Jornalistas Livres

Categoria: Opinião

  • Crônica de um discurso desejado

    Crônica de um discurso desejado

    Em dado momento aconteceu que, na cena política brasileira, o surreal sobrepujou o real, e uma espécie de “realismo mágico” em um Brasil paralelo começou a desenhar-se. Como em um filme do diretor José Padilha, aquele diretor sempre em busca de heróis.

     

    Ligo a TV e sou surpreendido com o pronunciamento da presidenta Dilma, direito de resposta dentro do jornal de maior audiência na TV brasileira, jornal que é faca, queijo e mãos sujas, artífices de golpes contra a democracia da qual ela mesma, Dilma, é a representante máxima.

    “Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar! Colocada numa encruzilhada histórica, pagarei com minha governabilidade a lealdade que devo ao povo.
    E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de todos os milhares e milhares de pessoas que votaram em nossa proposta de governo não poderá ser ceifada definitivamente.
    Eles, os rentistas, os especuladores, os golpistas, têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força.
    A história é nossa e a fazem os movimentos sociais e toda a esquerda que nos ajudou a alcançar o poder.”

    A nação para e ouve atentamente as corajosas palavras da fiel depositária dos sonhos, rumos e destinos de toda uma enorme nação. Cinquenta e cinco milhões de votos de um lado, cinqüenta e quatro milhões do outro.
    (O outro é aquele outro que não aceita a derrota.)

    As centrais sindicais, os movimentos sociais, os coletivos LGBTT, intelectuais, índios, povo quilombola, estudantes saem às ruas, tingindo de vermelho e multicor todas as ruas do Brasil. “Fica Dilma! Não vai ter golpe!”

    O pronunciamento prossegue:

    “Trabalhadores e trabalhadoras de minha pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em uma mulher que foi apenas intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a Lei, e assim o fez.
    Dirijo-me a vocês, sobretudo à mulher simples de nossa terra, à camponesa que em nós acreditou, à mãe que soube de nossa preocupação com as crianças.”
    (Sempre as crianças. Sempre. As crianças que programas sociais como o “Bolsa Família” ajudaram a salvar, ajudaram a manter na escola. )

    Nota mental minha: não nos esqueçamos disso.

    “Dirijo-me aos trabalhadores da Pátria, aos profissionais patriotas que continuaram defendendo esse projeto de governo contra a sedição auspiciada pelos interesses imperialistas, associações classistas que defendem os lucros de uma sociedade capitalista.”

    “Dirijo-me à juventude, àqueles que cantaram “Dilma, coração valente” e deram sua alegria e seu espírito de luta.”

    “Dirijo-me ao homem do Brasil, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos (e seremos), porque em nosso país o fascismo está há tempos presente; nos linchamentos incentivados por programas policialescos, nas execuções cometidas por grupos de extermínio formados por policiais que deveriam nos proteger, nos arroubos de intolerância praticados por gente que bate panelas e veste camisetas da entidade mais corrupta do esporte para desfilarem, inclusive nus, “contra a corrupção”.

    “A História os julgará. A História nos julgará a todos.”

    Ditas essas palavras, como que em um passe de mágica acontece uma “liga” em todo o tecido social que, outrora esgarçado e roto em vias de se romper, se fortaleceu em unidade.

    Setores que se encontravam relutantes em defender a democracia agora engrossam nossas fileiras, mobilizados e organizados em defesa do bem comum.

    “O povo não deve se deixar arrasar nem tranqüilizar, mas tampouco pode humilhar-se…”

    Dilma encerra seu discurso:

    ““Saibam que, antes do que se pensa, essa crise (que é mais virtual do que real, e que beneficia quem dela faz propaganda) será superada, e de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o brasileiro livre para construir um Brasil melhor.”

    (Com menos desigualdades sociais — nota mental minha)

    Vem-me à mente toda a dedicação de um sem números de anônimos, pessoas comuns e celebridades que se empenharam, entregando-se de corpo e alma à tarefa de eleger o projeto de governo que julgavam ser o mais justo para o Brasil

    É neles e em todo o povo brasileiro que penso: essas pessoas esperam não menos que as atitudes expressas nesse discurso

    O que impede que essa peça de ficção, mundo paralelo de realismo mágico, se torne realidade?

