E riquezas nacionais como o pré-sal entregues à exploração de empresas estrangeiras.

    Não temos mesmo o quê comemorar com o que se passa nos dias atuais. O desemprego bate recorde e já afeta 13 milhões de brasileiros

    E o arbítrio, apesar das aparências do estado democrático, está muito presente. Temos de exigir nas ruas a liberdade do ex-presidente Lula, preso sem provas e por sentença como “atos indeterminados”. Temos que saber quem são os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco.

    Não há como negar a história. O PT tem em seu DNA a luta pela redemocratização do Brasil. A partir dos trabalhadores do ABC, das Comunidades Eclesiasticas de Base (CEBs) e dos intelectuais e artistas foi construído um importante instrumento de luta do povo brasileiro.

    Por tudo isso, esquecer as atrocidades da ditadura jamais. Comemorar jamais. Rememorar para não voltar a acontecer sim. Ditadura Nunca Mais.

     

     

    Vereadora Juliana Cardoso (PT), membro da Comissão de Saúde de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo

     

     

  • OAB-SP repudia comemoração do golpe de 1964

    OAB-SP repudia comemoração do golpe de 1964

    Cresce o repúdio da sociedade civil ás medidas do governo Bolsonaro que atacam a democracia.
    Do site da OAB-SP
    “O presidente da República Jair Bolsonaro anunciou, por intermédio de seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros, que determinou ao Ministério da Defesa que faça “as comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964”, data do golpe de estado que afastou o presidente eleito João Goulart e deu início à ditadura militar no Brasil, que durou até 1985.

    Nas últimas semanas, o presidente já louvou publicamente o general paraguaio Alfredo Stroessner e o general chileno Augusto Pinochet, ambos ditadores condenados internacionalmente por crimes contra a humanidade, como prisões ilegais, torturas e assassinatos políticos. Segundo seu porta-voz, “o presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”. 

    Diante desses fatos, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB SP, juntamente com a diretoria da Secional, vem a público denunciar a postura do chefe do Poder Executivo, que afronta o Estado Democrático de Direito. Não podem a opinião pessoal e as idiossincrasias ideológicas do ocupante da Presidência servirem de pretexto para determinar que órgãos públicos comemorem a derrubada inconstitucional de um governo e festejem o regime que o sucedeu, responsável por graves atentados aos Direitos Humanos, como o assassinato ou o desaparecimento de 434 adversários políticos e mais de oito mil indígenas, além de várias dezenas de milhares de prisões ilegais, com parte expressiva dos presos submetidos a torturas, espancamentos e execuções realizadas por órgãos do Estado. Não pode haver glória se não há nenhuma honra na atuação de membros das Forças Armadas e das polícias perpetrando as mais repulsivas formas de violência contra brasileiras e brasileiros, de modo geral, indefesos.

    A CDH da OAB SP externa sua inconformidade frente à agressão aos Direitos Humanos decorrente da “comemoração” do golpe de 1964 e exorta as Forças Armadas e autoridades militares e civis a manterem-se íntegras no cumprimento de suas missões como servidoras do Estado Democrático de Direito e subordinadas à Constituição Federal no Brasil.

    Diretoria da Seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil”