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Direitos Humanos

Aumento da tarifa de transporte afeta saúde psíquica dos pobres, acredita psicanalista

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Por Igor Ojeda, Le Monde Diplomatique Brasil

 

Não é só pelos 20 centavos.

Quer dizer, para as famílias mais pobres, o aumento de R$ 3,80 para R$ 4,00 nas tarifas de ônibus, metrô e trem em São Paulo, determinado pelo prefeito João Doria e pelo governador Geraldo Alckmin nesta virada de ano, não causam impacto apenas no orçamento. A maior restrição à mobilidade afeta, como consequência, a saúde psíquica das pessoas de baixa renda. Quem propõe essa análise é o psicanalista Daniel Guimarães, um dos criadores da Clínica Pública de Psicanálise. Ele escreveu sobre a hipótese num artigo para o site Outras Palavras.

“O meu ponto é baseado em levantamentos recentes de que o sofrimento psíquico, incluindo formas mais agudas como a loucura, é maior entre a população pobre. Portanto, qualquer medida que afete economicamente a população de forma negativa a coloca em riscos maiores dos que os que já vive. O que fiz, agora com alguns recursos da psicanálise, foi levar esse argumento para a dimensão da saúde psíquica”, explica.

Ele se refere à pesquisa “São Paulo megacity – um estudo epidemiológico de base populacional avaliando a morbidade psiquiátrica na região metropolitana de São Paulo: objetivos, desenho e implementação do trabalho de campo”, de Maria Carmen Viana, Marlene Galativicis Teixeira, Fidel Beraldi, Indaiá de Santana Bassani e Laura Helena Andrade. Publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em dezembro de 2009, ele pode ser lido, em inglês.

A ligação entre a psicanálise e o debate sobre mobilidade não é à toa. Natural de Florianópolis, Santa Catarina, Guimarães, de 34 anos, foi um dos fundadores, em 2005, do Movimento Passe Livre (MPL), que propõe a gratuidade no transporte público e convoca protestos contra aumentos de tarifa em várias cidades do Brasil. Vivendo na capital paulista há dez anos, ele se tornou psicanalista e, pouco depois de se afastar organicamente do movimento, participou em 2016 da criação da Clínica Pública de Psicanálise, que realiza atendimentos gratuitos a pessoas de baixa renda.

Segundo o psicanalista, “o impedimento do deslocamento do corpo na cidade empobrece o repertório de imagens, palavras, sons e ruas, aquilo que usamos para produzir fantasias que nos confortam em situações de frustração. Um repertório psíquico mais pobre pode encontrar mais dificuldade para encontrar saídas quando o sofrimento chega”.

Na entrevista a seguir, Daniel também fala sobre as possíveis consequências do sofrimento psíquico “coletivo” nos territórios periféricos, da necessidade de se popularizar a psicanálise e do trabalho da Clínica Pública de Psicanálise.

DIPLOMATIQUE – Você defende que o aumento das tarifas de ônibus, metrô e trem tem impacto negativo na saúde psíquica da população. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Daniel Guimarães – É uma extensão de um argumento que o Movimento Passe Livre levanta há muitos anos. Cada aumento representa índices mais elevados de exclusão. O custo do transporte é um dos maiores no orçamento familiar. Num país de extremos e muita miséria como o Brasil, qualquer elevação no preço da passagem significa redução de usuários do transporte. Isso quer dizer que a população mais pobre, em especial a periférica, acessará menos os serviços públicos centralizados e já muito burocratizados. O meu ponto é baseado em levantamentos recentes de que o sofrimento psíquico, incluindo formas mais agudas como a loucura, é maior entre a população pobre. Portanto, qualquer medida que afete economicamente a população de forma negativa a coloca em riscos maiores do que os que já vive. O que fiz, agora com alguns recursos da psicanálise, foi levar esse argumento para a dimensão da saúde psíquica.

Desde coisas muito concretas como o aumento do forte desconforto emocional nos trens e ônibus lotados – a cada aumento se reduz a quantidade de usuários o que, por sua vez, faz as empresas reduzirem a quantidade de viagens ofertadas, ampliando a quantidade de pessoas por metro quadrado –, o desperdício de energia psíquica nas longas esperas, a falta de conforto nas horas acumuladas nos longos trajetos, maior risco para mulheres por conta dos abusos… a lista é longa. Há uma música chamada “A volta pra casa”, do Rincon Sapiência, que ilustra bem o que estou querendo dizer. Mas, além disso, inseri uma nova hipótese, que é apenas o início de uma pesquisa natural para mim, que agora sou psicanalista, mas por mais de dez anos militei no Movimento Passe Livre. O impedimento do deslocamento do corpo na cidade empobrece o repertório de imagens, palavras, sons e ruas, aquilo que usamos para produzir fantasias que nos confortam em situações de frustração. Um repertório psíquico mais pobre pode ter mais dificuldade para encontrar saídas quando o sofrimento chega. Apostaria que saber que há um mundo lá do outro lado que não pode ser acessado é um a mais de frustração. Ou ainda pior: saber, sem reconhecer os motivos, talvez até assumindo responsabilidade e culpa por isso.

