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América Latina e Mundo

Na Venezuela, o voto à beira do abismo

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Por Igor Fuser, na Carta Capital

Só uma vitória do candidato opositor Henri Falcón impedirá que as autoridades dos Estados Unidos, os políticos antichavistas, a mídia internacional e os governos alinhados com Washington na Europa e nas Américas denunciem as eleições deste domingo 20 de maio na Venezuela como uma trapaça.

Nunca, em qualquer eleição venezuelana nacional ou estadual nos últimos 20 anos, verificou-se algum caso de fraude, mas os inimigos da Revolução Bolivariana antecipavam, antes mesmo da abertura das urnas, que o resultado da consulta eleitoral seria falso.

Para justificar a campanha de desestabilização do governo de Nicolás Maduro e contestar qualquer iniciativa desse presidente, qualquer acusação é considerada válida, até mesmo os maiores absurdos, como fez em 2015 o então presidente estadunidense Barack Obama ao classificar aquele país sul-americano como uma “ameaça extraordinária” aos EUA.

Quantas bombas atômicas têm a Venezuela, quantos mísseis intercontinentais, quantos porta-aviões, quantas toneladas (ou litros) de armas químicas? Quantos ataques terroristas ocorreram em território estadunidense com envolvimento das autoridades de Caracas?

Nenhum, mas com base nessa definição, o governo estadunidense iniciou uma escalada de sanções e outras restrições comerciais e financeiras que têm agravado enormemente o sofrimento do povo venezuelano. A expectativa de Washington – até o momento, vã – é a de que a escassez de produtos essenciais, como remédios e alimentos, empurre a população a se sublevar contra os governantes.

A verdade é que se alguém ameaça alguém nessa história, isso ocorre no sentido contrário ao adotado pelos EUA. Ou pode ser entendida de outra forma a afirmação do presidente Donald Trump, que, em agosto do ano passado, cogitou em voz alta a “opção militar” para depor Maduro?

Depois da desastrosa invasão do Iraque, em 2003, é improvável que os EUA despachem tropas para enfrentar diretamente os bolivarianos. A Venezuela conta com um exército profissional, equipado com modernos aparatos russos, e se mostra fortemente motivado a defender seu país e o projeto chavista. Por isso Washington prefere a opção perversa de intensificar o assédio financeiro contra a Venezuela até que, exaustos, os venezuelanos substituam seu governo por meio de um golpe civil ou militar, ou uma combinação das duas vias.

Para o caso de que esse objetivo demore muito a se realizar, existe um Plano B. O Comando Sul das Forças Armadas dos EUA planeja a intervenção externa na Venezuela por uma “força multilateral” a ser formada por contingentes militares da Colômbia, Brasil, Panamá e Guiana, com apoio da Argentina e sob o controle do Pentágono.

Essa intervenção (“humanitária”, é claro) seria antecedida por uma degradação geral das condições de vida na Venezuela e por uma intensificação do conflito político ao ponto confronto armado e, possivelmente, a ocupação de territórios por forças insurgentes.

O que não está claro nessa estratégia é o grau de disposição dos países envolvidos. A Colômbia, por exemplo. Uma vitória do candidato ultradireitista Iván Duque nas eleições (bem próximas) facilitaria as coisas, mas certamente haverá forte resistência na sociedade colombiana a um novo conflito militar, justo agora que o país, aos trancos e sobressaltos, vem tentando pôr fim a uma conflagração interna amarga e prolongada.

Para o Brasil, o Plano B dos falcões de Trump também traz complicações. Estariam os militares brasileiros, em pleno período eleitoral ou na transição para um novo governo, dispostos a embarcar numa aventura desse tipo? Na nossa história militar, um dos traços mais marcantes é baixa propensão a se envolver em conflitos externos. As Forças Armadas brasileiras – sempre muito aguerridas na hora de reprimir, torturar e massacrar opositores políticos – recusaram convites dos EUA para enviar tropas às guerras da Coreia e do Vietnã.

Uma guerra civil na Venezuela é tudo o que o Brasil não precisa. Um conflito desse tipo traria para o lado de cá das nossas fronteiras um fluxo de refugiados mil vezes superior ao dos imigrantes cujo ingresso tem causado sérios problemas. Tráfico de armas e presença de forças beligerantes em território brasileiro são outras consequências indesejáveis fáceis de prever – sem falar dos efeitos tóxicos de um conflito sangrento, polarizado no eixo esquerda/direita, nas beiradas de um Brasil em crescente processo de radicalização política.

Quanto às eleições em si, sua própria realização é uma vitória para o governo de Maduro, diante dos ataques externos e das imensas dificuldades de um país que teve uma redução de quase 50% no seu PIB em apenas três anos.