    Termino com as palavras que comecei: “Em dado momento aconteceu que, na cena política brasileira, o surreal sobrepujou o real, e uma espécie de “realismo mágico” em um Brasil paralelo começou a desenhar-se, como em um filme do diretor José Padilha, aquele diretor sempre em busca de heróis…”

    …e Dilma se tornou novamente heroína, como foi na luta contra a ditadura, protagonista de uma grande virada política, que começou com um discurso.

    “Tem horas que é caco de vidro
    meses que é feito um grito
    tem horas que eu nem duvido
    tem dias que eu acredito.”
    (Paulo Leminsky)

    (N. do A: você pode ler aqui, na íntegra, o memorável discurso de Salvador Allende, no qual inseri minha licença poética a fim de escrever essa crônica http://www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/allende.htm)


    *Diógenes Júnior é pesquisador independente, paulistano de nascimento, caiçara de coração e gaúcho por opção. Radicado em Porto Alegre, RS, escreve sobre Política, História, Cinema, Comportamento, Movimentos Sociais, Direitos Humanos e um pouco de um tudo.

  • As duas mortes de Francisco

    As duas mortes de Francisco

    Francisco é o nome do ser humano assassinado na escadaria da Praça da Sé na tarde do último dia 4, que foi um dos personagens da mais recente tragédia protagonizada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, tristemente célebre pelo protagonismo em tantas outras tragédias.

    Há dez anos morando nas ruas de São Paulo, tinha 61 anos.
    Dormia em albergues noturnos, embora tivesse casa e familiares — três filhos — para os quais ligava periodicamente usando telefones públicos.
    A filha mais velha relata que não via o pai há mais de dois anos.

    Os motivos que levaram o ser humano Francisco a sacrificar sua própria vida na tentativa de salvar outra jamais serão totalmente compreendidos.

    O que podemos dizer com absoluta certeza é que Francisco foi condenado à morte várias vezes pela mesma sociedade que tentou defender, sociedade que o tornou invisível.

    Herói em um drama humano, deu sua vida para salvar uma cidadã que não conheceu, parte de uma sociedade àcqual ele mesmo, Francisco, não pertencia nem jamais pertenceu.

    Uma sociedade que o condenou, assassinando-o duas vezes.

    Na primeira foi condenado a uma morte lenta e silenciosa, vítima da invisibilidade e da indiferença.

    Sua segunda morte teve um fim trágico, rápido, diante dos olhos de uma sociedade que antes não o enxergava.

    Francisco se tornou notável pelo gesto heróico, mas todos os seus outros gestos foram solenemente ignorados.

    Quem se lembrará amanhã daquele que foi esquecido durante toda sua vida?

    Morreu às portas fechadas de uma igreja cujo Deus, segundo a fé cristã, deu sua vida pela vida de toda a humanidade: “Conhecemos o amor (de Cristo) nisto: que Ele deu a sua vida por nós”
    (Bíblia Sagrada — primeira carta do Apóstolo João, capítulo 3 versículo 16)

    O drama do Francisco outrora anônimo foi a mais recente tragédia assistida ao vivo por uma enorme platéia de pessoas que jamais tomaram conhecimento de sua existência enquanto vivo.

    Foi necessário que morresse para que alguém o notasse.

    Francisco Erasmo Francisco de Lima é o nome completo do Francisco ontem anônimo, hoje herói.

    Que a morte de Francisco possa trazer à reflexão a questão da vida outros tantos Franciscos, condenados à invisibilidade, à indiferença e ao anonimato de uma morte silenciosa, ignorado nas ruas de alguma cidade no Brasil.


    *Diógenes Júnior é pesquisador independente, paulistano de nascimento, caiçara de coração e gaúcho por opção. Radicado em Porto Alegre, RS, escreve sobre Política, História, Cinema, Comportamento, Movimentos Sociais, Direitos Humanos e um pouco de um tudo.

  • Os Jornalistas Livres sempre estarão onde a esquerda estiver

    Os Jornalistas Livres sempre estarão onde a esquerda estiver

     

    Domingo, 16 de agosto, também foi o dia da esquerda qualificada.

    Dormi muito mal de sábado para domingo. Dentre todas as preocupações normais que antecedem essas manifestações da direita, outros problemas de ordem bem particular, porém não menos pesados, me afligiam naquela noite, Contudo, nada era mais duro do que imaginar como seria a recepção dos Jornalistas Livres na Avenida Paulista. E eu não estava escalada para ir até lá.

