Jornalistas Livres

Categoria: Teatro

  • A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, Grupo Teatral Ciclopatas

    A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, Grupo Teatral Ciclopatas

    A Companhia Teatral Ciclopatas em tempos de pandemia

    apresenta

    A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica[1]

    Texto Dirce Waltrick do Amarante

    Direção coletiva

    Atores

    Fabrício Gastaldi

    Lílian Zoldan

    Marina Bento

    Maíra Castilhos

    O teatro e o virtual

    Por Dirce Waltrick do Amarante

                O teatro, diferentemente das outras artes que se tornaram midiáticas (filmes não ficam mais restritos ao cinema; museus recebem passeios virtuais; a música há muito se apoia também nas gravações), continua tentando manter sua particularidade que, segundo Bárbara Heliodora, “[…] só existe quando ele é apresentado diante de uma plateia, porque a obra de arte é o que acontece diante do público, graças à interação emocional que existe entre palco e plateia”.

                O virtual no teatro ainda parece mal visto, principalmente, quando se fala no papel do ator (que tem que estar presente, ao vivo, diante de seu público). É interessante então pensar no conceito de virtual.

    Para o filósofo francês Pierre Lévy, a palavra virtual na filosofia é “aquilo que existe apenas em potência e não em ato”. Desse modo, o virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou formal. Lévy toma como exemplo a árvore para explicar o virtual: a árvore, diz Lévy, está virtualmente presente no grão. Portanto, no sentido filosófico, o virtual é obviamente uma dimensão muito importante da realidade.

    No uso corrente, contudo, a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade – enquanto a “realidade” pressupõe uma efetivação material, uma presença tangível. A expressão realidade virtual, prossegue Lévy, soa então como um oximoro, pois se acredita que uma coisa ou é real ou é virtual. Em filosofia, o virtual não se opõe ao real. O ator, por exemplo, que manipula um personagem no computador, criando expressões, uma fala, uma postura corporal para esse personagem, esse ator é bastante real, embora fora do palco teatral ou do contato direto com a plateia.

    O fato é que, o virtual é toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela presa a um lugar e a um tempo particular. Portanto, o virtual existe sem estar “presente”.

    Lévy lembra que, no mundo virtual, “meu corpo pessoal é a atualização temporária de um enorme hipercorpo híbrido, social e tecnológico. O corpo contemporâneo assemelha-se a uma chama. Frequentemente é minúsculo, isolado, separado, quase imóvel. Mais tarde, corre para fora de si mesmo […], funciona como satélite, lança algum braço virtual bem alto em direção ao céu […]”. E, assim, esse corpo se prende a um corpo público (em outros corpos-chamas).

    O corpo contemporâneo, prossegue o filósofo francês, “retorna em seguida, transformado, a uma esfera quase privada, e assim sucessivamente, ora em toda a parte, ora em si, ora misturado”.

    O teatro já vem refletindo, embora timidamente, a meu ver, esse corpo contemporâneo para pensar a figura do ator, sempre levando em conta que “a virtualização do corpo não é uma desencarnação, mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação […]”, como fala Lévy.

    Néstor García Canclini, ao falar sobre a escola, adverte que os professores insistem em formar leitores de livros, e, à parte, espectadores de artes visuais, enquanto a indústria está unindo as linguagens e combinando espaços. Em tempos de pandemia, talvez seja a hora de repensarmos o teatro, o ator e o palco, levando também em conta outras mídias e outras linguagens do século XXI.


    [1] Título de um ensaio do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1949)

  • Artistas de cena. Carta Aberta pela Renda Básica

    Artistas de cena. Carta Aberta pela Renda Básica

    A “Articulação de Trabalhadores das Artes da Cena pela Democracia e Liberdade (ATAC)”, que reúne representantes de 15 estados brasileiros, soma-se a trabalhadoras e trabalhadores de todo o Brasil que, para sobreviver à pandemia do coronavírus em nosso país, necessitam do acesso à “Renda Básica Emergencial”. Reivindicamos a apreciação imediata pela Câmara dos Deputados do projeto de lei 873/2020, já aprovado pelo Senado Federal, que faz menção explícita aos trabalhadores das Artes e da Cultura, garantindo o acesso à este direito para os milhões de artistas e profissionais que integram nosso segmento.

    Manifestamos também nosso pedido de que sejam tratadas em caráter de urgência as proposições que tramitam no Congresso Nacional com ações emergenciais para o setor cultural, por meio dos projetos de Lei: 1075/2020, 1089/2020 (Câmara dos Deputados) e 1541/2020 (Senado Federal).

