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Não há fundamentação científica para a chamada “cura” gay

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Homossexualidade não é doença

Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da sua lista de transtornos. Em 1980, foi a vez do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) retirá-la. Finalmente, em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS). A Classificação Internacional de Doenças (CID) posicionou-se, em 1998, contra “qualquer tratamento psiquiátrico de ‘reparação’ ou ‘conversão'” de gays.

Porém, em 2017, um grupo de psicólogos no Brasil recebeu permissão judicial para praticar “atendimentos profissionais, de forma reservada, pertinentes à (re) orientação sexual” (trecho da decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho). Tal decisão desconsidera todos os atuais consensos científicos em relação ao tema. Se você quiser conhecer os argumentos técnicos da Psicologia e da Psiquiatria para uma crítica bem fundamentada à “cura” gay, esse texto pode lhe ser útil. Vamos lá!

No que os defensores da “cura” gay acreditam? Eles pensam que os psicólogos, se fossem autorizados, teriam a capacidade de mudar a orientação sexual de alguém. E que só não o fazem porque estão sendo impedidos por razões ideológicas.

Porém, a verdade não é essa. Mesmo que quisessem, os psicólogos não teriam como mudar a orientação sexual de ninguém. Sendo uma complexa combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, o fato é que a orientação sexual, uma vez constituída, não é passível reversões. Daí porque não falamos mais em “opção” e sim em orientação sexual: porque desejar alguém, seja ou não do sexo oposto, não é uma escolha do indivíduo. É uma intrincada determinação biopsicossocial que ocorre nos primeiros anos de vida.

A única coisa que nós, profissionais da saúde mental, conseguimos fazer é que as pessoas consigam conviver melhor com seus próprios desejos, sejam eles quais forem. E isso não é pouco pois tende a diminuir enormemente o sofrimento, o que acontece sem qualquer mudança estrutural na orientação sexual do paciente.

Resumindo é o seguinte: é um consenso internacional que a homossexualidade não é uma doença. Então está simplesmente equivocado oferecer “tratamento” para algo que não é doença.

Histórico das tentativas de “cura” gay

Até o final da década de 80, a literatura especializada apresentava uma quantidade considerável de estudos que tentavam mostrar a possibilidade de se mudar a orientação sexual de alguém. Gradualmente, porém, esses estudos foram diminuindo em número até praticamente desaparecerem nos dias de hoje (sim, juiz Waldemar, hoje quase ninguém faz pesquisas sérias sobre esse assunto). Atualmente, a maioria das “pesquisas” e organizações que defendem a “cura” gay estão fora das instituições científicas da Psicologia e da Psiquiatria, sendo mais igrejas e instituições confessionais.

Basicamente, existem dois tipos de terapias de reorientação sexual: as terapias aversivas e as terapias reparativas ou de conversão. As primeiras foram mais comuns na década de 70 e início dos anos 80 e consistiam no uso de choques eletroconvulsivos, injeção de drogas para induzir náusea e vômitos, uso de estímulos angustiantes, sugestão hipnótica, etc. A ideia era associar essas sensações negativas com estimulação sexual homossexual. Por exemplo: colocam um homossexual diante de um filme gay e injetam drogas para induzir vômitos ou tontura. Quem já viu o filme “Laranja Mecânica” sabe mais ou menos como são essas “terapias”. O personagem principal passa por um processo desses na tentativa de “curá-lo” de seus impulsos violentos.

Ao longo do tempo, por óbvias razões éticas, as terapias aversivas foram sendo substituídas pelas reparativas. Nestas últimas, as “técnicas” utilizadas (se é que podemos chamar isso de técnicas) são: oração, conversão religiosa, aconselhamento individual ou em grupo, grupos de pares.

O pressuposto dessas práticas é o seguinte: independentemente da complexidade da constituição da sexualidade humana, os comportamentos sexuais (os atos em si, as ações) são dependentes da vontade da pessoa e, portanto, estão sujeitos à avaliação moral. E, portanto, um indivíduo que julgasse seus próprios desejos como errados, poderia se forçar a agir de modo diferente.

Porém, a gigantesca maioria das pesquisas mais modernas tendem a achar que isso não é possível, ou seja, que não existe a possibilidade de se reverter a orientação sexual de alguém.

De acordo com uma pesquisa que analisou as terapias de reorientação sexual nos últimos 50 anos1, de modo muito sintomático, menos de 30% desses estudos faziam referência a alguma teoria psicológica e 61% deles não dispunham de taxas de desistência do processo ou taxas de retorno ao comportamento homossexual. Ou seja, a maioria dessas pesquisas não fizeram um acompanhamento ao longo do tempo para saber se a suposta “cura” se sustenta no longo prazo.

Se fizessem esse acompanhamento, veriam que muitos abandonam o “tratamento” e que a maioria das pessoas que se diz “curada” retorna a comportamentos homossexuais depois de um período. Justamente porque a orientação sexual não é reversível!

Para essas terapias, o sinal da “cura” seria a pessoa parar de se engajar em ações que envolvam a interação sexual com pessoas do mesmo sexo. Contudo, orientação sexual não é definida apenas de maneira comportamental. Existem pensamentos, fantasias e emoções que são também estruturas definidoras da orientação sexual de alguém.

Assim, forçando muito a barra, o que essas terapias de reorientação sexual fazem não é reverter a homossexualidade em heterossexualidade. Elas simplesmente reprimem a expressão de comportamentos homossexuais. Mas os pensamentos (pelo menos os inconscientes), fantasias e emoções não mudam. Ao associar a homossexualidade a coisas negativas, essas terapias não conseguem reconduzir a sexualidade homossexual de alguém para a heterossexualidade. Elas apenas reprimem aquela sexualidade, que é homossexual e sempre será, reprimida ou não.

Mas sabemos o que acontece com a saúde mental de alguém quando se sufoca sua sexualidade. Como Freud nos aponta, se reprimirmos nossa sexualidade ela reaparecerá transformada em um sintoma de um transtorno mental. Em 2002, uma pesquisa2 de larga escala entrevistou 202 pessoas que passaram por algum tipo de terapia de reorientação sexual. Destas 23 tentaram o suicídio durante a conversão e 11 após o “tratamento”. Muitas relataram que os efeitos negativos pioravam quando os terapeutas ou pastores as diziam que elas tinham escolhido a homossexualidade.

A pesquisa ainda identificou que vários participantes relataram depressão, queda da autoestima, aparecimento de imagens mentais intrusivas no pós-tratamento, impotência e até afastamento dos familiares. Isso porque muitos disseram que nesses tratamentos eles eram persuadidos de que supostas falhas nos cuidados que receberam de seus pais podem ter sido as causas de sua homossexualidade, o que é outra enorme besteira psicológica. Muitos relataram também isolamento social (pois queriam esconder que ainda eram homossexuais), perda da capacidade para relacionamentos de longo prazo e perda da fé.

Apenas 13% relatou algum benefício da terapia, sendo que somente 4% relataram que se transformaram em heterossexuais. Os outros 9% ainda lutam com seus desejos em relação a pessoas do mesmo sexo ou tornaram-se em celibatários (ou seja, para deixarem de ser gays, eles tiveram que abrir mão de sua sexualidade como um todo).   

Como conclusão, as pesquisas de revisão dos estudos sobre “cura” gay atestaram que: 1) eles têm graves falhas metodológicas; 2) não têm fundamentação teórica; 3) violavam princípios éticos e direitos humanos; 4) não só não funcionavam como também fazem muito mal para os que se submetem a elas.

Mathias Vaiano Glens é psicólogo formado pela USP e mestre pela mesma universidade. Atualmente, trabalha no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, é professor de Psicologia na FMU e atua como psicólogo clínico no consultório particular. (Twitter: @GlensMathias)

 

Notas

1 A Systematic Review of the Research Base on Sexual Reorientation Therapies (https://therapistlocator.net/imis15/Documents/Board/j.1752-0606.2008.00065.x.pdf)

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Perifericu no centro do Cinema Brasileiro

Perifericu, um dos mais relevantes curta-metragem dos últimos anos está disponível via streaming dentro da programação online da 8ª Mostra Tiradentes | SP. Legenda da foto de capa: Diária feita na Casa 1, casa de acolhimento de LGBTQIA+ em SP | Divulgação/Perifericú

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Desde o dia 1 de outubro iniciou-se em parceria com o SESC SP, a 8ª Mostra Tiradentes | SP, desdobramento da 23ª edição mineira do evento que ocorreu em janeiro de 2020. Na programação paulista, a mostra exibe entre outros filmes, os vencedores da edição mineira, como o curta-metragem “Perifericu”, um dos mais celebrados filmes do ano.