O sistema de transporte tarifado é uma espécie de apartheid, e proponho o arcabouço da psicanálise para tentar explicar os fenômenos que vêm sendo demonstrados, que citei anteriormente: o maior índice de loucura entre pobres e o maior número de formas amplas de adoecimento psíquico entre populações com a capacidade de mobilidade reduzida. É um salto metafórico da mobilidade do corpo para seus equivalentes psíquicos. Nesse sentido, políticas públicas de direito à cidade, como a tarifa zero, poderiam ser fortes aliadas na saúde mental da população, não apenas para ter acesso a equipamentos públicos centralizados, mas também para passear, ver outras paisagens, ouvir novas palavras, encontrar pessoas de outros lugares, se aventurar e, ao voltar, poder sentir o estranhamento com relação ao próprio espaço onde vive. Desnaturalizar as coisas. Por que no centro há mais árvores? Por que tem metrô só até tal lugar? Por que não posso deslocar meu corpo e meu desejo para encontrar a pessoa amada? E assim por diante.

Negros e mulheres são os grupos que mais sofrem com a pobreza, como aponta, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pode-se concluir que estes (em última instância, a mulher negra) são os grupos populacionais que mais sentem os efeitos psíquicos do que você chama de “exílio periférico”?

Me parece que são pesquisas a serem feitas. A aposta é que sim, pelas características de classe com atravessamentos de gênero e raça que é o nosso próprio tecido social esgarçado.

Quais as consequências de um aumento de tarifa para o tecido social de um território em que a imensa maioria das pessoas sofre “coletivamente” desse adoecimento psíquico?

Acredito que medidas como essa façam a vida social ser mais sofrida, menos solidária, mais violenta entre os mais pobres ou a partir dos mais pobres em relação aos mais ricos, que sofrerão isso que se chama “violência urbana” quando ela alcança o centro. É um trajeto dialético iniciado pelo mercado, empresas de ônibus e prefeitura em especial, que ataca a população, reduzindo suas perspectivas de vida, passando pela repressão física policial. E entre esta população de exilados, como chamava [o geógrafo] Milton Santos, negros e mulheres estão em condições de desvantagem por aspectos históricos da nossa formação des-urbana. A cidade, que vai deixando de ser cidade para ser apenas um grande mercado, deixa de ser espaço social. Essas medidas econômicas antipopulares são, portanto, antissociais.

Você escreve que há uma imagem de que a psicanálise é um serviço prestado por integrantes de classes abastadas para integrantes de classes abastadas. Por que essa é a imagem que prevalece?

Talvez porque foi assim que a psicanálise primeiro se estabeleceu no Brasil, a partir de médicos psiquiatras higienistas. Muito mudou da década de 1930 para cá, é evidente. Psicanalistas críticos, de esquerda, foram essenciais na própria formulação do sistema de saúde pública, agora sob risco após o golpe [o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016]. Muita prática revolucionária passou pelo campo da psicanálise. Nomes como Hélio Pellegrino, Nise da Silveira, Antonio Lancetti, para citar poucos. Mas há espaço para uma controvérsia de difícil solução. Pode ser que a psicanálise acerte mais do que erre ao permanecer marginal como profissão e “oficialmente” ausente das formações no ensino superior. Cursos de psicologia de universidades públicas talvez sejam os grandes propagadores da psicanálise para além da super elitizada Sociedade Brasileira de Psicanálise. Mas há a questão difícil da forma como alguém se torna analista. No arranjo pedagógico que temos à nossa disposição é muito delicado formar um analista. Se a própria análise é central nesse processo, em que o sujeito passa pela experiência de suas próprias questões e conflitos inconscientes, como qualificar este processo em termos de avaliação? A crítica ao modelo da análise didática [análise à qual o futuro analista se submete, como parte de sua formação], ainda em vigor, me parece ser de enorme valor.