    Por volta das 3 da madrugada, consegui cochilar. Mas não consegui aprofundar nos sonhos. Não! Naquela noite, o máximo que fiz foi ver nos cenários dos ‘braços de Morfeu’ muita gente de verde e amarelo, tresloucada, confusa e com ódio. Um verdadeiro episódio da minissérie americana ‘The Walking Dead’.

    Despertei logo bem cedo, liguei a TV no PIG e de cara, vi os flashes das ruas pelo Brasil todo. Senti um frio na barriga e, ao mesmo tempo, pena daquelas pessoas com seus cartazes criminosos pedindo a morte da presidenta Dilma, com seus selfies e nudes.

    Imediatamente, voltei à lucidez, pois lembrei que além da cobertura e intervenção na Avenida Paulista, a missão dos Jornalistas Livres era mediar/apresentar a ‘Jornada Pela Democracia’, em frente ao Instituto Lula. Um ciclo de debates riquíssimos, com pauta central focada na hashtag #NãoVaiTerGolpe, e isso, claro, me trouxe um alívio imediato.

    Pensar que, enquanto na Avenida Paulista, 99% dos presentes não promoveriam debates qualificados e, na realidade, estariam alimentados pelo crescente discurso de ódio, implementado pela mídia tradicional no ‘cérebro’ e no coração do pessoal da Av. Paulista, me fez sentir que eu estava indo para o lugar certo, a zona sul de SP, mais precisamente ali no bairro do Ipiranga, onde estava a esquerda paulista e sua promoção sadia do debate da luta de classes, direitos humanos, minorias, chacina de Osasco e muitos outros temas que nunca veremos num ‘carna-coxinha’.

    Os Jornalistas Livres tem lado sim. E esse lado se chama esquerda, se caracteriza pelo lado dos movimentos sociais e dos direitos humanos. Portanto, onde a esquerda estiver, os Jornalistas Livres sempre estarão presentes. Essa é uma premissa básica de nosso jornalismo. É quase uma questão de civilidade.

    As mesas de debate na Jornada Pela Democracia serviram, sobretudo, para reaquecer nossa esperança de um país melhor e mais justo. Eduardo Suplicy, Laerte, Palmério Dória, Esther Solano, Adriano Diogo, William Nozaki, José Luiz Del Roio, Léa Marques, Kitanji e muitos outros lutadores da bandeira dos direitos humanos e democracia, abrilhantaram aquela tarde de domingo em frente ao Instituto Lula numa contra narrativa qualificada em relação aos momentos bizarros que aconteciam ali perto, na Av. Paulista.

    Entre uma mesa e outra, mais de cinco mil pessoas gritavam “Não vai ter golpe!”.

    E aquele grito ecoava sim do Oiapoque ao Chuí! Pois já que a mídia tradicional fazia seu circo de horrores em plantões televisivos, nos momentos mais bizarros, para mostrar as manifestações pelo país contra o governo federal, a Jornada Pela Democracia era transmitida ao vivo para o país e mundo via satélite e web.

    O saldo do sentimento é que fomos ao local certo. E sempre estaremos nesses espaços, pois são esses os habitats da esquerda qualificada e da democracia. É assim que somos!

    A Avenida Paulista ficou diminuída, perto do clima solidário e acima de tudo de mais amor e nenhum ódio durante a bela tarde de domingo. Saímos fortes, revigorados e aquecidos.

     

     

  • A rua é compromisso. Humanidade no crack

    A rua é compromisso. Humanidade no crack

    De Braços Abertos, o programa de redução de danos da Prefeitura, que em seu primeiro ano reduziu em 50% o consumo de crack na região, alia atendimento médico, moradia, reabilitação psicossocial, assistência social. Em outras palavras, humanidade.

    São Paulo. Centro-Luz. Cinema na rua. O filme? Sabotage. Pra quem? Pra quem quiser! Para os moradores, passantes e para o fluxo de usuários de crack.

    Foto: Apu Gomes

    Passei 10 meses no ano passado vindo periodicamente pra cá. Junto ao projeto Casa Rodante, parceria da casadalapa com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Criando espaços de convivência.