Por André Okuma * André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

A Mostra Tiradentes é um tradicional evento do calendário de festivais de cinema no Brasil, conhecido por uma curadoria atenta aos vislumbres e caminhos do pensamento e da produção cinematográfica no Brasil, tem apresentado uma diversidade de olhares e narrativas que extrapolam o centro expandido paulista e seus correlatos cariocas.

Com o tema “Imaginação como Potência”, a curadoria tenta elevar os ideais da mostra aos limites das possibilidades estético-políticas em diálogo com o nosso tempo, diga-se de passagem, tempo este de ascensão neofascista, censura, negacionismo, desmonte de políticas culturais e destruição da Cinemateca Brasileira:

A Imaginação como Potência é a temática que norteia esta edição do evento e propõe novas maneiras de ver, produzir e se relacionar com as imagens. Pretende gerar reflexão e ser propositiva diante de um cenário incerto, faz um convite para olhar adiante, desfrutar o cinema como arte e, em sua criação, vislumbrar os caminhos possíveis para a construção de novos rumos” (trecho do texto de apresentação do Catálogo da Mostra)

Diante desta perspectiva, um dos filmes premiados desta edição, o curta-metragem “Perifericu” é de certa forma a síntese disso. Premiado também como melhor curta-metragem no 27º Festival Mix Brasil e no 31º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo, o filme ficcional conta a história de Denise e Luz duas amigas pretas, LGBTQIA+ e periféricas que vivem no extremo sul de São Paulo.

Uma das qualidades aparentes à primeira vista no filme é seu desvio ante aos estigmas amplamente difundidos ao longo da história do cinema brasileiro, como as narrativas dramáticas das diversas violências sofridas, seja da desigualdade social, seja pelo preconceito sobre seus corpos, o filme, apesar de não ignorar estas questões, não é um filme-lamento, muito menos uma romantização disso, ele é uma insurgência estética e política profunda deste cinema já esgotado.   

Ancorado na afetividade, o que emerge das imagens em movimento é de um universo profundamente real e honesto, sem divagações estéticas, porém intensamente poético e consequentemente político. Corpos pretos, LGBTQIA+ e periféricos se impõem, desafiando o mundo ao mesmo tempo que o abraçam. Numa das cenas mais emblemáticas do filme, a personagem Luz (Vita Pereira, que também é uma das diretoras), dubla uma música gospel, no melhor estilo “I Will Survive” em Priscilla, a Rainha do Deserto,  o corpo trans cantando um louvor gospel na frente de sua mãe religiosa enquanto ela trabalha embalando pedaços de bolo pra vender, seguida de um plano detalhe de uma imagem de Nossa Senhora ao lado de um Barbie descabelada em cima da geladeira, é um desbunde!

O filme, ainda que seja “apenas” um curta-metragem, dá conta de imprimir uma certa potência estética do real em suas minúcias, mostrando cenas e situações tão usuais para quem é da quebrada, que soam mais realistas que muito documentário já feito, desde a arquitetura das casas e ruas, nos ruídos das discussões familiares, da presença do jornalismo sensacionalista policialesco nas salas de casa, do rap e das batalhas de mcs, e das influencia das igrejas nos moradores destes territórios. As cenas nos transportes públicos são um exemplo dessa impressão irremediavelmente real, quem mora longe do centro se identifica visceralmente, a diversidade dos corpos LGBTQIA+ se misturam aos amontoados de corpos trabalhadores comuns, enquanto outros trabalhadores informais preenchem os silêncios destes longos trajetos que ocupam grande parte da vida do trabalhador. A imagem da vida e da arte se fundem na espera do deslocamento.

Outra caraterística relevante deste filme é o seu modus de produção, dirigido de maneira coletiva por Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira, o curta conta ainda com uma equipe e elenco de mulheres, LGBTQIA+, pretos e periféricos, subvertendo todos os paradigmas da estrutura organizacional do cinema brasileiro feito até recentemente, no qual, o diretor, em geral um homem branco cis, hétero normativo e de classe média é o autor, e o resto da equipe, em sua maioria brancos, seus subordinados.

O peso político do filme também se dá na escolha das locações, filmado quase todo no extremo-sul de São Paulo, território onde vive a maior parte das realizadoras, trazendo para o filme imagens profundamente carregadas de significado histórico e afetivo para a produção do filme. Outra locação importante é a da cena inicial do filme, gravado na Casa 1 importante espaço simbólico para a comunidade LGBTQIA+, pois é uma casa de acolhimento de LGBTQIA+ no centro da cidade que atende pessoas expulsas de casa e em estado de alta vulnerabilidade.