Então temos um cenário em que os psicanalistas são pessoas que passaram por cursos de psicologia, ou medicina/psiquiatria e que, depois, cursaram especializações em psicanálise, enquanto faziam sua análise pessoal pagando grandes valores. Algumas instituições, como as onde eu estudo, ampliaram muito as portas para fora desse modelo, barateando a mensalidade, não exigindo um processo analítico com integrantes da própria instituição, embora exija alguma formação acadêmica prévia. Por sorte eu tinha um diploma de jornalista. Mas foi a vida vivida que me levou para um consultório de psicanálise como paciente e, de lá, me instigou a estudar e fazer psicanálise do outro lado da poltrona.

O próprio sistema público de ensino é uma questão, aliás. Sua ampliação foi interrompida após o golpe recente. É necessário inserir a psicanálise no sistema de saúde pública – e lutar mesmo pela manutenção e ampliação da saúde pública. Talvez seja esse o horizonte da Clínica Pública de Psicanálise. Atender quem nos procura e não pode pagar os preços do mercado da psicanálise. Demonstrar que há demanda popular por cuidado emocional e que a psicanálise, esse tratamento pela fala, escuta e relação, está sendo buscada por pessoas que não se sentiram cuidadas o suficiente por outros modelos, em especial os puramente baseados em medicamentos.

Mas é também necessário dizer que a psicanálise precisa ser popular no sentido de permitir que a população mais pobre possa sonhar se apropriar dela. Não será suficiente os analistas críticos socialistas de classe média atenderem os pobres. Ou, pior ainda, criarem formas precárias de atendimento, que servem mais aos interesses desses analistas que preferem dedicar pouco do seu tempo para um trabalho tão sério e relevante. Será fundamental inserir a psicanálise também no imaginário popular. Se o imaginário popular assim desejar, é claro, a própria psicanálise será transformada. É uma questão importante, central mesmo. Não nos interessa utilizar a psicanálise como forma de reeducação das pessoas. Não somos professores de nada, tampouco temos um projeto pronto. Nossa tarefa é proporcionar mais energia psíquica para quem nos procura. Seja lá qual destino essa pessoa dê para essa energia que estava, digamos, encatracada.

Você pode explicar melhor então como é o trabalho da Clínica Pública de Psicanálise?

Nós temos algumas formas de trabalho. Em primeiro lugar, é importante dizer que existimos lá, na Vila Itororó [no bairro paulistano da Bela Vista], para que não seja esquecido que naquele conjunto de casas habitavam famílias. Elas foram removidas, em nome de um certo tipo de conceito de “público”, ao qual nos opomos, para que ali se tornasse um desses polos de cultura de mercado. Então começamos a clínica para proporcionar a essas famílias a possibilidade de elaboração daquela violência. Para ressignificar o conceito de público, a favor da população e não do mercado.

Depois de mais de um ano e meio de trabalho fomos percebendo que muito mais importante do que atender aquelas pessoas – as que aderiram à ideia, pois nenhuma foi obrigada a participar – seria manter essa história viva. Porque casos como esse são recorrentes no nosso período histórico e é importante que se saiba que há sofrimento quando famílias que moravam juntas são separadas. Que há sofrimento quando a sua noção de território espacial se confundia com o território psíquico existencial e as duas são abruptamente, sem seu desejo, separadas. Destroçadas. Como essas pessoas reconstruirão suas vidas e relações?

A partir disso fomos ampliando as formas de atendimento. Sempre com um rigor semelhante ao nosso trabalho em consultório e, ainda melhor, transformando nossa forma de trabalho em consultório a partir das experiências – não confundir com experimentos – ali realizadas. Mas nunca como um “plano b” para os pobres. Somos aproximadamente nove analistas, três supervisoras e uma artista. Mais analistas entrarão para o grupo em 2018. Cada um de nós atende de três a dez pacientes regulares. Temos também um plantão que funciona aos sábados, onde as pessoas podem ir quando quiserem e ser atendidas pelo mesmo analista que as atendeu anteriormente. O grupo de analistas que atua no plantão é sempre o mesmo. Há alguns meses começamos também um trabalho em grupo aos sábados. O grupo é aberto, não é necessário retirar senha como nos atendimentos individuais nos plantões, que funciona por ordem de chegada. Minha impressão é que, diante da solidão na megalópole da cultura contra a política organizada, a combinação de trabalho terapêutico em grupo e os atendimentos individuais está sendo muito boa.

Em 2018 pretendemos também ampliar o aspecto de formação na Clínica. Ano passado apoiamos um curso do Margens Clínicas, coletivo companheiro da nossa caminhada, além de abrir espaço para um grupo de estudo de mulheres que estão interessadas na formação da subjetividade racial brasileira a partir de uma referência marxista e psicanalítica. No futuro, quem sabe, poderemos aos poucos produzir nosso próprio grupo de estudos e, assim, criar esse espaço de formação popular de psicanalistas, trazendo para os estudos de psicanálise os mais variados conteúdos interdisciplinares que circulam pela vida intelectual e afetiva popular. Talvez então a Clínica Pública de Psicanálise seja um trabalho contracultural, político, que realiza no agora o que poderia vir a ser um serviço público, construído de forma independente, de baixo para cima.

