O que o caso de estupro na Faculdade de Medicina da USP revela sobre a nossa sociedade

Faculdade de Medicina da USP

Por Iolanda Depizzol / Jornalistas Livres

O processo de denúncia, que teve origem após o evento relatado em fevereiro de 2012, durante uma festa pré-carnaval em período de recepção de calouros, promovida por estudantes veteranos do curso de medicina da USP nas dependências da universidade, se estende há 5 anos. O estudante da Faculdade de Medicina é acusado de colocar algo na bebida da vítima e posteriormente ele a estuprou enquanto esta se encontrava em estado de vulnerabilidade, sem pleno controle de seus sentidos e consciência. A vítima diz se lembrar apenas de “flashes” de memória durante o dia, e que após recobrar a consciência tentou se desvencilhar em alguns momentos mas tinha pouca força nos membros e dificuldade para levantar.

O laudo médico realizado uma semana depois indicou lesões leves e hematomas nos braços, no quadril e nádegas, e, devido ao tempo decorrido ficou inviabilizado evidências de ato sexual, porém o laudo psicológico revelou que a vítima apresentava sinais “coerentes com vivência de abuso sexual”.

O estudante nega todas as acusações, e afirma que houve relação sexual consentida. O mesmo estudante é acusado em outros cinco casos de violência sexual na universidade, dos quais, dois casos tramitam na justiça .

Há cerca de três semanas, no dia 07/02, o juiz Klaus Arroyo da 23ª Vara Criminal absolveu o acusado. Na sentença, a qual os Jornalistas Livres tiveram acesso, justifica a conclusão pelo artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal, quando na verdade existiam laudos psiquiátrico e psicológico, sendo este último, de um hospital referência em atendimento de vítimas de violência sexual, além da palavra da vítima e todas essas provas foram absurdamente desconsideradas. O juiz desconsiderou provas, colocou a palavra do agressor sobreposta à da vítima e sentenciou de forma inconsistente com a realidade dos fatos (o inverso do que a jurisprudência preconiza), alegando que haveriam depoimentos que sustentavam a versão do acusado, depoimentos estes, de testemunhas com grande proximidade do acusado e que deveriam portanto, serem tomados com ressalvas.

Segundo o juiz, tudo o que ela fez foi consentido, porque anuiu entrar no quarto do estudante e se locomover até ali por livre e espontânea vontade, dado esse controverso, pois, a vítima ingeriu bebidas alcóolicas, passíveis de conterem substâncias entorpecentes, o que demonstra que a vítima não estava lúcida e portanto, não tinha condições de consentir com qualquer ato.

O Ministério Público entrou com recurso da decisão do juiz no dia 13/02, e informou aos Jornalistas Livres que não dariam mais informações, uma vez que o caso se encontra em sigilo.

Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado que assiste à vítima no caso

O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que assiste a vítima no caso, considerou a sentença “injusta, míope à prova dos autos, e desconsiderou a palavra da vítima que tem valor imprescindível”, como recomenda a jurisprudência, quando em consonância com as provas e avaliações médicas e psicológicas. Quando um crime ocorre em um espaço privado, cujas únicas pessoas presentes são a vítima e o agressor, a palavra da vítima se torna elemento importante devido ao grande constrangimento causado à mesma e à sua superação dos medos de denunciar.

Quando o juiz sugere que por ela estar por vontade própria em um ambiente festivo, ingerindo bebida alcoólica, e que consentiu em entrar no quarto do estudante, indica que ela consentiu em ter relação sexual, ele está analisando a situação de um ponto de vista machista, enraizado na sociedade e no sistema judiciário. Uma visão que impede de ver no perfil de um “bom colega”, “bom aluno”, “bom profissional”, um agressor ou estuprador, imagem geralmente associada a uma figura monstruosa e desconhecida.

Em entrevista aos Jornalistas Livres, a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e da Rede Não Cala da USP, Heloisa Buarque de Almeida, pesquisadora sobre violência de gênero, nos traz um panorama histórico e cultural sobre casos de estupro nas universidades brasileiras e no país: “Primeira coisa: nem tão raro, nem tão incomum, e não necessariamente com pessoas desconhecidas”. Pesquisa quantitativa do IPEA de 2014 com base nos dados da saúde mostra que 70% dos casos de violência sexual ocorre entre pessoas que já se conhecem.

Pesquisa do IPEA de 2014 sobre os dados da saúde mostra que no geral, 70% dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima

E a não ser que a pessoa chegue muito ferida fisicamente nas delegacias, o que é igual na universidade, há uma suspeita sobre a vítima. Mas infelizmente, o mais comum em casos de estupro é que a vítima não necessariamente foi espancada. E na presença de tal situação, parece que aos olhos do judiciário, e da própria apuração da universidade, a denúncia feita pela vítima se torna duvidosa. Para Heloisa, essa dúvida está focada no imaginário de gênero, que abarca uma noção moral do que é uma “moça adequada”.

Se ela foi na festa e bebeu se desconfia da moralidade dela. Como se o fato de ir na festa tivesse junto a ideia de que ela esta disponível.”

Heloisa explica que ao analisar o histórico de pesquisas sobre casos similares de violência sexual desde os anos 90 até hoje, é comum que no processo jurídico se desconfie de novo da fala da vítima, em privilégio à palavra do réu, que diz que foi sexo e não violência. Isso porque, no geral, é muito difícil ter um exame de corpo de delito que comprove a violência sofrida. E se a pessoa foi dopada, por exemplo, ela possivelmente não irá apresentar marcas no corpo como quem ofereceu resistência.