O filme abre e fecha com as personagens olhando diretamente para a câmera encarando o público, o filme se posiciona sem hesitar e reivindica a partir das imagens em movimento e sons o controle de suas próprias narrativas, aqui, e como potência imaginativa para vislumbrar possíveis caminhos para o cinema no Brasil, inclusive nos seus métodos e procedimentos de produção, “Perifericu” reconfigura novas e genuínas representações antes invisibilizadas e marginalizadas, e a insere no centro do nosso melhor cinema feito nos dias atuais.

Sobre o filme:

Perifericu (2019)

Sinopse: Denise e Luz cresceram no meio de canções de rap, louvores de igreja e passos de vogue. Da ponte para cá, é preciso aprender que o primeiro princípio para poder acessar a cidade é estar viva.

Este filme faz parte da Mostra Foco da 8ª Mostra Tiradentes | SP.

Brasil (SP) | 20 min. | Ficção | 14 anos

Direção: Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira

Roteiro: Winnie Carolina e Direção

Fotografia: Nay Mendl, Rosa Caldeira e Wellington Amorim

Produção Executiva: Nayana Ferreira e Wellington Amorim

Elenco: Ingrid Martins e Vita Pereira

O filme pode ser visto no link: https://sesc.digital/conteudo/cinema-e-video/54371/perifericu disponível até o dia 05/10/2020.

Mais informações sobre a mostra em http://mostratiradentessp.com.br/

*André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

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“É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí” diz primeira apresentadora transgênero da Bolívia

Leonie Dorado, de 26 anos, conclama que as pessoas da comunidade trans do seu país ocupem os espaços “comuns” da sociedade

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Por Maycon Esquer

Aos 26 anos, Leonie Dorado acaba de entrar para a história da televisão em seu país como a primeira apresentadora de notícias transgênero da história televisiva da Bolívia. Mas a conquista pessoal também é histórica  na comunidade LGBTIA+ da Bolívia, onde ser trans e ao mesmo tempo ocupar espaços de trabalho, principalmente com tamanha visibilidade nacional, pode soar como uma realidade inalcançável. “É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí”, afirma Leonie Dorado.

O acontecimento, histórico, foi fortemente comemorado pela comunidade LGBT do país latino-americano, assim como da América do Sul, e representa um passo importante para um horizonte de inclusão trabalhista da comunidade trans boliviana. “Foi uma felicidade muito grande, estar à frente de um noticiário é uma responsabilidade jornalística muito grande”, conta Leonie.

Não é a primeira vez que Leonie se torna a primeira mulher trans a ocupar espaços na sociedade boliviana. Antes de entrar para a história da televisão boliviana esse ano, em 2019, a ativista, que também é musicista, entrava para a história da música do seu país ao se apresentar no “Festival Internacional Festi Jazz”, evento que acontece todos os anos desde 1987.

“Concentrado na cidade de La Paz, o festival de jazz recebe gente do mundo todo, inclusive artistas do Brasil. Eu resolvi encarar esse desafio ano passado e consegui”, relata Leonie relembrando o esforço e a disciplina que teve. “Eu penso que foi tudo atitude. Levei quase seis meses para me preparar para esse festival e no final deu tudo certo”, declara orgulhosa.

Leonie Dorado nasceu em La Paz, capital administrativa da Bolívia. Estudou música clássica desde os seis anos de idade no Conservatório Nacional de Música, onde aos 18 anos também estudou licenciatura em Música. Aos 21 anos decidiu estudar Comunicação Social em Buenos Aires, Argentina. Em 2015, depois de concluir a graduação no exterior, Leonie decidiu regressar à Bolívia e iniciar sua transição de gênero. Ao mesmo tempo, começou a se dedicar a outras coisas.  

Apesar da formação, Leonie conta que é essa a primeira vez que exerce a profissão de jornalista e que sua entrada nos meios de comunicação surge exatamente como um projeto da Abya Yala Televisión, canal boliviano de alcance nacional operando desde 2012, que atualmente tem apostado na “construção e difusão dos direitos individuais e coletivos que fortalecem o respeito à diversidade e inclusão social”.

