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América Latina e Mundo

De “carne y hueso”

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Por Camilla Hoshino e Gibran Mendes, com fotos de Rafael Oliveira para os Jornalistas Livres e Brasil de Fato

Curitiba parou na semana passada. Não havia outro assunto que não fosse a chegada de uma das mais proeminentes figuras da política internacional: José Alberto Mujica Cordano ou, simplesmente, Pepe Mujica. O atual senador e ex-presidente do Uruguai veio até a capital paranaense falar para um grupo de 3.500 pessoas que participaria do Seminário “Democracia na América Latina”, promovido pelo Laboratório de Cultura Digital. Eram milhares. Jovens, em sua maioria.

A organização do evento aguardava sua chegada com ansiedade. Olhos atentos ao portão de desembarque. Muitos, se não todos, esperavam ver Mujica acompanhado de assessores ou, no mínimo, de um secretário para cuidar da agenda, bastante cheia, por sinal. Mas os que assim acreditavam, enganaram-se. Nenhuma comitiva, nenhum segurança. Pepe desceu apenas ao lado de sua companheira, a também senadora Lucía Topolansky Saavedra. Trazia uma maleta preta e uma mensagem para compartilhar com gente de todas as idades.

Enquanto caminhava pelo aeroporto, o ex-presidente despertava a atenção das pessoas. Algumas perguntavam se o senhor em questão era mesmo o político uruguaio. As fotos, claro, não poderiam faltar. Em meio a olhares admirados, mas mantenedores de certa distância, bem ao estilo curitibano, um rapaz que passava ao lado do grupo lançou: “Esse cara, sim, deveria ser o presidente do Brasil”.

Mujica parecia cansado. Também pudera. A viagem durara sete horas, desde o Aeroporto de Carrasco, em Montevidéo, com escala em Guarulhos. Antes disso, havia estado em Corrientes, na Argentina.

O frio com que se deparou não chocou o casal, acostumado à sua terra natal. Mujica ensaiou uma breve aula de geografia climática, versando sobre a temperatura das capitais latino-americanas a partir da posição e altitude de cada uma. Passado o arroubo, a inevitável pergunta: “Já vamos para o hotel?”.

Questionado se estava feliz em retornar ao Brasil, o palestrante foi direto ao ponto: “Ultimamente só fico feliz mesmo quando estou indo para a minha casa”. No caminho até o hotel onde se hospedaria, uma de suas preocupações era com os ritos matinais: “Aqui vocês não tomam mate? Nós tomamos toda manhã. Parece que não acordamos sem ele”. Mas a maioria dos que o acompanhavam não ouvia direito. Ou não haviam tomado seu mate, ou iam embalados no meio sonho de estar ao lado de uma referência daquele tamanho.

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

“Mujica is my hero”

Difícil saber se era maior o número de flashs ou a paciência do ilustre convidado. Mujica parecia não gostar de tanta “tietagem”. Se a idade também pesava, a verdade é que não acreditava mesmo que aquilo tudo fosse necessário. Confrontado com um jovem que contou ter uma camisa com seu rosto estampado sob a mensagem “Mujica is my hero”, apenas balançou a cabeça negativamente. Parecia dizer: “não, não é nada disso. Não quero ser essa figura”. Contudo, ser uma referência, um ícone da esquerda, não é mais uma opção. Sabedor de sua missão, Pepe Mujica abria mão do conforto e simplicidade de sua casa, na zona rural de Montevidéu, para mergulhar no ginásio do Círculo Militar do Paraná, onde enfrentaria uma ávida audiência.

Entre as opções de cardápio no jantar, optou pela eclética: gnocchi de batata doce com costelinha suína, servida num melado artesanal da serra do mar. Alguém brincou que quem senta na ponta, paga a conta. Mujica responde: “No Uruguai paga quem tem mais dinheiro”. Risadas. Silêncio.

Via de regra, manteve-se o mais discreto possível, se é que isso era possível. Nas refeições que dividiu não fez nenhuma questão de ser o centro das atenções. Muito pelo contrário. O tom baixo de sua voz nas conversas reservadas contrastava com o trovão que se tornava ao falar em público e discorrer sobre lições de vida, muito mais do que sobre política propriamente dita.