    Isabella Lanave / R.U.A Foto Coletivo

    Entre moradores, ocupantes, passantes e fluxo de usuários. Chegando em casa chorando ou em completa fadiga física e psicológica.

    Acredito que todos os companheiros desta jornada têm hoje uma nova forma de ver as coisas. Me incluo nesse grupo. Penso diferente, vejo diferente. Ouço diferente. Sinto diferente. Não tenho como dar a vocês parâmetros do que estou falando. Não há como eu tentar explicar racionalmente o que eu sinto, aqui.

    Primeiro. Um choque na coluna cervical. Uma porrada forte. Você perde a respiração, você não acredita no que vê.

    Segundo. Os olhos se enchem de areia. A visão turva. Quando chega o lusco-fusco, a confusão é maior ainda.

    Terceiro. O cheiro de metal. Por todo lugar. Como se mastigassem facas.

    Quarto. O contato imediato é tensão. Os músculos tensionam, a boca seca.

    Quinto. Respira respira. Acalma. Quem sabe me acostumo. Só que não.

    Segue a sede um dia irá chover

    O desconforto é necessário para começar a entender as redes de força que encobrem e encasulam esse território. O crack é só uma pequena ponta desse enorme iceberg.

    Se o vasto exército de Brancaleone que se estende por toda rua Dino Bueno, entre a Helvétia e o Largo Coração de Jesus, instaura seus maiores medos no seu total desconhecimento, saiba que essa é a parte mais simples da compreensão desse não-lugar. Simples. Questão de saúde pública.

    Esses brancaleones de tantos cantos deste país, seduzidos pela tv, pela grana, pela grama, pelo poder do consumo, simplesmente são subjugados por uma cidade que explora a desinformação, que apoia e alimenta a violência, que destrói possibilidades de convivência, que se alicerça no medo alheio e rechaça, impede, destrata, draga seus bons sentimentos, destrói seu amor próprio e os transforma em seres invisíveis ao resto da cidade.

    Foto: Apu Gomes

    Essa cidade não se veste apenas de farda em limpezas forçadas e jatos d’água diários que molham suas vestes e seus cobertores de único conforto. Essa cidade se veste de milícias de calçada que lhes vetam o direito de ir e vir. Essa cidade se veste de alimentadores do tráfico alheio para que o tráfico não deixe de existir. Essa cidade se veste de falsos benfeitores que vão higienizando cada pedaço do bairro transformando-os em moinhos de vidro espelhado que mesmo assim, não refletem os vampiros dançando em frente ao espelho. Essa cidade se veste de preconceito, intolerância, medo, grades de ferro e cadeados imensos, alarmes barulhentos, uniformes e, principalmente, se veste de silêncio.

    Respeito é pra quem tem

    Nunca digam terra de ninguém. Todos são alguém, têm história. Têm problemas como têm sonhos. Como todos nós. Em dias de Casa Rodante, conheci muitas histórias. Muitas. O soldado de Pinochet que bandeia para o lado da floresta e se junta ao exército de Che no Peru, o milico da última linha de tortura dos porões sujos da ditadura ou a menina que cria todo santo dia uma personagem mítica pra não se lembrar todo santo dia da guarda perdida da filha. Se estivessem numa novela global, seriam personagens seguidos, amados ou odiados, seriam convidados para programas estúpidos de auditório, contariam suas memórias em arquivos escrotos de domingo. Mas não. Não estão em nenhuma novela de horário nobre, talvez apenas nas babas vociferadas de raivosos datenas da vida. Estão ao seu alcance. Ao abrir a janela blindada de vidro fumê do seu tanque de guerra diário.

    Foto: Sato do Brasil

    Mas existem ainda santos guerreiros e heróis desajustados que clamam e protegem e dignificam esse incrível exército de brancaleone. Que tentam compreender suas fraquezas, e provocar fortalezas. Pequenas fortalezas diárias, como um simples trabalho de limpeza de ruas, seus caminhos. Ou plantar pequenas hortas urbanas em galões de água cheios de terra pelas esquinas do território.