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  1. Cidinha Da Silva

    01/02/18 at 17:54

    Racismo gera pobreza. Até o Banco Mundial já admitiu isso há mais de 15 anos, mas, mesmo os chamados progressistas no Brasil tergiversam. O texto e, principalmente a entrevista, não apresentam nada que não saibamos (há tempos quase imemoriais), mas a gente dá um crédito e lê a matéria do início ao fim, procurando algo que robusteça nossas reflexões, um argumento novo… mas o que encontra é o de sempre. Vejam como o entrevistado tenta relativizar a contundência dos dados apresentados pelo entrevistador.

    PERGUNTA: Negros e mulheres são os grupos que mais sofrem com a pobreza, como aponta, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pode-se concluir que estes (em última instância, a mulher negra) são os grupos populacionais que mais sentem os efeitos psíquicos do que você chama de “exílio periférico”?

    RESPOSTA: Me parece que são pesquisas a serem feitas. A aposta é que sim, pelas características de classe com atravessamentos de gênero e raça que é o nosso próprio tecido social esgarçado.

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Feminismo

“Estupro culposo”, culpa da vítima?

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Por Sonia Coelho*

O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”

A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências

A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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Amazônia

Morte de líder Kumaruara revela a falta de assistência a indígenas no baixo Tapajós (PA)

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Picado por cobra, Alberto Castro Bispo só foi socorrido 6 horas após o comunicado à Secretaria Especial de Assistência Indígena de Santarém-PA

Reportagem originalmente publicada por Amazônia Real

Por: Tainá Aragão

Fotos: Leonardo Milano

Corpo de Alberto é recebido por parentes – Foto: Leonardo Milano / Amazônia Real

Santarém (PA) – “Perdemos mais um Kumaruara por negligência do desgoverno”. A frase em tom de desabafo faz parte da carta-manifesto publicada em 4 de outubro, dia em que morreu o líder Alberto Castro Bispo, 47 anos. O indígena foi picado por uma serpente surucucu e foi a óbito durante a travessia fluvial pelo rio Tapajós por falta do soro antiofídico e assistência médica. A morte causou revolta ao povo Kumaruara, que há anos reivindica acesso à saúde na região da Reserva Extrativista Tapajós- Arapiuns, no Pará, inclusive na pandemia do novo coronavírus.

Por estar no meio da floresta e pelo alto grau de envenenamento, Alberto só conseguiu chegar na aldeia Mapirizinho, na Resex Tapajós-Arapiuns, às 11 horas do mesmo dia, sendo duas horas após ter sido picado. Naquele momento, a comunidade se mobilizou para tentar a sua remoção por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), ambas com sede em Santarém. Mas a lancha da Sesai levou cerca de 6 horas para chegar e Alberto não resistiu ao translado, vindo a óbito nos braços de sua companheira. Eles estavam a caminho de Alter do Chão, no Baixo Tapajós, onde uma ambulância terrestre ainda o levaria para Santarém.

“Ele me olhava e dizia: ‘Minha velha, eu não vou resistir, não’. Se fossem buscar, eu tenho certeza que ele ia escapar. A ambulancha chegou e quando deu umas 18h15 ele deu o ataque no meio do caminho. Aí botei a mão no nariz dele e estava seco, eu estava ali do lado dele, sozinha, e falei para o motorista: ‘Ele já se foi’”, lembra Renita Melo, viúva de Alberto e mãe de seus seis filhos. “Tenha fé em Deus”, ouviu em resposta. Ela chegou a pedir soro aos socorristas, mas só ouviu: “Não temos. [Então] viemos na ‘tora’”, referindo-se a uma expressão local que quer dizer “sem resitar”.

Após o falecimento, parentes e parte da comunidade, em luto, fizeram uma manifestação no dia 5 em frente a Casa de Saúde Indígena (Casai) do município de Santarém. A líder indígena Luana Kumaruara explica que se houvesse mais infraestrutura, mortes poderiam ter sido evitadas. “Estamos em um período de pandemia, além de sofrermos com os impactos dos grileiros, ‘sojeiros’ e madeireiros, também temos que lidar com esse descaso com a saúde, porque dentro da Amazônia não termos esse soro pra picada de cobra. É absurdo, e isso tem que ser prioridade. Já perdemos dois Kumaruara no último mês [setembro] e não dá pra fazer vistas grossas por tudo que estamos passamos”, enfatiza.   