    Essas iniciativas apresentam, além de medidas de liberação orçamentária de recursos do Fundo Nacional de Cultura, a complementação de renda à profissionais autônomos da área cultural, a desoneração tributária para entidades do setor e o fomento a espaços culturais independentes: pontos de cultura, teatros, circos, sedes de grupos, centros culturais, escolas de artes, dentre outros.

    Existe um multiverso desses espaços, geralmente esquecidos pelas políticas públicas, onde se promove diariamente a cidadania e o bem viver, tão necessários nesses tristes tempos que atravessamos. Estão espalhados pelos quatro cantos do país, das pequenas às grandes cidades, e foram os primeiros a terem suas portas fechadas e, sem dúvida, serão dos últimos a poderem retomar plenamente suas atividades.

    Por isso, o Estado Brasileiro deve implementar urgentemente políticas destinadas a estes espaços e entidades da cultura, para que tenham condições de manterem seus trabalhadores e logo reabrirem suas portas ao encontro entre agentes culturais e público.

    A continuidade da produção artística e cultural é um imperativo para nossa existência como nação soberana!

    Os Governos, em todas as suas esferas, devem fazer todos os esforços necessários para garantir que a produção criativa do povo brasileiro se mantenha*, e possa, uma vez passada a pandemia, manter pulsante a vida cultural do país!

    Veja como colaborar:

    1⃣ Faça chegar a carta para parlamentares federais de sua cidade/estado/região.

    2⃣ Envie os materiais abaixo em grupos de agentes culturais nas redes sociais.

    3⃣ Siga a página da ATAC no Facebook e no Instagram pelos links:

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    #CulturaÉVida

    #ATAC

    Viva os Artistas Brasileiros!

     

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  • Extinção de fundos públicos é aprovada e ameaça a produção cultural fora dos grandes centros econômicos

    Extinção de fundos públicos é aprovada e ameaça a produção cultural fora dos grandes centros econômicos

    O Senado aprovou no dia 04 de março , na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), a extinção de muitos fundos, inclusive o de cultura. Foram poupados os fundos de ciência e tecnologia, segurança pública, penitenciário, combate às drogas, do café o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e um fundo de garantias ao financiamento de exportações.

    Todos os especialistas em financiamento cultural do mundo, reconhecem que o financiamento público tem um papel fundamental na construção de um panorama diversificado de arte e cultura.

    Há algumas décadas, fóruns internacionais e documentos intergovernamentais sobre políticas culturais recomendam de forma reiterada sua criação e manutenção: a 16ª reunião da Conferência Geral da UNESCO (1970), a Conferência Intergovernamental da Ásia (1973), a Conferência da África (1975), a Carta Cultural da África (1976), a Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais na América Latina e Caribe – Americacult (1978) e a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais – Mondiacult (1982), são alguns desses. Em 2005, durante a 33º Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris, a organização criou o seu próprio mecanismo de fomento à cultura, o Fundo Internacional para a Diversidade Cultural.

    Até países de tradições mais liberais, como os EUA (tão adulado por este governo), tem seu fundo para as artes, mantido de forma suprapartidária há décadas.

    O mercado (via consumo ou via patrocínio privado) achata as possibilidades e na prática dificulta enormemente o surgimento de novos talentos, a experimentação e pesquisa artística, instituições culturais que realizam trabalho fora dos grandes centros econômicos.

    É verdade que o FNC (Fundo Nacional de Cultura) vem num processo de diminuição gradativa. Mas sua existência dá as bases para a reconstituição de um sistema mais harmônico e completo. Sem sua previsão legal, voltaríamos à estaca zero.

    De quebra, joga o grande pilar da política para o audiovisual: o FSA  – Fundo Setorial do Audiovisual – (abrigado dentro do FNC). Para os que admiraram “Parasita”, também fruto do mix talento + políticas públicas, corre o risco do Brasil voltar em breve ao início da década de 1990, com menos de um punhado de filmes lançados ao ano, e não seguir a trajetória atual, onde nosso cinema tem reconhecimento de crítica e de público.

    Se a PEC (Proposta de Emenda Constitucional ) prosperar, na prática estamos enterrando todos os sonhos de uma política cultural plural e diversa. O Brasil está com muitos desafios sérios, em todos os campos. A cultura, tem uma lista imensa. Para quem atua no campo da cultura, ou para quem preza pela cultura brasileira, a hora de se mobilizar é agora. O que está em jogo é se o processo de reconstrução (que virá) levará anos ou será necessário décadas.