    Foto: Sato do Brasil

    Esses santos guerreiros e heróis desajustados como os artistas mambembes da Casa Rodante, como esse Dom Quixote visionário, senador eterno, que em seus devaneios de realidade e verdade, rompe em direção aos brancaleones para consolidar os elos de confiança, como se todo o fluxo fosse a sua Dulcinéia, procurando trazer conforto, compreensão, atenção e carinho. Como esse outro santo guerreiro e herói desajustado do outro lado da tela desse cinema impossível, esse Macunaíma Redimido, arauto-mc dos labirintos de espraiadas, que viveu infernos e que soube renascer de cinzas, da pedra que derreteu santa e que nunca mais virou pedra.


    Um bom lugar se constrói com humildade, é bom lembrar

    Quando filme e público se transformam num só. A tela, as cadeiras brancas, o povo em pé. A rua que desaparece como fumaça. Lá em cima, um Jesus iluminado de braços abertos, impávido, nem aí. De Braços Abertos mesmo, o programa de redução de danos da Prefeitura, que em seu primeiro ano reduziu em 50% o consumo de crack na região. Isso, aliado a atendimento médico, moradia, reabilitação psicossocial, assistência social. Em outras palavras, humanidade.

    Foto: Sato do Brasil

    Humanidade. Como uma simples sessão de cinema. Na rua. Estabelecer o trânsito contrário. Percorrer o caminho inverso. Sabotage, que viveu intensamente os dois lados dessa mesma moeda, diz que o respeito de um por um faz a paz prevalecer. O começo de qualquer relação de convivência. A tolerância, o carinho, a compreensão, a humildade. Olhar dentro dos olhos, não desviar a atenção, não ter pressa, não mudar a direção. Manter os sentidos tranquilos. Estender a mão. Consagrar uma simples conversa. Sorrir. Apenas isso já transforma o dia. Humanidade.

     

  • Tod@s junt@s somos fortes

    Tod@s junt@s somos fortes

     


    Festança de lançamento da rede Jornalistas Livres congrega artistas e ativistas, professoras e sem-teto, brasileiras e estrangeiros, mídia livre e jornalistas da mídia tradicional, adolescentes e veteranos


    São quase 15h do domingo 24 de maio de 2015 e os portões da Praça das Artes, no centro da cidade de São Paulo, ainda não foram abertos. A Praça das Artes é uma praça pública, administrada pela prefeitura paulistana, mas possui portões, e eles estão fechados. Os chefes de segurança da instituição zelam pela preservação do patrimônio público e estão temerosos no quase-início da festa de apresentação d@s Jornalistas Livres ao público paulistano, paulista, brasileiro e terrestre (estaremos em transmissão ao vivo via internet até o fim da festa, já na madrugada da segunda-feira).

    São quase 15h quando chega um grupo de homens vestindo a orgulhosa camiseta da FLM, a Frente de Luta por Moradia, e do MSTC, o Movimento Sem Teto do Centro.

    Foto: Jornalistas Livres

    A jornalista Laura Capriglione, uma das forças motrizes d@s #JornalistasLivres, reúne os bravos militantes da FLM numa roda para conversar sobre a dinâmica do evento. Os seguranças da Praça das Artes, uma mulher e um homem negr@s, parecem sobressaltados. É o momento de cair a ficha (com o perdão da expressão de quando as fichas ainda caíam): quem fará a segurança da Praça das Artes no grande dia d@s Jornalistas Livres será o movimento social de luta por moradia. Alguma coisa está de ponta-cabeça nesta festa, nesta cidade, neste país, neste mundo.

    Mal se abriram os portões da praça que tem portões e a praça agora sem portões já está lotada de gente, de gente que reluz uma diversidade humana estonteante, daquelas de arrancar lágrimas de participantes e de organizadores, to@s junt@s e misturad@s e de olhos molhados.

    Foto: Jornalistas Livres

    A compositora, cantora, ativista e deputada estadual Leci Brandão faz um discurso veemente, preciso e magoado, afirmativo de que a mídia tradicional jamais deu conta, atenção e muito menos demonstração de afeto à riqueza humana reunida nesta festa.

    “Não dá pra gente ser comandado por seis famílias que acham que podem pautar o Brasil”, expressa-se Leci. “São seis famílias que não olham pra uma coisa chamada periferia, pro genocídio da juventude negra, pra quem é considerado fora do sistema deles, pra violência contra a mulher, que ficam tripudiando com o segmento LGBT. Eles têm preconceito contra tudo e contra todos.”