As mortes que Luana se refere são a dois idosos. Eles morreram em consequências de problemas cardíacos. Segundo ela, a comunidade Kumaruara também enfrentou problemas na liberação e remoção dos corpos.

pandemia de Covid-19, que também não dá tréguas, já registrou 1.414 casos confirmados entre os indígenas e 17 mortes de Covid-19 na Resex Tapajós-Arapiuns. Os dados são do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Guamá Tocantins, ligado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Não há registro de mortes pelo vírus entre os Kumaruara.

Na Resex Tapajós-Arapiuns, além dos Kumuruara, vivem também as etnias Tupinambá, Munduruku, Apiaká,  Borari, Maytapu, Cara Preta, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha e comunidades ribeirinhas tradicionais. A Resex fica na região conhecida como Baixo Tapajós, no ponto de encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas. Os Tupinambá são os mais atingidos pela pandemia da Covid-19.

Uma lancha para atender a todos

Velório do líder indígena Alberto Kumaruara 
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

O corpo de Alberto Castro Bispo foi levado à comunidade para o enterro ainda no dia 5, após 12 horas. Houve uma burocracia para liberação do corpo por parte do Instituto Médico Legal (IML), pois Alberto faleceu em trânsito e não havia um médico na ambulancha para atestar o óbito. Um médico de Santarém teve que fazer a perícia. O velório aconteceu na comunidade Mapirizinho, por volta das 15h, e o enterro entre 17h e 18h.

A Sesai justificou à comunidade que não teria disponibilidade de horário de voo para fazer remoção de helicóptero e tampouco contava com o serviço de um marinheiro para conduzir a ambulancha. O transporte fluvial foi adquirido em julho pela Sesai, mas está parado. “Estamos há meses esperando que a Sesai faça a contratação dos barqueiros. O Samu respondia que a ambulancha da Secretaria Municipal de Saúde estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível buscá-lo às 17 horas. Ou seja, apenas uma ambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios”, diz a carta-manifesto dos Kumaruara. 

Em nota à Amazônia Real, a Sesai, órgão subordinado ao Ministério da Saúde, por meio do Dsei Guamá Tocantins, diz “lamentar” o falecimento do indígena e se justifica: “Há seis Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (Emsi) na região, atuando de forma volante, levando atendimento de saúde para as aldeias”. Mas admite que faltam profissionais contratados. “O Dsei adquiriu oito novas embarcações fluviais para atendimento da região e os barcos já estão operando no transporte de urgência e emergência de pacientes e equipes de saúde. Os processos de contratação de barqueiros e horas-vôo encontram-se em tramitação, em data anterior ao acidente”, diz a nota.

Segundo Jean Cunha, coordenador do Samu em Santarém, há duas ambulanchas do município, que atuam na região ribeirinha da bacia de três grandes rios: Amazonas, Tapajós e Arapiuns. Apesar da equipe reduzida e da falta de infraestrutura adequada, o Samu alega que se tenta dar suporte às comunidades indígenas. “A Sesai está há um tempo muito grande esperando pra fazer contratação da equipe e isso sobrecarrega o Samu, pois a gente dá suporte para todas as comunidades vizinhas e também às indígenas. Eles não podem colocar as demandas só para o Samu; eles têm hora de helicóptero e uma ambulancha equipada, se a gente tivesse esse material faríamos muitas remoções. Ter o material e não saber usar, fica difícil”, enfatiza o coordenador.

Na Resex, são 75 comunidades, entre indígenas e não-indígenas, e apenas 10 Unidades de Saúde. As mais próximas da comunidade indígena Mapirizinho são Suruacá e Parauá, a cerca de 15 quilômetros de distância. Mas nenhuma das unidades possui o soro antiofídico, específico para conter o veneno da serpente, como explica o agente de saúde do posto de Suruacá, Djalma Lima.

“Não existe soro nem para picada de cobra, nem de aranha, nem de lacraia, porque não tem energia elétrica no posto, e não tem como armazenar. Além disso, para se ter esse soro dentro das comunidades, precisa de um médico, de uma infraestrutura adequada, com geladeira e não temos”. Djalma enviou, por intermédio de seu filho, um punhado de medicina natural para tentar amenizar a dor de Alberto. “Mandei pra ele uxi [fruto nativo] para conter o veneno, mas já era tarde”, diz o agente de saúde. 