    A PEC extingue os fundos estaduais e municipais de cultura, exigindo que sejam recriados nos respectivos entes. Com o SNC ( Sistema Nacional de Cultura) congelado e a economia parada (pressionando a situação fiscal do estados), essa recriação de fundos nos estados e municípios será muito difícil.

     

    Emenda que tenda preserva o FNC (Fundo Nacional de Cultura) e o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual)

    A bancada do PT no Senado protocolou  no dia 10 de março, a Emenda nº 58 – PLEN (  que retira os fundos públicos de cultura (FNC/FSA e Fundos Municipais, Estaduais e Distrital  de Cultura) da PEC 187/2019, a PEC que extingue os fundos públicos.

    Com 28 assinaturas conseguidas rapidamente,  muitos dos senadores abordados sinalizaram que já havia pressão em seus Estados por esta emenda.

    Deverão acontecer  5 sessões de debates em plenário, em sessões deliberativas antes da votação em primeiro turno, e nesta semana só deverá acontecer uma.  A partir da próxima  semana dependerá  da quantidade de sessões deliberativas  para  poder entrar em votação, a probabilidade é  que só aconteça na semana posterior.

    Além disso, em função da apresentação da Emenda, a PEC deverá voltar pra CCJ para a emenda apresentada receber parecer que deverá ser rápido cerca de dois dias no máximo.  O relator da Emenda 58-PLEN é o próprio relator da PEC, ou seja, Senador Otto Alencar.
    É importante, portanto, haver  que haja pressão e ações de convencimento  direcionadas ao Senador  Otto Alencar para  que ele emita um parecer favorável facilitando a a aprovação.

     

     

     

    A Emenda: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8074350&ts=1583880413021&disposition=inline

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    por

    Carlos Paiva

    Formado em produção cultural pela Universidade Federal da Bahia (UFBa), especialista em Educação Estética, Semiótica e Cultura, Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atua desde 1997 em gestão cultural, com trabalhos como coordenador de produção nas áreas de música, artes cênicas, artes visuais e cinema. Foi ex-Secretário de  Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) do Ministério da Cultura

     

     

    foto:

    Fabiana Ribeiro | Jornalistas Livres

  • Semeando a Resistência: Mulheres de Mato Grosso se preparam para o encontro nacional do MST

    Semeando a Resistência: Mulheres de Mato Grosso se preparam para o encontro nacional do MST

    Texto e fotos por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá – www.mediaquatro.com – Especial para os Jornalistas Livres

    Depois do grande sucesso da última Marcha das Margaridas, que reuniu mais de 100 mil trabalhadoras rurais em Brasília na primeira quinzena desse mês, agora é hora de preparar o I Encontro Nacional de Mulheres Sem Terra, marcado para os dias 22 a 26 de novembro no Pavilhão do Parque da Cidade, também na Capital Federal. Na última terça, 27 de agosto, professoras, ativistas e lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra de Mato Grosso fizeram sua terceira reunião preparatória numa sala do Instituto de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Nesse momento estão ocorrendo algumas ações para levantar o dinheiro suficiente para transporte e alimentação das participantes. A primeira é um acordo com a Cia D’Artes do Brasil para uma apresentação no próximo dia 20 de setembro da peça teatral Cafundó – Onde o vento faz a curva, de Amauri Tangará, no Cine Teatro, com renda revertida para o MST. Também está prevista uma feijoada comunitária mas a data ainda não foi definida.

    Uma das principais preocupações das mulheres matogrossenses é o feminicídio, já que o estado possui atualmente o maior índice do país, com 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres, segundo levantamento de 2018. De acordo com a polícia civil da capital, Cuiabá, somente na região metropolitana houve um aumento no ano passado de 38% em relação a 2017 e 21 casos no primeiro semestre desse ano em todo o estado. Já a Comissão Pastoral da Terra – CPT, alerta que 28 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais sofreram algum tipo de violência no campo ano passado. Dessas, muitas são mulheres, já que o número de famílias acampadas (portanto sem o título da terra) saltou de 96 em 2017 para 474 em 2018. “Temos várias mulheres, sozinhas ou com crianças, em assentamentos, sem a presença da figura masculina”, contou Elizabete Flores, ativista da CPT em reportagem para o RDNews em maio (https://www.rdnews.com.br/cidades/conteudos/113477). Comumente, elas foram abandonadas ou decidiram deixar uma vida na qual eram vítimas de violência”.