Heloisa Buarque de Almeida, professora da FFLCH USP, da Rede Não Cala, e pesquisadora de gênero

Há uma dificuldade em entender a noção de consentimento, especialmente quando é entre pessoas que já se conhecem, tanto no sistema judicial quanto na universidade, segundo Heloisa. “A fronteira entre assédio e estupro é muito rápida, de repente passou para o outro lado”. Enquanto a paquera é recíproca, o assédio é insistente e agressivo. A paquera é um jogo de reciprocidade, mas existe um imaginário social machista de que quando a mulher diz que não está afim ou que não quer, ela está “se fazendo de difícil” para o homem. Quando indagado, o agressor vai dizer que ele não praticou violência, e sim que ele transou e que ela estava afim. Mas se uma pessoa está muito bêbada ou dopada, o que acontece além da universidade, como em festas no geral, especialmente agora no carnaval, aponta Heloisa, ela pode até se comunicar e expressar intenções, porém não significa que ela esteja consciente de tais manifestações. E por estar vulnerável, a violência é ainda mais grave.

Dentro da universidade, é especialmente associada a unidades que realizam trote, onde há uma noção da violência naturalizada como se fosse uma brincadeira, e também onde há uma forte noção de hierarquia. No caso da faculdade de Medicina envolve as duas coisas, e a hierarquia existe tanto entre professor e aluna, quanto a hierarquia geracional de entrada na universidade que existe entre veterano e caloura. E por isso o que é visto como uma “brincadeira” nos trotes, mas que é um sofrimento para as vítimas, se caracteriza como uma agressão, justamente pelo constrangimento causado, oriundo de uma relação hierárquica.

Cartaz da festa “Fantasias no Bosque”, uma das mais acusadas de agressões, assédios e homofobia

A definição de estupro na lei é caracterizada como um ato de constrangimento, e por isso podem existir “brincadeiras” sem violência aparente mas que se configuram um ato de constrangimento a uma pessoa, explica Heloisa. E para ela esses são os casos mais parecidos com a sociedade em geral, quando se houve histórias de vida de mulheres que foram assediadas por chefes, médicos, ou outras pessoas em situação superior na hierarquia, às vezes sendo o marido ou namorado.

“Estuprador” em geral é vista como uma “palavra forte”, associada ao imaginário do desconhecido monstruoso. Mas não é porque ele violentou uma pessoa que significa que ele se comporta como um monstro o tempo inteiro. O mais comum é justamente o acusado aparentar uma pessoa simpática e amável para um público, mas no espaço privado agir de maneira agressiva e violenta, o que ocorre também em relatos de violência doméstica.

Um caso exemplar foi o do médico Roger Abdelmassih, que só foi condenado porque a palavra da vítima foi levada em consideração, uma vez que eram várias que contavam uma história semelhante. Mas existem casos de agressores recorrentes, e que mesmo assim estão sendo absolvidos. O caso da jovem em questão na Faculdade de Medicina da USP é mais um entre outros cinco casos que se conhece na universidade que envolvem o mesmo acusado.

“O problema não é só punir e prender. É expor isto e mostrar e dizer que existe uma diferença entre sexo consentido e violência sexual.”

Heloisa aponta que nas pesquisas sobre processos judiciários, descritas no livro “Estupro: crime ou cortesia”, uma vez um juiz disse que a mulher era tão feia, que o estupro tinha sido uma cortesia. “É uma visão como se a mulher não pudesse escolher com quem ela quer transar, como se o assédio e o sexo sem consentimento fosse um elogio. Isso gera indignação, porque a pessoa está expressando um sofrimento ali, é uma humilhação!”

Pesquisa sobre processos jurídicos no Brasil, entitulado “Estupro: Crime ou Cortesia?”

A vítima é continuamente constrangida, inclusive para não realizar a denúncia. Relatos de jovens dentro da universidade contam como foram desencorajadas, e até mesmo ameaçadas, para não denunciarem, para não desvirtuar a reputação da casa. Ainda não existem dados quantitativos para a USP, mas estima-se que seja parecido com os dados do IPEA, de que cerca de 10% das mulheres apenas chegam a realizar a denúncia formal.

Nas universidades brasileiras existem poucos mecanismos de acolhimento e assistência às vítimas, e as regras das sindicâncias precisam ser revistas, pois não dão conta de um crime tão grave quanto o estupro. O processo deveria proteger a vítima, mas acaba colocando vítima e agressor frente a frente, o que é mais um constrangimento para quem já sofreu com a agressão e luta para superar o medo de denunciar.

Segundo pesquisa do IPEA de 2014, somente cerca de 10% dos casos de estupro viram denúncia formal

“Se não tem denúncia formal, está explícito que as pessoas não confiam na universidade pra denunciar.” Heloisa conta que é possível notar o período em que uma jovem sofreu violência na universidade pelo seu currículo, que passa de uma situação de bom desempenho e que de repente começa a ser reprovada, levando a uma irregularidade em sua carreira, e muitas vezes até mesmo à desistência. Para ela é necessário criar dentro da universidade ouvidorias, comissão de direitos humanos, e centros de referência de atendimento às vítimas, que fortaleça a rede de denúncias e de cuidado com as vítimas, propiciando sua permanência na universidade.

A assessoria de comunicação da Faculdade de Medicina da USP informou aos Jornalistas Livres que não vai se posicionar sobre um caso que corre na justiça, e que não envolve diretamente a unidade. E deixou claro que já houve uma sindicância interna há dois anos atrás por conta de um julgamento na Justiça, onde o aluno foi suspenso por 18 meses, sendo devidamente punido, não havendo necessidade de mais apurações na faculdade, por meio de sindicâncias, de outras denúncias de violência sexual.

 

 

 

 

 

 

 

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