Para Roselino Kumaruara, cacique da comunidade Mapirizinho e genro do falecido, o descaso com a população tradicional, indígenas e pescadores, que vivem no outro lado do rio é constante. “Essa situação é ruim. Perdemos um parente e não podemos mais trazer ele de volta, já houve outros casos como esse. Quando a gente liga, não tem. A gente fica triste, mas fica com raiva também. A gente tem muitas barreiras pela frente”, protesta o cacique.

Luta pelo acesso à saúde

Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

O caso de Alberto Castro Bispo não é isolado. Desde 2015 os povos indígenas do Baixo-Tapajós, por meio do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), reivindicam acesso à saúde indígena. Em 2016, houve a ocupação do Polo Base da Sesai, em Santarém. Após a ocupação, as comunidades indígenas obtiveram acesso ao direito da saúde por meio de uma decisão judicial a partir de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF).

Mesmo com o reconhecimento, a principal luta dos indígenas nos municípios de Aveiro, Santarém e Belterra continua sendo a mesma de cinco anos atrás: a criação de um novo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) para a região. Atualmente, Santarém está incluído no Dsei Guamá-Tocantins, com sede em Belém, a 1.375,8 quilômetros do município. Ou seja, cerca de 22 horas por transporte terrestre, o que dificulta ainda mais o acesso aos atendimentos.  

“Não dá pra gente ficar vinculado ao Dsei-Guamá-Tocantins que está em Belém, o que dificulta o diálogo. Por isso, estamos entrando com um documento no MPF para pressionar mais uma vez a criação do Distrito”, explica a líder Luana Kumaruara.

O Dsei Guamá Tocantins atende a uma população de 17.198 indígenas de 42 etnias, que vivem em 186 aldeias. O órgão conta com 31 Unidades Básicas de Saúde  e oito polos bases, além de cinco Casas de Saúde Indígena (Casais). 

Cortes na Saúde Indígena 

Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

A saúde indígena funciona por meio de um Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), coordenado pela Sesai. Articulado com o SUS, descentralizado, e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, o SasiSUS é organizado em 34 Dseis, distribuídos em todo o território nacional. Os distritos são responsáveis por prestar atenção primária em saúde aos povos que moram nas Terras Indígenas. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas.

Conforme o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo Inesc, Instituto especializado em orçamento público e Direitos Humanos no Brasil, a política de saúde indígena foi um capítulo significativo na ofensiva aos direitos destes povos.

“Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhões contra R$ 1,76 bilhões em 2018, cerca de R$ 280 milhões a menos. Isto certamente compromete o atendimento deste grupo da população, que tem diversos indicadores de saúde piores que a média brasileira, como suicídio, desnutrição e mortalidade infantil e algumas doenças infecciosas, como a tuberculose”, informa o relatório.

O relatório do Inesc aponta, ainda, que os cortes orçamentários demonstram que há uma violação de direitos direta sobre essas populações: “As medidas legislativas e executivas de iniciativa do governo demonstram que está em curso uma política de destruição intencional e sistemática dos modos de vida e da cultura dos povos indígenas.” 

Neste ano atípico, em meio à pandemia, as vulnerabilidades e os abismos sociais se mostram ainda mais profundos. Com o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, por meio da PEC 241 – também chamada de PEC 55, no Senado – e implementada por Michel Temer (2016-2019), a tendência é que as comunidades mais vulneráveis, incluindo os povos tradicionais, populações amazônidas, ribeirinhas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas e agricultores, continuem sendo impactadas pelos déficits na saúde e na educação. 

“Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. Vidas Indígenas Importam!”, afirma a última linha da carta-manifesto do povo Kumaruara.

Amazônia Real entrou em contato com a Secretária de Saúde do Pará para buscar informações sobre óbitos por animais peçonhentos na região, mas até o dia 13 não obteve resposta. 

Sepultamento do corpo do líder indígena Alberto Kumaruara morto por picada de cobra
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

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Índios

Povos indígenas do Xingu estão em situação crítica

Movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso lançam campanha conclamando sociedade para apoio a 10 aldeias da região do baixo Xingu

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Por: Gislayne Figueiredo e Rosa Lúcia Rocha – Consulta Popular – MT

Desde a chegada dos primeiros homens brancos no Brasil, o povo indígena vem sofrendo com a violência, o genocídio, os ataques à suas formas de vida e de cultura, tudo isso para se apropriar de suas terras e disponibilizá-las para aqueles que a utilizam segundo a lógica do lucro.