    Outra preocupação é o avanço das queimadas no estado, que até o dia 21 de agosto acumulava 13.682 focos de calor acumulados no ano, conforme levantamento do Instituto Centro da Vida com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, superando todos os outros estados da nação. A maioria dos incêndios, 60%, ocorrem em áreas privadas, muitos sobre mata nativa para o aumento da exploração pecuária. No entanto, 16% são em áreas indígenas. Tanto trabalhadores rurais pobres e sem terra quanto indígenas e quilombolas estão na alça de mira de latifundiários, com apoio, às vezes explícito mas agora mais discreto, do governo federal. Lutar por mais demarcações e mais assentamentos da reforma agrária, que trabalham com agricultura agroecológica sem depredar o meio ambiente, é uma das prioridades das mulheres do MST.

  • Rastro Vermelho na praça e nas ruas

    Rastro Vermelho na praça e nas ruas

    Iniciativas como o espetáculo político/teatral “Rastro Vermelho” grupo teatral Estudo de Cena, precisam ser incentivadas, multiplicadas… Atividades em espaços públicos como essa, renovam as energias e reavivam a esperança.

    Inspirados no Teatro do Oprimido de Augusto Boal o grupo, composto por aproximadamente 20 atores, com muita música, declamação de poesias, performances em praça pública, ganhou as ruas para denunciar o momento que estamos vivendo, reavivar a memória de lutas e reforçar a a utopia de um mundo melhor.

    Em cortejo da praça da Vila Buarque e pela Consolação, finalizando no teatro de Arena, chamaram a atenção de maneira simbólica, para a dinâmica e força da natureza, da vida e de elementos que a constituem: ar, fogo, água, terra, onde se travam as lutas, ressaltando a importância do chão em que se pisa e da memória como fio condutor  da vida, em constante movimento.

    “Eu canto a aurora… A ruína é progressiva, em nosso caminho um labirinto de pedras, só a solidariedade pode abrir caminhos. Sem a nossa imaginação nunca chegaremos ao lugar esperado. Ficaremos aprisionados nas muralhas de pedra que nos trazem sinais da morte. Estamos na ponta da rua, estamos vendo a rua se fechar, enxergamos a fumaça da pólvora, a corneta bradar… Eu vi Antônio Conselheiro no sertão que o mundo esqueceu, cercado de tanta polícia, Canudos não se rendeu… Cercado de tanta polícia, fascistas não passarão…”

    “A gente busca raiz de quem tem brilho no olhar, olha o jardim onde está o sol, ver a memória, ver a semente do que está por vir, esta terra será de toda gente, de muita luz e de sol…”.

    No teatro de Arena foi entregue a Cecília Boal, uma caixa com cápsulas de sonhos para daqui a cem anos. Sob a mística daquele teatro de tantas resistências, ergueram-se as vozes por liberdade e por direitos.

  • Navalha na carne negra: três escolas de teatro negro em cena

    Navalha na carne negra: três escolas de teatro negro em cena

    No FIT – Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto 2018, durante a mesa Vozes da Diáspora, uma das atividades formativas, argumentei que o teatro negro é uma vertente do teatro brasileiro que se apresentou dessa forma pela primeira vez no TEN – Teatro Experimental do Negro, na década de 1940. 

    Esta experiência pioneira, liderada por Abdias Nascimento, na simplificação didática adotada por mim, propunha-se a criar uma estética negra e a encená-la, texto, atores, direção, corpo técnico, todos negros. A grande estudiosa da estética do TEN é a poeta e professora da UFMG, Leda Maria Martins, a quem podemos (devemos) consultar. Um dos resultados de sua pesquisa é o livro A cena em sombras (Perspectiva, 1995).

    A estética do teatro negro contemporâneo, em larga medida tem-se se ancorado nos princípios da ancestralidade, mas não só. Há outras propostas cênicas que tratam do negro atual e seus dilemas urbanos e humanos, profundamente marcados pelo racismo; outras que experimentam formatos e linguagens mais subjetivas em contraponto àquelas mais panfletárias. Aliás, existe uma corrente reflexiva que defende o que é chamado de panfletário na dramaturgia negra, também como uma escolha estética legítima.

    A experiência Fórum de Performance Negra – cultura sem racismo, iniciada na Bahia por Hilton Cobra e Luiza Bairros, em 2005, apontou caminhos para os coletivos de arte negra espalhados por todo o país. A princípio criaram-se Fóruns regionais e mais recentemente, a partir da IV edição, em 2015, as pessoas amadureceram a necessidade de constituir Fóruns permanentes de difusão e reflexão sobre as artes negras.

