Tchau, Querida é um road movie popular do Golpe, um exercício de cinema direto em que o tempo presente, o fato, participa como personagem transversal da trama. Um filme de camada única, que busca o tempo todo as contradições, os conflitos e os desejos dos manifestantes que foram para Brasília e que fazem a ponte do abismo ideológico que caracteriza a disputa política no país até os dias de hoje. Um filme cru, seco, que não explica o que mostra, mas que tem uma intuição quase profética do que emergiria do Brasil pós-golpe.
Mas, para falar do Tchau, Querida, eu tenho que voltar em fevereiro de 2016, quando Maria Carol me convidou para participar de uma reunião de pauta dos Jornalistas Livres no antigo Hotel Cambridge – na época ainda uma ocupação liderada pela Carmen Silva. Essa reunião foi conduzida pela Laura Capriglione, uma espécie de espinha dorsal dos Jornalistas Livres. A pauta era o depoimento do Lula no Fórum da Barra Funda, cancelado pela justiça em cima da hora, mas que se transformou numa batalha campal entre militantes de esquerda e meia dúzia de integrantes do movimento Vem pra Rua, protegidos pelo batalhão de choque, que em provocação e desacordo com a orientação da própria polícia, inflou um boneco do Lula com roupa de presidiário, conhecido como Pixuleco, gerando revolta entre os manifestantes contrários. Kátia Passos flagrou o drible espetacular que um estudante deu sobre o aparato militar, furando o boneco com uma faquinha de cozinha para delírio da multidão. Foi meu primeiro vídeo para os Jornalistas Livres, “A Batalha do Pixuleco”.
Um mês depois, em 04 de março, houve a condução coercitiva do Lula. Nove dias depois a maior manifestação pró-impeachment. Dia 16, nomeação de Lula para a Casa Civil e divulgação do grampo ilegal da presidente Dilma no Jornal Nacional. Mais dois dias e Gilmar Mendes suspende a nomeação de Lula. E nesse clima fomos para Brasília fazer a cobertura jornalística da votação na Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016.
Mil quilômetros de São Paulo a Brasília num Fiesta Vermelho comunista, com o devido Terço pendurado no espelho retrovisor, ao lado do Sato, Ioiô e Thadeu entoando o mantra da derrota: Não vai ter golpe!
Éramos 15 pessoas na equipe dos Jornalistas Livres, minha tarefa não era ir atrás de notícia, e sim gravar um filme sobre a cobertura da imprensa alternativa sobre o processo de impeachment. A mídia independente não era bem uma novidade, mas se consolidava como ente importante na disputa de narrativa jornalística com a imprensa comercial depois da popularização das redes sociais.
A ideia inicial fazia sentido, mas a falta de contraponto – a grande imprensa não saia dos estúdios e os poucos jornalistas que tive contato se recusaram a dar entrevistas – se transformou em interesse pelos milhares e milhares de manifestantes que se deslocaram de todos os cantos do país para acompanhar esse momento histórico da política. Mas, se você reparar, tem umas pitadas de “Profissão Repórter” durante a montagem.
Brasília é imensa, o sol é escaldante, eu estava sem um puto no bolso, o acampamento vermelho ficava no Estádio Mané Garrincha e o acampamento verde e amarelo no Parque da Cidade, uns três quilômetros de distância um do outro, mais uns dois até a Esplanada, onde aconteciam os eventos. Entre votações da Câmara e do Senado, foram quatro dias indo de lá pra cá, de cá pra lá, entre vermelhos e amarelos, atravessando o imenso muro cinza instalado para confinar a plateia no devido lugar que lhe cabia no espetáculo da democracia.
Dizer que foi uma experiência angustiante entrar em contato com desejos, ideais e leituras do mundo tão distintas seria chover no molhado. Fato é que de um lado existia um povo sedento, bravo, disposto a abraçar Eduardo Cunha e Michel Temer “pelo fim da corrupção e da ditadura comunista que destruiu o país”; e, do outro, um povo agarrado às conquistas sociais da última década gritando pela legitimidade do voto popular que elegeu Dilma diante de um golpe parlamentar visto como uma orquestração da elite política e econômica.
Um mês depois da votação na Câmara nós viríamos a conhecer o famoso áudio do Jucá, que abre o filme, anunciando “o grande acordo nacional”.
É importante notar que nesse período, Aécio Neves e outros caciques do PSDB já haviam sido pegos em diversos escândalos de corrupção, a direita vivia um vácuo de liderança, que concentrou a oposição ao governo em torno de Temer e Cunha para derrubar a presidente eleita. Enquanto o inimigo claro dos manifestantes amarelos era o PT, Lula e a ditadura comunista, para os vermelhos o inimigo era o sistema, representada principalmente pela Rede Globo.
De volta a São Paulo eu reunia em torno de dez horas de material filmado. Como autor das entrevistas e imagens, achei por bem dividir a direção com um parceiro de ideais e de ideias, e convidei o jornalista Vinícius Segalla para essa tarefa. O processo de montagem durou uns dois meses de intensa disputa por cenas, falas e personagens. Rigor da informação versus necessidade estética, clareza dos fatos versus opção dramática. Madrugadas acesas na ilha de edição improvisada na bancada de uma padaria caseira. Era o primeiro filme do Vinícius e meus primeiros passos no jornalismo. Acho que o resultado agradou aos dois.
Enfim, depois de algumas exibições muito especiais, de muitas contribuições de amigos para que esse filme fosse feito, Tchau, Querida segue pro mundo. Sem muro e com todas as cores.
Bom filme!
3 respostas
Registro sensível da história. Vale muito ver!
Vou ver.
Emocionante! Melhor relato da história para meus filhos e pra mim! Me orgulho por assumir um lado e pelo que percebi durante o tempo é que nao estava errado!