     

    Leci conclui se identificando com a rede #JornalistasLivres e acarinhando nossos afetos: “Estes jornalistas são verdadeiramente jornalistas, não são pautados pelo chefe, pelo dono. Não. É a cabeça, é a independência, é a liberdade. Viva a liberdade da imprensa. Viva a liberdade do Brasil”.

    A banda Satélite Musique dinamita fronteiras ao som latino, caribenho, africano da mistura de que é composta, com cidadãos-músicos haitianos e africanos, todos eles atualmente moradores do Brasil. “Haitimanos — Haiti-Brasil”, proclamam as camisetas azuis dos Satélite Musique: o Haiti é aqui.

    Foto: Sérgio Silva / Jornalistas Livres

    A valorosa Carmen da Silva Ferreira, líder-força da FLM, dança majestosamente ao som dos refugiados. Minutos atrás, Carmen e sua filhaPreta correram em minha direção e me abraçaram juntas, com força, de um modo como só uma mãe e uma irmã me abraçariam — afinal, somos mesmo parentes (como diriam dois índígenas que se reconhecessem um ao outro na rua). Agora, a senhora-menina-mulher-da-pele-preta-baiana Carmen dança.

    Ao microfone, o secretário municipal paulistano de Direitos HumanosEduardo Suplicy canta “Blowin’ in the Wind”, secundado por animado coro popular.

    A cartunista Laerte passeia livre, leve e loura pela nossa festa.

    Foto: Jornalistas Livres

    Leo Moreira Sá, ator, dramaturgo, homem transexual, ex-integrante da banda de meninas punks Mercenárias, atual jornalista livre, me conta ao microfone da dor e da delícia de ser o que é, de ser quem é. Nossos olhos se umedecem juntos, e eu lembro da honra que tenho em ajudar a editar ostextos jornalísticos que ele escreve.

    As cineastas Tata Amaral (Antônia) e Caru Alves (De Menor) passeiam juntas pela festa — além de terem em comum a profissão, são mãe e filha e nossas parentes #CineastasLivres.

    Jovens de cabelos coloridos e de cabelos afro e de cabelos moicanos dançam aos sons latinos da banda mexicana-e-paulista Francisco, el Hombre, ao samba paulistano de Yvison Pessoa, de São Mateus, ao rap feminino de Flora Matos e ao candomblé tropicalista do DJ Tutu Moraes.

    Fotos: Jornalistas Livres

    Garotas de penteados e visuais sensacionais transformam num front feminista a fila do gargarejo do show de rap-jazz da linda e ruiva Tássia Reis.

    Converso de passagem com Gina Lobrista, a Índia Apaixonada, cantora paraense de sofrência tecnobrega, que se apresenta no Mercado Ver o Peso, em Belém, ao lado do namorado equatoriano, o DJ Ata Wallpa, também presente a esta festa de diversidades.

    Foto: Jornalistas Livres

    Meninos Fora do Eixo trabalham duro na arquitetura de palco. Meninas fora do fora do fora do eixo quebram tudo na arquitetura de logística.

    Meninas e meninos Jornalistas Livres trabalham sem um tostão no bolso (e, sim, prezad@ leitor@, isto é um baita problema), mas com sorrisões no rosto que só a felicidade podem proporcionar.

    Jornalistas Livres de todas as idades nos fotografamos e filmamos e descrevemos e entrevistamos uns aos outros, cientes de que somos personagens da festa heterogênea, além de seus anfitriões.

    No amplo pátio-praça, a modesta barraquinha vende, por preços mais que camaradas, produtos da agricultura de assentamento, do Movimento Sem Terra, coisas de comer sem agrotóxico e sem ódio.

    A militante negra e jornalista livreEliane Dias, esposa de Mano Brown, assiste embevecida à apresentação-relâmpago do rapper gay Rico Dalasam, um dos MCs de nossa festa e um dos talentos explosivos do hip-hop brasileiro pós-Emicida e pós-Criolo. Eliane está com a filha já quase-adultaDomênica, irmã de Jorge — Jorge e Domênica foram batizados em honra e amor de Jorge Ben (Jor)e sua esposa Domingas. E hoje é domingo.