    Nesse sentido, criaram-se a Segunda Preta, em Belo Horizonte, as Segundas Crespas, em São Paulo, e a Segunda Black, no Rio de Janeiro. Espaços que têm fomentado a exposição, circulação e crítica interna da arte negra, que têm nos permitido aferir como modelamos nossas próprias escolas estéticas, como construímos nossas tradições e como implementamos política cultural feita por nós, sobre nós e para nós.

    Navalha na carne negra nos revela um pouco dessas escolas, nos mostra como vimos nos constituindo como atrizes, atores e técnicos negros formados pelos coletivos negros de teatro e habilitados a explorar a técnica forjada nesses espaços para executar qualquer cena, não só as cenas negras definidas como tais.

    Esse espírito político-educador, encarnado por Rodrigo dos Santos, convocou Lucélia Sérgio e Raphael Garcia para emprestarem seus corpos negros aos personagens de Plínio Marcos, Neusa Sueli, uma prostituta, Veludo, o camareiro gay, e Vado, o cafetão. É provável que este mesmo espírito presente nos atores paulistas do elenco tenha convocado Isabel Praxedes, jovem negra, estudante de cinema, que faz um trabalho vibrante, no sentido de dar muito movimento à câmera, e ao mesmo tempo, diluí-lo, porque ela, a câmera-woman discreta, não puxa o foco para si.

    Esse conhecido espírito político-educador, lá atrás, há mais de dez anos, levou a Cia Os Crespos a convocar o renomado professor negro do curso de Artes Cênicas da USP, José Fernando de Azevedo, a dirigir Ensaio sobre Carolina. Por essas razões, entre outras, dizemos que os princípios da ancestralidade ancoram o teatro negro brasileiro.

    Outra ação que evidencia isso é a performance do experiente ator Rodrigo dos Santos na peça, um artista tarimbado por atuações consistentes no teatro, TV e cinema, vindo da escola de teatro negro carioca Cia dos Comuns. A princípio, enquanto o observava, avaliei que Rodrigo estava bem em cena, mas os outros atores, Lucélia e Raphael, estavam fantásticos. Talvez aquele fosse apenas mais um papel em sua longa trajetória e talvez por isso não tivesse o brilho que assisti em outras montagens.

    Que nada, me descobri totalmente enganada quando soube que a idéia do espetáculo foi de Rodrigo, que empreendeu e convocou as pessoas. E Rodrigo é um homem de asé, o mais velho daquele grupo e tenho a sensação de que ele cumpriu seu papel, fez a interpretação mais contida que o personagem requeria (o contrário disso seria exacerbar a violência) e abriu espaço para que o brilho dos dois atores mais jovens tomasse a cena.

    Lucélia Sérgio é uma grande atriz que tem colocado todo o seu talento e técnica a serviço da escola de teatro negro paulistana Os Crespos. Ela se dedica quase integralmente ao coletivo, além das duas filhas, obviamente, e ser mãe-atriz, todo mundo sabe, é um custo adicional para a carreira da mulher (o ator-pai, por mais presente e/ou responsável pelos filhos que seja, sempre conta com apoios que as atrizes-mães não dispõem). Como resultado da dedicação ao coletivo e à maternidade de filhas de menos de 5 anos, Lucélia investe menos na expansão de sua carreira artística do que gostaríamos, mas, neste Navalha na carne negra, sua performance contou com o auxílio luxuoso e poderoso da câmera de Isabel Praxedes.

    Lucélia Sérgio é uma atriz de silêncios, uma atriz que cresce sem a palavra. Isabel Praxedes compreendeu essa característica peculiar e mostrou detalhes de sua interpretação em momentos de ausência de texto, que não veríamos sem a câmera. Assim, em Navalha na carne negra, pudemos ver Lucélia Sérgio em seu esplendor.

    Raphael Garcia é ator formado pela escola de teatro negro paulistana Coletivo Negro. Um grande ator a quem Veludo deu a chance de mostrar quem é, vejam bem, quem é, não, a que veio. O ator quebrou as expectativas de nosso imaginário do personagem gay espalhafatoso, por meio de gestos econômicos, precisos e ricamente humanizados. Raphael Garcia construiu um Veludo memorável e surpreendente. Sua performance me lembrou o jogador Pogba mordendo a medalha da seleção africano-francesa, campeã da Copa 2018. A medalha era dele, conquistada pela luta, pela dedicação ao ofício, pela invenção de um lugar de existência numa realidade hostil. Era justo e legítimo que ele a devorasse em comemoração. Raphael Garcia devorou a cena, recebeu a medalha do público e da crítica.

    Viva o teatro negro e sua técnica que se faz também fora dos coletivos negros estrito senso, e inventa lugares de existência para sermos o que somos e o que quisermos ser.