A mesma lógica utilizada – de apropriação da terra mediante o genocídio e etnocídio de povos inteiros – continua sendo utilizada como forma de expansão das fronteiras agrícolas e sob o discurso do desenvolvimento nacional: citamos algumas dessas violências cometidas em período não tão distante, entre as décadas de 1940 a 1960, que foram ricamente documentadas em 1967 pelo próprio Estado brasileiro por meio do chamado “Relatório Figueiredo”, um documento de mais de 7 mil páginas que está disponível na página do Ministério Público Federal e que merece ser conhecido por todos os brasileiros. No documento produzido pelo então procurador Jader de Figueiredo estão descritas inúmeras atrocidades praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios brasileiros naquele período, como assassinatos individuais e coletivos, torturas, prostituição de índias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, venda de artesanato indígena, venda de produtos de atividades extrativas e de colheita, arrendamento de terras, venda de gado, venda de madeiras, exploração de minérios, doação criminosa de terras, omissões dolosas, dentre outras.

Essas violências continuam até hoje e centenas de povos indígenas que procuram viver em harmonia com a mãe-terra, respeitando-a e preservando-a, têm seus territórios constantemente invadidos por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e pelo agronegócio que, de forma predatória, queimam e arrasam as florestas, as águas e os animais.

Os povos indígenas foram sendo cada vez mais expropriados e confinados em pequenos espaços de terra, os chamados Territórios Indígenas que, em geral, são cercados de fazendas por todos os lados e, muitas vezes, não possuem terras suficientes para garantir a sobrevivência com dignidade desses povos.

A história mostra que uma das estratégias mais utilizadas para matar os indígenas com o fim de tomar as suas terras é a contaminação de grupos com doenças vindas dos brancos, como a varíola, tuberculose e a epidemia de gripe e sarampo que dizimou diversas etnias no século XX.

O Estado brasileiro de hoje, sob o comando de Bolsonaro, impõe um governo de direita (tendendo para a extrema direita) que é declaradamente a serviço dos maiores inimigos dos povos indígenas, ou seja, grandes produtores do agronegócio, latifundiários, madeireiros e mineradoras. Assume uma postura ativa de incentivo e apoio àqueles que invadem e cometem violências contra os indígenas, não apenas se omitindo quanto ao seu papel de fiscalizador, mas propondo ações que violam cotidianamente os direitos constitucionais dessa população, reforçando práticas e discursos genocidas. 

De modo muito conveniente aos interesses desses grupos que dão sustentação ao governo Bolsonaro, o vírus Covid-19 chegou rapidamente aos povos indígenas, tal como pavio de pólvora, com evidentes indícios de negligência para com essa população, sabidamente mais vulnerável a doenças infecciosas.

Diante da pandemia que avança sobre seus territórios, muitos povos indígenas têm se organizado para sobreviver e resistir como podem para impedir a infecção pelo coronavírus, criando barreiras sanitárias nas aldeias, evitando ir às cidades e contando com a solidariedade dos amigos da causa indígena para acessarem produtos de higiene e ferramentas para a pesca, haja visto que o Estado não tem garantido as condições mínimas para a sobrevivência, para evitar o contágio e cuidar daqueles indígenas que foram contaminados.

No estado de Mato Grosso, de acordo com a contabilização feita pela Associação de Povos Indígenas do Brasil, em 11/09 já eram mais de 1600 indígenas contaminados e 73 mortos.

Um apelo por solidariedade aos povos do Xingu

Do Baixo Xingu, pelo whatsapp, chega um apelo por solidariedade pela voz de um jovem indígena, dirigido aos movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso:

“Companheiro, estou sem acesso a internet, a gente está isolado. Devido a pandemia, nós mudamos do polo central onde estávamos residindo até o ocorrido, nós perdemos uma família devido às complicações da Covid 19. Na nossa cultura, quando acontece alguma coisa, a gente busca outros lugares para estar com a família. E aí, a nossa família está construindo uma comunidade lá, um lugar pra gente, então não estamos tendo acesso à internet, por enquanto. Mas buscando apoio para em breve ter uma instalação lá pra gente, porque a gente precisa para dar continuidade ao nosso trabalho. Estamos agora bem próximos de um outro povo indígena, eu agora estou tendo bastante contato com eles e pretendo colocar eles em contato com vocês, acho importante a gente socializar, para que o povo branco possa entender como estamos organizados. Então, a gente tem bastante demanda aqui no nosso povo, aqui do Xingu e acredito que tem outros povos indígenas que também têm demandas devido a pandemia… Porque  mudou totalmente nossos hábitos. Tem chegado apoio, não muito, algumas coisinhas. O que o pessoal mais oferece é cesta básica, só que a gente precisa mais do que a cesta básica, como ferramentas, sabão, isqueiro, sabonete, produtos de higiene, faca, facão, lima, essas coisas. Já faz aproximadamente seis meses que a gente está parado aqui… A gente não consegue ter acesso fora da  TIX (Terra Indígena Xingu). Daí eu gostaria de ver se vocês conseguem mobilizar aí alguns parceiros, pegar carona, para que possam nos ajudar, mobilizar, articular para adquirir essas coisas e mandar pra gente também. A gente ficaria muito feliz com isso, as comunidades, que realmente estão precisando. Eu não procurei você antes porque eu também sei que vocês tem a demanda de vocês aí… Mas é que eu vejo aqui, as comunidades super precisam dessas coisas. E não é só cestas básicas. A gente tem alimento da gente aqui também, que a gente consome. Não quer dizer que a gente não precisa também das cestas. Mas não tanto quanto os materiais que as comunidades estão precisando para trabalhar e para dar continuidade no trabalho de roçada. Daí já passa um tempo, aí posteriormente ver o tempo da queimada pras roças, e depois vem o período do plantio das roças… Então a gente vai precisar de bastante material. Eu aguardo posicionamento seu, uma resposta sua para ver o que que você me fala, tá bom? Um abraço até mais.”