    Coincidentemente parado em pé ao lado de Eliane, um senhor de muita idade, já combalido pelo tempo, assiste a fragmentos das apresentações de noss@s parceir@s #ArtistasLivres. Trata-se de Paul Singer, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, pai de gente que fez história na redação da Folha de São Paulo e na USP.

    Foto: Jornalistas Livres

    Um jornalista histórico, Dermi Azevedo, se emociona e embevece os corações machucados d@s Jornalistas Livres, afirmando em entrevista aos#JL Haroldo Ceravolo e Adriano Diogo que esta nossa é a maior manifestação pela democratização da mídia de que ele participou em toda sua vida.

    (Pausa para mais lágrimas.)

    O amigo de Twitter Julio Cesar Amorim, @juliocesaramor, me dá um importante livro de presente e se encaminha para a barraca de doações. Um dos motivadores da festa é apresentar nosso projeto de financiamento cidadão junto ao site Catarse — nós não sobreviveremos sem o seu apoio direto, querida leitora, querido leitor.

    No processo de democratização da informação de que fala Dermi, somos 200 milhões de #JornalistasLivres no Brasil, compreendendo por jornalistas livres to@s aquele@s que lemos, assistimos, escutamos, gravamos, filmamos, fotografamos, consumimos e ajudamos a financiar jornalismo livre.

    Foto: Jornalistas Livres

    O amigo tuiteiro Julio Cesar faz sua generosa doação e diz que vai para casa chorar — chorar, concluo por ver os sonhos de democratização dele (nossos) virando realidade aos poucos. O Julio sabe que, lá no Twitter e no e-mail dele, também é #JornalistaLivre — assim como você (você sabe?).

    Nós, que estamos na rede #JL, assistimos junt@s e emocionado@s à projeção, na parede da prédio da Praça das Artes, do vídeo que fizemos para o Catarse. Agora só falta você (ou não falta?).

    Também estão entre nós, para nosso espanto e contenteza, colegas da mídia tradicional, tanto operários cotidianamente torturados nas redações como gente com cargo “grande” de colunista,editor etc. Desconfiamos que, mesmo assim, nossa festa não será documentada pela chamada “grande” mídia (ou foi?).

    Alguma coisa está de ponta-cabeça neste mundo, neste país, nesta cidade, nesta festa e nas redações desta nossa machucada profissão chamada jornalismo.

    Do mundo oficial, das autoridades, convidamos a galera toda, nos níveis municipal, estadual e federal, o Haddad e o Alckmin e a Rousseff. Temos representantes municipais (Suplicy, o secretário municipal de Promoção da Igualde Racial Antonio Pinto) e federais (o secretário nacional de Juventude Gabriel Medina, a secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura Ivana Bentes).

    Do nível estadual, salvo engano meu, não há viv’alma, e nunca deixa de me causar espécie e desgosto o desinteresse, o apartheid, a ausência completa do aparato tucano (que é também o aparato midiático tradicional) em meio à nossa população de jornalistas, sem-teto, fora-do-eixo, índias, haitianos, senegaleses, congoleses, transexuais, adolescentes, idosos, jovens, sem-terra, gays, mato-grossenses, mineiros, baianas, sem-emprego, rappers, funkeiras, tecnobregas, moradoras de rua, professoras em greve, povo sem água etc. etc. etc.

    Fotos: Márcia Alves

    No abismo entre os movimentos sociais e o mundo-cenário que a mídia tradicional se esforça diariamente por inventar, mora talvez o espanto d@s seguranças da Praça das Artes diante dos garbosos militantes da FLM que vieram nos ajudar a garantir a paz e a harmonia num evento aberto, gratuito, prolongado, alcoólico, festivo e hedonista.

    Pois bem, a festa acaba lá pelas 2h de segunda-feira num congraçamento entre Jornalistas Livres, o DJ Tutu Moraes e moradores de rua do centro paulistano. Foram 11 horas de festa, durante as quais não houve nenhum incidente, nenhuma briga, nenhum bate-boca, nem uma gotícula respingada de ódio. Não foi porque sejamos realmente e/ou completamente livres (ainda estamos longe de realizar esse sonho) — é que viver em busca de igualdade, fraternidade e liberdade é algo que pacifica os ânimos e acalenta os corações.

    Foto: Jormalistas Livres

    Quer apostar comigo que você também sentiu alegria, emoção ou alguma outra sensação calorosa enquanto lia este texto?


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