Maduro, se reeleito, relegitimará o bastão de comando que recebeu das mãos de Hugo Chávez, ganhando fôlego para medidas econômicas de alto impacto. Sem a necessidade de agradar o eleitorado para evitar o naufrágio nas urnas, ele tentará um redesenho da economia doméstica para enfrentar a hiperinflação e o descontrole cambial.

Mas o assédio estadunidense é feroz e a margem de manobra financeira, cada vez mais estreita, sobretudo se Trump cumprir a ameaça de suspender as importações de petróleo venezuelano.

Mesmo sem despertar entusiasmo como seu ilustre antecessor, Maduro ainda é visto por uma parcela significativa dos venezuelanos como uma alternativa preferível a endossar os opositores teleguiados de Washington, que no ano passado levaram o país ao caos com sua irresponsável intentona insurrecional.

O atual presidente, com todos os seus erros (o maior de todos, a hesitação perante o colapso econômico), consegue se apresentar ao eleitorado como um líder seriamente empenhado em resolver a crise e em proteger as conquistas sociais do chavismo.

Ruim com Maduro, pior sem ele – é um cálculo racional para a população beneficiada por um pacote de políticas sociais sem paralelo em qualquer lugar do planeta nestes tempos de retrocesso neoliberal.

Para se ter uma ideia, há apenas duas semanas a Misión Vivienda – uma versão local do Minha Casa, Minha Vida, só que bem melhor – entregou sua moradia número 2 milhões, num país de pouco mais de 30 milhões de habitantes. Apesar da crise.

chavismo marcha unido para as urnas, enquanto a oposição se encontra dividida e desmoralizada após o fiasco das “guarimbas” (protestos violentos com bloqueio de avenidas e depredação de edifícios e equipamentos públicos) e o sucesso de Maduro em formar uma Assembleia Constituinte com respaldo eleitoral.

A campanha de Falcón apresenta um dilema para o eleitor “esquálido” (tradução livre de “coxinha” em venezuelanês). A abstenção – atendendo aos apelos dos principais partidos opositores e dos EUA – garante um novo mandato para Maduro. Por outro lado, o voto em Falcón, caso ele seja derrotado, só servirá para ajudar o governo a se legitimar nas urnas, com a ampliação do índice de comparecimento eleitoral.

Ainda assim, nota-se nas últimas semanas uma expressiva migração de eleitores anti-chavistas que pretendiam se abter em favor de Falcón, com sua candidatura movida a pragmatismo. Mesmo que no período recente a escassez no país tenha se amainado, os produtos chegam às prateleiras com preços inacessíveis à maioria da população. A dor dos venezuelanos é intensa, e a descrença na capacidade de Maduro em tirar o país do atoleiro se destaca como o maior trunfo da oposição.

É impossível exagerar o que está em jogo nestas eleições. O processo político na Venezuela é o que existe no mundo de mais semelhante ao que se possa chamar de revolução. Essa é a terceira vez que um país latino-americano se aventura pela busca apaixonada da superação do capitalismo e da dependência externa pela via pacífica.

A primeira vez foi no Chile sob o governo socialista do presidente Salvador Allende, tragicamente derrubado por uma aliança entre a burguesia local e o imperialismo estadunidense no golpe militar de 1973.

A segunda tentativa foi o regime sandinista na Nicarágua, iniciado com o levante vitorioso contra a ditadura de Anastasio Somoza em 1979 e encerrado, dez anos depois, com a derrota eleitoral dos sandinistas para a candidata da oposição empresarial, Violeta Chamorro, fortemente apoiada por Washington.

Nesse intervalo, o presidente Ronald Reagan e seus guerreiros frios infernizaram a vida dos nicaraguenses com as incursões dos guerrilheiros direitistas “contras”, financiados e treinados pelos EUA. A guerra civil matou mais de 40 mil habitantes e levou o governo sandinista a dedicar 75% do orçamento público à defesa do país.

Nas eleições de 1989, a opção era explícita. O voto por Daniel Ortega – o líder sandinista que, por suprema ironia, regressou à presidência nicaraguense, pelo voto, e agora sofre nova tentativa de desestabilização a partir de Washington – significaria a continuidade da guerra, da miséria e do derramamento de sangue.Já a vitória da candidata da direita, ao saciar o apetite voraz dos agressores, abriria o caminho para a paz.

Os venezuelanos atualmente são vítimas de uma chantagem similar. Resta saber qual será a sua opção.

* Doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo, professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.A comunidade internacional alinhada aos Estados Unidos continuará a denunciar a eleição como farsa em caso de vitória de Maduro

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Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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