 Assim como qualquer apresentadora de noticiários do seu país, em Ahora Bolívia, programa em que ela é âncora na Abya Yala Televisión, Leonie trata de temas nacionais e internacionais desde a cidade de La Paz, a segunda cidade mais populosa do Estado Plurinacional da Bolívia. “Abya Yala está mostrando uma pessoa trans não mais de um ângulo físico, como se fossemos um experimento humano, mas sim nos mostrando em um espaço social comum, como é o espaço na televisão”, explica Leonie.

“Eu tive apenas um mês de preparação para estar à frente de um noticiário”, comenta Leonie ao relatar o desafio ancorar o “Ahora Bolívia”, em um projeto que surgiu em plena pandemia. “No começo, eu estava muito nervosa mas agora, que é o segundo mês que estou nos meios de comunicação, já percebo um grande avanço. As pessoas que me sintonizam hoje em dia podem ver esse crescimento que venho tendo no meu desenvolvimento jornalístico”, declara.

FOTO:  Arquivo Pessoal

Puro Ativismo

A jornalista conta que o que a motivou a fazer parte da iniciativa da Abya Yala Televisión foi, principalmente, ver a “situação lamentável” das pessoas trans em seu país.

“Mundialmente, as ONGs e outras organizações que zelam pelos direitos humanos da comunidade LGBTIA+ têm hoje em dia uma preocupação especial com transgêneros, porque são as pessoas que mais enfrentam discriminação dentro e fora da comunidade”, revela Leonie.  

A jovem tem rompido barreiras no seu país ao mostrar, com o cargo que ocupa em uma cadeia de televisão nacional, uma pessoa trans exercendo uma “profissão comum” em um “espaço comum”. “Mostrar uma pessoa trans exercendo uma profissão comum,  como uma jornalista, advogada, veterinária, ou engenheira, é muito importante”declara Leonie ao argumentar sobre o significado da sua conquista para a comunidade trans.

Coletivo LGBTIA+ na Bolívia

Em termos legais, nos últimos anos a Bolívia teve avanços quanto à garantia de direitos à comunidade LGBTIA+. O artigo 5º da Lei Contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação – Lei Nº 45 de 2010 – proíbe a discriminação por motivos de orientação sexual e de identidade de gênero e o artigo 281º do Código Penal do país – modificado pela Lei Nº 45 – tipifica como delito qualquer ato de discriminação baseado na orientação sexual e/ou identidade de gênero. A promulgação da Lei Nº 807, em 2016, também estabeleceu a criação do procedimento para a troca do nome próprio e permitiu a utilização de nome social à comunidade transexual e transgênera do país. Porém, o coletivo LGBTIA+, especialmente a comunidade trans, à qual Leonie é parte, segue tendo tropeços.

“A Bolívia é um país onde temos muitas leis aprovadas, como a Lei de Identidade de Gênero e agora há pouco também se aprovou uma lei que permite a pessoas do mesmo sexo casar-se legalmente em um matrimônio civil”, esclarece Leonie. “Mas como em qualquer outro país, no geral podemos falar de América Latina, a comunidade trans segue tropeçando, não consegue ter acesso a fontes trabalhistas, não pode formar uma família, não pode adotar”.

Trabalhar na pandemia

Com mais de 80 mil casos de coronavírus e mais de 3000 mortes, a Bolívia atualmente enfrenta um caos desencadeado não apenas pela pandemia mas também pela ebulição política que aconteceu junto com o final de 2019. Entre outubro e novembro do ano passado, os bolivianos foram espectadores de um turbulento processo que envolveu a deposição e fuga de Evo Morales Ayma – presidente eleito pelo partido “Movimento ao Socialismo” – para o México, e posteriormente para a Argentina, onde atualmente se encontra exilado, e a posse de Jeanine Añez – atual presidente interina do país andino do partido liberal-conservador Movimento Democrático Social .

O conflito ainda é lido de duas maneiras pela população boliviana cada vez mais polarizada. Parte dos bolivianos acredita na narrativa de que o caso se resume à fuga de um líder populista por ter fraudado as eleições. Para outra parte, no entanto, houve um golpe de estado movido por forças políticas das classes médias urbanas e da direita do país, que não conseguiu se eleger em nenhuma das últimas eleições presidenciais. 