Diante da resposta positiva, o reforço:

“Obrigadão aí pela força companheiro, pela parceria também e pela compreensão também. A gente está há seis meses sem sair. Como você sabe o Xingu é muito extenso, são 16 povos. Tem chegado apoio, mas não atende todo mundo, não consegue atender todo mundo, então por isso eu estou falando com vocês. Eu conversei aqui com uns povos parentes, que tem mais ou menos duas ou três aldeias, e tem o meu povo também, né?  Então como a gente está em várias aldeias, então o que que foi a metodologia que eu montei lá. Eu achei que daria para gente dividir os trabalhos com outros parceiros. Então, aqui, a gente conversando, o pessoal aqui e o cacique lá de outra aldeia que fica na região onde a gente mora, a gente decidiu buscar algum tipo de apoio para 10 aldeias que são Parureda, Caiçara, Tuba-tuba, Maidicá, Camaçari, Aiporé, Paranaíta, Castanhal, Três Patos e Ciato. Dessas aldeias, a gente já fez um pequeno levantamento também, a maior população aqui é o povo Yudjá, dá um total de 150 famílias nas 10 aldeias. Então as ferramentas para trabalho, produto de higiene que não falei, o sabão, sabonete, bombril de lavar panela também, creme dental, escova de dentes, essas coisas também são bem vindo. Botinas, chinelos havaianas. Que a gente precisa além das cestas, né? Assim, que nem eu falei, a gente tem a comida nossa que é farinha, bijú, caça… A gente precisa também de óleo de comida, sal, açúcar também que a gente consome hoje, né? Não muito, mas a gente consome para adoçar algumas coisas. Então, por isso a cesta também é fundamental pra gente, é importante também, porque tem algumas coisas também que a gente usa também no nosso dia a dia. Então é isso!”

Essa é a história que motivou os movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso  – MST, Consulta Popular e Levante Popular da Juventude, em parceria com a Associação dos Docentes  da Universidade Federal de Mato Grosso (ADUFMAT) lançarem uma campanha conclamando toda a sociedade para doar ferramentas para trabalho na roça, pesca e materiais de higiene e limpeza para atender as necessidade de 10 aldeias da região do baixo Xingu. 

Nesse momento, onde a existência concreta desses povos está mais uma vez ameaçada, é importante nos atentarmos para a importância de fortalecermos a luta pela defesa de suas formas de vida, pela preservação de suas múltiplas e diversas culturas e de seus territórios. Não obstante, para além de apoiarmos a luta, é preciso que nossa relação com os povos originários seja de aprendizagem, que a gente possa aprender com a riqueza de suas culturas e com sua relação de respeito para com a natureza e com outros seres humanos.

As organizações conclamam toda a sociedade a se juntar a essa causa e contribuir com a preservação das comunidades indígenas do baixo Xingu, em Mato Grosso, doando produtos de limpeza, material de trabalho na roça e para pesca (vide lista abaixo). 

As doações podem ser entregues na sede da ADUFMAT, em Cuiabá, ou por meio de depósito na conta abaixo. Mais informações no face da AAMOBEP – https://www.facebook.com/aamobep/  – pelo email aamobep@gmail.com  ou pelo telefone (65)981094569.

Nome: AAMOBEP (Ass. Amigas/os do Centro de Formação e Pesquisa Olga Benário Prestes) 

CNPJ: 18.208.193/0001-36

Banco: BANCO DO BRASIL

Agência: 3325

Operação: 1

Conta: 100.113-2

LISTA DOS MATERIAIS SOLICITADOS:

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