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

Tecnoilusões

Dentre todas as peculiaridades da personalidade de Mujica, uma, em especial, chamou a atenção no diálogo inter-geracional: ele não usa celular. Ou, pelo menos, não tocou no aparelho em público durante toda a sua passagem por Curitiba. Nesses pequenos gestos talvez transmitisse uma de suas mensagens mais marcantes: um senhor de 81 anos, de pouca intimidade com os aparelhos digitais, debatia as possíveis formas de escravidão e dependência atreladas à tecnologia, com uma plateia inteiramente conectada às redes sociais. Ele foi ovacionado, inúmeras vezes.

Na contramão da enxurrada de imagens, selfies e posts, Mujica se mostrava cansado de superficialidade e insistia na lição de que é preciso buscar mais profundidade na vida. Em entrevista à equipe de cobertura do evento, irritou-se com uma pergunta sobre o avanço do neoliberalismo na América Latina. “Você poderia ser mais criativa, todos me perguntam isso”. Para ele, que enxerga a História antes como processo do que como retrato, é impossível tratar certas questões em uma reportagem “com tom de revista frívola”. Foi assim que se recusou a falar sobre democracia representativa. “Não é que eu seja antipático, mas é que é preciso respeitar o pensamento”, defendeu.

Simpático e incisivo, despojado e ranzinza. Ele mesmo é a contradição e a harmonia com seu discurso, uma figura de “carne y hueso”. A todo o momento, uma surpresa. Mais do que referenciado por seu mandato na presidência, Pepe Mujica impressiona pela sua humildade e simplicidade em tempos tão plásticos e movidos a base de glamour político. É isso, possivelmente, que faz com que levas de jovens acudam para escutar as palavras dessa figura convicta em sua humanidade falível e assustada com tanta cultura capitalista.

Ao seu lado, sempre, Lucia Topolansky atendia a todos com igual solicitude. Como dissera seu próprio companheiro, o importante é chegar ao final da vida e reconhecer que ela não foi inútil. Se alguém poderá dizer isso, no crepúsculo de sua existência, certamente, serão Mujica e Topolansky.

Com as mesmas roupas e a indefectível cuia de chimarrão, ambos deixaram Curitiba no silêncio profundo em que chegaram. Lucía com seu sorriso acolhedor e Pepe com seu olhar de devassa, perspicaz e cansado, como quem esconde mais do que revela. Ou como quem se compadece da pergunta que deixa no ar: “Que tempo vocês têm para amar?”.

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

Foto: Rafael Oliveira/Jornalistas Livres

“Toco y me voy” con Mujica

Desrespeitando um pouquinho sua postura que preza pela profundidade, seria possível pinçar das conversas com o senador um ping-pong com frações de respostas. Seria algo mais ou menos assim:

Importância da educação: “Sou menos radical do que Nelson Mandela. A educação é fundamental, mas não podemos colocar na conta da educação todos os nossos erros políticos. Apesar disso, ela é fundamental para garantir a tolerância”.

Sobre a descrença dos jovens na política: “O homem é um animal político, já dizia Aristóteles. Mas, no mundo da mercadoria, tudo é um negócio, e se propaga a ideia de que na vida é preciso juntar dinheiro e ser rico. Então se toma a política como um caminho para se chegar a riqueza. A política é a carreira da dignidade e nela deve-se viver como vive a maioria do povo e não como a minoria aristocrática. Mas nunca irão se esgotar as contradições”.

Sobre o atual momento político do Brasil: “A conta pendente do povo brasileiro é não permitir que o ódio germine por divergências políticas”.

Momento histórico por qual passa a democracia: “Ah, por favor, a História da humanidade não teve início na Revolução Francesa! Tudo é um processo. Nós temos que nos dar conta que essa é uma luta permanente de mudança e que vai nos custar a nossa existência e levar toda a nossa vida.

Sobre o excesso de fotografias a que foi submetido: “Tire esse objetivo infame da minha frente”.

Estamos atrasados?: “Se estivéssemos na Alemanha já teríamos perdido o trem.”

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América Latina e Mundo

Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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