Os efeitos da pandemia do novo coronavírus na Bolívia, então, se cruzam não apenas com a carência hospitalar mas também com o cenário dramático da política atual. “Eu penso que se tivesse feito isso em uma época que não tivéssemos que viver essa pandemia, de todas as formas teria sido complicado, mas agora é duas vezes mais complicado”, explica a apresentadora sobre como tem sido o seu trabalho. “Na Abya Yala temos protocolos de biossegurança muito rigidos. Quando apresento o jornal, meu companheiro está a quase dois metros de mim”.

Bastidores do noticiário | FOTO: Arquivo Pessoal

Manifesto à comunidade trans

Outra bandeira do ativismo de Leonie, além da garantia de direitos básicos à comunidade LGBTIA+, é a luta pela conscientização dos riscos de tratamentos invasivos na população trans durante o período de transição. A ativista intitula como “O Surgimento da Nova Ideologia Pós-Moderna” a corrente que defende que a comunidade trans “não desperdice anos de vida lutando contra seus próprios corpos”, não se submetendo a cirurgias plásticas invasivas ou ao uso indiscriminado de hormônios. 

“Existem problemas de trans-feminicídio, sim, claro que existem. As pessoas ainda matam outras simplesmente por serem trans”, afirma Leonie, que durante a transição não fez uso de hormônios e nem se submeteu a operações plásticas. “Mas o que eu quero esclarecer é que outra grande porcentagem de morte de pessoas trans são os tratamentos invasivos, e não estamos falando de deformações corporais, estamos falando de tumores cancerígenos, problemas graves”, insiste.

Enquanto ocupa o seu espaço no país latino-americano e tradicionalmente conservador, Leonie amplia a sua voz para abrir caminhos para que a comunidade trans do seu país também possa reivindicar o seu espaço na sociedade.

“Pelo simples fato de você ser um ser humano, você já tem direitos trabalhistas, independente do gênero”, diz Leonie. “A sociedade sempre escondeu as pessoas trans, não só nessa época. Mas as pessoas trans podem e merecem ocupar espaço na sociedade e por isso temos que ir abarcando esses espaços”.Leonie Dorado sentencia: “Não é fácil! As coisas não vão ser cor de rosa do dia para a noite. No nosso caso, sempre temos que nos esforçar duas vezes mais para que nossos frutos sejam reconhecidos, por isso é muito importante não desistir e seguir adiante”. Um  exemplo disso é a sua própria história, que neste momento renova as esperanças de inclusão social e representatividade da comunidade trans da Bolívia.

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Ativistas lançam cartilha com Projetos de Lei LGBTIA+ nos Estados

Grupo mapeou todos os projetos de lei apresentados nas assembleias legislativas entre 2018 e 2020

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Movidos pelo interesse em compreender a realidade das pautas LGBTIA+ no legislativo dos estados brasileiros, os jovens Marcos Salesse, Hugo Martins, Matheus Gonçalves e Adeilson Viana, desenvolveram a Cartilha “LGBTIA+ no Legislativo dos Estados”. O material foi publicado nesta terça-feira (28), e apresenta um panorama dos Projetos de Lei (PL), criados entre 2018-2020, que tramitam nas Assembleias Legislativas dos estados brasileiros, e também da Câmara Legislativa do Distrito Federal. A ação integra um trabalho feito pelo grupo para o programa Todxs Embaixadorxs (Todos Embaixadores), da startup social Todxs Brasil (Todos Brasil).

            Com o levantamento, o grupo conseguiu identificar uma baixíssima presença das pautas LGBTIA+ no legislativos de diversos estados. Algumas dessas unidade federativas não apresentaram nenhum PL que tratasse das demandas desta população, como foi o caso de Santa Catarina, Rondônia, Acre, Amapá, Alagoas e outros.

Capa da cartilha disponível em https://bi.tly/lgbtianolegislativo

            Disponibilizado gratuitamente na plataforma Issuu, os interessados podem não só conferir a cartilha digitalmente, como baixar a íntegra do material. Segundo um dos desenvolvedores do conteúdo, essa é mais uma das formas de munir os LGBTIA+ com uma ferramenta fundamental na luta pelos direitos dessa população.

“Com a cartilha a gente consegue visualizar um panorama geral da situação das nossas pautas no Brasil”, explica Marcos Salesse, estudante de jornalismo na UFMT. “É fundamental que a gente tenha materiais como esse, assim podemos entregar aos nossos uma ferramenta imprescindível na luta por direitos, que é a informação”.

            Para acessar a íntegra da cartilha, clique aqui.

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